A criação das delegacias da mulher tem contribuído
para a construção de uma cidadania de gênero
no País, reconhecendo as posições sociais
hierárquicas em função do sexo e promovendo
a igualdade de direitos. As delegacias da mulher dão
visibilidade à violência contra a mulher e dão
coragem para que estas denunciem a violência que sofrem
em silêncio e que não era levada a sério
pelos distritos policiais.
Delegacias
da Mulher em São Paulo:
Percursos e Percalços
Cecília
MacDowell Santos*
Breve
histórico
As delegacias da mulher constituem a principal política
pública de combate e prevenção à
violência contra a mulher no Brasil. A primeira delegacia
deste tipo, inédita no país e no mundo, surgiu
em 1985 na cidade de São Paulo durante o governo Franco
Montoro. Foi fruto do contexto político de redemocratização,
bem como dos protestos do movimento de mulheres contra o descaso
com que o Poder Judiciário e os distritos policiais
em regra, lotados por policiais do sexo masculino
lidavam com casos de violência doméstica e sexual
nos quais a vítima era do sexo feminino. Atualmente,
existem 124 delegacias da mulher no estado de São Paulo,
com nove na capital. O país conta com 307 delegacias
da mulher, ressalvando-se o fato de que o total de municípios
com esse tipo de delegacia não chega a 10%.
Portanto, é de se notar a concentração
das delegacias da mulher em São Paulo (40,7%) e a distribuição
desigual das mesmas no interior dos demais estados.1
A história das delegacias da mulher deve ser remetida
à história do movimento de mulheres em torno
da politização da violência contra a mulher.
A partir de meados dos anos 70, o movimento de mulheres começou
a denunciar amplamente a absolvição, pelos tribunais
do júri, dos autores de homicídios de mulheres.
No início dos anos 80, surgiam grupos feministas em
todo o país, denominados SOS-Mulher, voltados ao atendimento
jurídico, social e psicológico de mulheres vítimas
de violência. A então forte e bem sucedida politização
da temática da violência contra a mulher pelo
SOS-Mulher e pelo movimento de mulheres em geral fez com que,
em São Paulo, o Conselho Estadual da Condição
Feminina, também criado no governo Franco Montoro em
1983, priorizasse essa temática, entre outras. O Conselho
propunha então a formulação de políticas
públicas que promovessem o atendimento integral às
vítimas de violência, abrangendo as áreas
de segurança pública e assistências social
e psicológica.
O governo Montoro respondeu às propostas do Conselho
com a idéia inusitada de uma delegacia especializada
em crimes contra a mulher, lotada por policiais do sexo feminino.
A idéia, que restringiu a perspectiva feminista da
violência contra a mulher ao seu aspecto meramente criminal,
partiu do então Secretário de Segurança
Pública, Michel Temer. Na época, vários
delegados de polícia se manifestaram contra a criação
das delegacias da mulher. Mas o governo venceu a resistência
da polícia civil e criou a primeira Delegacia de Polícia
de Defesa da Mulher mediante o Decreto Nº 23.769/85.2
Embora desconfiadas da polícia e do estado em geral
pelo seu passado recente de autoritarismo, as feministas integrantes
do Conselho Estadual da Condição Feminina de
São Paulo e de alguns grupos de mulheres atuando no
combate à violência contra a mulher apoiaram
a iniciativa inédita do governo Montoro. Mas, desde
1985, vêm tentando influir, com mais ou menos sucesso,
na capacitação das policiais e na delimitação
das atribuições das delegacias da mulher.
Desse modo, desde o seu nascedouro, a concepção
e as atribuições das delegacias da mulher, assim
como a formação cultural dos/as policiais, têm
sido resultado de conflitos e negociações entre
organizações feministas governamentais
e não-governamentais, a polícia civil e as policiais
titulares das delegacias da mulher.3
Atribuições
e funcionamento
O Decreto Nº 23.769/85, que criou a primeira delegacia
da mulher na Secretaria de Segurança Pública
de São Paulo, estabeleceu a competência dessa
delegacia especializada para investigar e apurar, entre outros,
delitos de lesão corporal, ameaça, constrangimento
ilegal, atentado violento ao pudor, adultério, etc.
Desde 1985, lesão corporal e ameaça constam
como os tipos de crimes mais registrados nas delegacias da
mulher em São Paulo e nos demais estados. Mas o número
de inquéritos policiais é sensivelmente desigual
para os dois tipos de crimes. Em 1994, por exemplo, as delegacias
da mulher de São Paulo registraram um total de 114.832
boletins de ocorrência, dos quais 33% eram por lesão
corporal e 26% por ameaça. Enquanto 71,3% dos boletins
por lesão corporal originaram inquéritos policiais,
apenas 7,9% dos boletins por ameaça deram lugar a inquéritos.4
É
interessante notar que, apesar de já em 1985 o Conselho
Estadual da Condição Feminina reivindicar a
inclusão do delito de homicídio, este não
foi contemplado pelo decreto. Somente em 1996, passados mais
de dez anos desde a criação da delegacia pioneira,
tal delito se inseriu na competência das delegacias
da mulher. Vale também observar que a criação
da delegacia especializada em crimes contra a mulher não
excluíu dos distritos policiais a competência
para, concorrentemente, investigarem e apurarem aqueles crimes.
Na prática, porém, tornou-se regra os policiais
nos distritos "empurrarem" as queixosas para as
delegacias da mulher.
Também merece destaque o fato de que, ao contrário
dos distritos policiais, as delegacias da mulher não
dispõem de cadeia e, portanto, não realizam
serviço de carceragem. Na capital, apenas uma delegacia
da mulher tem prédio próprio e funciona 24 horas,
inclusive nos fins de semana e feriados. As demais delegacias
da mulher operam no prédio de um distrito policial
e funcionam somente em dias úteis, das 8 horas da manhã
até as 6 horas da tarde.
Saliente-se ainda que, desde 1985, nenhuma legislação
referente a delegacias da mulher tem feito menção
à formação ou capacitação
das policiais titulares dessas delegacias. Os poucos cursos
de capacitação sob a perspectiva de gênero,
oferecidos às policiais pelo Conselho Estadual da Condição
Feminina e por algumas ONGs de mulheres, têm sido resultado
da vontade política de algumas policiais em postos
de coordenação dos trabalhos das delegacias.
A Academia de Polícia, responsável pelo curso
preparatório de três meses destinado a todos
os policiais que ingressam na carreira, jamais integrou em
seu curriculum um curso específico sobre violência
contra a mulher ou violência de gênero.
Entre 1985 e 1986, na gestão Montoro, criaram-se 13
delegacias da mulher. Na gestão seguinte de Orestes
Quércia, entre 1987 e 1990, esse número cresceu
para 58. Devido à expansão dessas delegacias,
criou-se, em 1989, uma Assessoria Especial das Delegacias
de Defesa da Mulher (hoje denominada Serviço Técnico
de Apoio às Delegacias de Polícia de Defesa
da Mulher DGP), cujas integrantes são designadas
pelo Delegado Geral de Polícia, com o fim de assessorá-lo
e manter relacionamento direto com as policiais titulares
das delegacias da mulher. Em 1989, ampliou-se também
a competência das delegacias da mulher, com a inclusão
dos crimes contra a honra, tais como calúnia, injúria
e difamação, e o crime de abandono mateiral
(Decreto Nº 29.981/89).
A grande mudança, porém, nas atribuições
das delegacias da mulher, teve lugar no primeiro governo Mário
Covas. Em 1996, o Decreto Nº 40.693/96 não apenas
ampliou as atribuições das delegacias da mulher,
mas também deu-lhes nova caracterização.
Além dos crimes contra a mulher, essas delegacias passaram
também a investigar e apurar os delitos contra a criança
e o adolescente, previstos no Estatuto da Criança e
do Adolescente. A essas delegacias coube, ainda, apurar mais
crimes contra a mulher, como, por exemplo, homicídio
ocorrido no âmbito doméstico e de autoria conhecida.
Por outro lado, sua competência extendeu-se aos crimes
de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento,
aborto provocado por terceiro e infanticídio, entre
outros crimes adicionais. Nesses casos, a mulher passou de
vítima a criminosa, as delegacias da mulher não
mais servindo-lhe necessariamente de "defesa".
Interessante notar que, por ocasião de um debate sobre
a expansão das atribuições das delegacias
da mulher, realizado na Assembléia Lesgilativa de São
Paulo no início de 1996, tive a oportunidade de observar
que muitas delegadas titulares de delegacias da mulher, temendo
a extinção de tais delegacias, defenderam a
farta ampliação de sua competência, inclusive
com o acréscimo de crimes de aborto e infanticídio.
Essas mudanças de atribuições e as posições
das delegadas devem ser compreendidas em um contexto mais
amplo de política da administração da
justiça criminal. Em 26 de setembro de 1995, foram
criados os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com
o objetivo de informalizar a justiça, tornando-a mais
célere e eficiente (Lei Nº 9.099/95). Os Juizados
Especiais Criminais foram também idealizados para substituir
penas repressivas por penas alternativas (compensações
pecuniárias, serviços comunitários e
conciliações) no caso de "infrações
penais de menor potencial ofensivo". Consideram-se tais
infrações os crimes e contravenções
com pena inferior a um ano de detenção. Nesses
casos, o inquérito policial foi substituído
por um "Termo Circunstanciado", uma espécie
de inquérito simplificado com um resumo da ocorrência,
acompanhado do laudo pericial, quando necessário, devendo
tal Termo ser remetido ao Juizado para realização
de audiência de conciliação e julgamento.
Os Juizados Especiais Criminais tiveram, e continuam tendo,
uma série de consequências sobre os distritos
policiais e as delegacias da mulher. No primeiro caso, serviram
para "desafogar" os distritos. No tocante às
delegacias da mulher, retiraram destas o papel de mediação
de uma série de conflitos que compõem a grande
maioria das queixas ali processadas, dando novo sentido a
sua criminalização.5 Isto porque os delitos
de lesão corporal (de natureza leve) e ameaça,
cujas penas são inferiores a um ano, continuaram sendo
os mais registrados nas delegacias da mulher. No ano 2000,
por exemplo, do total de 310.058 boletins de ocorrência
e termos circunstanciados efetuados nas delegacias da mulher
de São Paulo, 25% corresponderam a lesão corporal
e 20% ao delito de ameaça. Infelizmente, os dados disponíveis
desde 1996 não desagregam boletins de ocorrência
e termos circunstanciados, não se tendo acesso tampouco
ao número de inquéritos policiais. Os dados
também não indicam se as ocorrências por
lesão corporal são de natureza leve ou grave.6
Mas delegadas titulares das delegacias da mulher e o juiz
titular do único Juizado Especial Criminal instalado
em São Paulo, no Foro de Itaquera, estimam que a maior
parte dos registros nas delegacias da mulher são encaminhados
aos Juizados Especiais Criminais.7
A Lei Nº 9.099/95 tem recibido várias críticas
por parte de militantes feministas, pesquisadores e policiais.8
No Juizado, os juízes em geral são do sexo masculino
e não recebem qualquer treinamento para lidar com a
problemática específica da violência contra
a mulher. A conciliação é utilizada como
um fim, não como um meio de solução do
litígio. Através da promoção de
um acordo com renúnica do direito de representação,
ou da aplicação de penas alternativas, que resultam
em geral na distribuição de cestas básicas
ou prestação de trabalhos comunitários
não relacionados à violência contra a
mulher, tal violência passa a ser banalizada e a justiça
se torna questionável, dando azo à impunidade.
Outra mudança importante nas atribuições
das delegacias da mulher de São Paulo deu-se em 1997,
com a promulgação do Decreto Nº 42.082/97,
que veio conferir a essas delegacias competência para
"o cumprimento dos mandados de prisão civil por
dívida do responsável pelo inadimplemento voluntário
e inescusável de obrigação alimentícia".
O cumprimento desses mandados tem aumentado o trabalho das
investigadoras de polícia e tem também incentivado
a transferência de investigadores do sexo masculino
para as delegacias da mulher.
Para limitar a entrada dos policiais do sexo masculino nas
delegacias da mulher, o Delegado Geral de Polícia baixou
a Portaria DGP Nº 11/97, estabelecendo que "Às
Delegacias de Defesa da Mulher deverão ser designadas,
preferencialmente, policiais civis do sexo feminino, principalmente
para o exercício das funções relacionadas
ao atendimento público". Ainda assim, é
comum investigadores de polícia integrarem e chefiarem
as equipes nas delegacias da mulher da capital, atendendo,
inclusive, ligações telefônicas do público.
As delegadas não se queixam da presença masculina,
ao contrário, consideram-na necessária para
melhor cumprimento de suas funções.
Vale observar a influência de papéis de gênero
na ocupação dos três cargos policiais
de delegado, escrivão e investigador. Até abril
de 1999, 12,5% dos delegados de polícia no estado de
São Paulo eram do sexo feminino; 45,5% dos escrivãos
eram mulheres; e apenas 9,3% dos investigadores eram mulheres.9
Dos três cargos, o investigador é o que mais
realiza trabalho "de rua", expondo-se à reação
violenta de homens indiciados. O trabalho dos escrivãos
é interno e administrativo, mais associado ao papel
feminino de secretariado, o que permite maior acesso das mulheres
a essa função. As funções dos
delegados, no entanto, que detêm maior poder na delegacia,
continuam sendo associadas ao papel masculino.
Contribuições
à cidadania de gênero
A despeito de muitos obstáculos, a criação
das delegacias da mulher em São Paulo, e provavelmente
em todo o Brasil, tem contribuído para a construção
de uma cidadania de gênero no país, cidadania
essa que reconhece as posições sociais hierárquicas
em função do sexo e promove a igualdade de direitos,
incluindo-se aqui o direito a ter direitos e o direito de
acesso à justiça.
Em primeiro lugar, as delegacias da mulher dão visibilidade
à violência contra a mulher. A inauguração
da primeira delegacia da mulher, em 6 de agosto de 1985, atraíu
enorme atenção da mídia nacional e inclusive
internacional, inspirando a criação de outras
delegacias similares em todo o país e inclusive no
exterior. Na América Latina, treze países já
contam com delegacias da mulher e da criança. Desde
o início, essa invenção brasileira mostrou
que o problema da violência contra a mulher no país
era a regra, não a exceção, tornando
público um fenômeno que era visto como privado
e até normal.
Segundo a primeira delegada titular da primeira delegacia
da mulher, Dra. Rosmary Corrêa, no dia seguinte à
inauguração havia uma fila de 500 mulheres na
porta da delegacia. Assim, esse novo canal institucional voltado
especificamente às mulheres deu-lhes coragem para denunciar
a violência que sofriam em silêncio ou que, quando
denunciada, não era levada a sério pelos distritos
policiais. Em 1984, por exemplo, um ano antes da criação
da primeira delegacia da mulher, os distritos policiais no
município de São Paulo registraram cerca de
3.000 ocorrências oriundas de queixas de mulheres vítimas
de violência, ao passo que a primeira delegacia da mulher
registrou, sozinha, entre agosto de 1985 e agosto de 1986,
cerca de 7.000 ocorrências e atendeu 65.000 mulheres.
Desde então, o número de ocorrências registradas
aumentou em progressão geométrica. Isso fez
com que o Brasil fosse considerado campeão de violência
contra a mulher durante a IV Conferência Mundial sobre
a Mulher, promovida pelas Nações Unidas em Beijing
em 1995. A violência contra a mulher no Brasil tem-se
tornado cada vez mais visível e o número de
denúncias continua crescendo. No ano 2000, por exemplo,
foram registrados 310.058 boletins de ocorrência e termos
circunstanciados nas delegacias da mulher de São Paulo.
Convém lembrar, todavia, que esse elevado número
não significa necessariamente maior incidência
de violência. O maior número de delegacias da
mulher e a ampliação crescente de suas atribuições
provavelmente incentivam a denúncia e desnudam um fato
social que sempre existiu.
Em segundo lugar, a criação de delegacias da
mulher abriu um novo mercado de trabalho para policiais do
sexo feminino, contribuindo assim para maior representatividade
da mulher no sistema de justiça criminal. Até
1985, contavam-se 15 delegadas de polícia no estado
de São Paulo. Até fevereiro de 1999, o número
de delegadas chegou a 388. Ainda assim, predominam os policiais
do sexo masculino, em número de 3.102, como é
regra na magistratura, no Congresso Nacional e nos mais altos
cargos do Executivo.10
Obstáculos
à cidadania de gênero
As delegacias da mulher encontram, porém, uma série
de obstáculos para a ampliação do acesso
à justiça e a construção de uma
cidadania de gênero no Brasil. Em primeiro lugar, o
fato de haver mais mulheres na polícia não garante
maior sensibilidade e capacitação para lidar
com violência conjugal, estupro dentro e fora do casamento,
violência contra mulheres negras, violência policial
contra prostitutas, violência contra idosas, violência
contra lésbicas, assédio sexual, violência
contra crianças, enfim, toda uma gama de violências
sofridas por mulheres de variadas classes sociais, origens
étnicas e raciais, orientações sexuais,
idades, etc. A falta de institucionalização
de cursos de capacitação sob a perspectiva de
gênero, raça, classe e orientação
sexual é um dos maiores obstáculos à
mudança social potencialmente advinda da criação
de delegacias da mulher. Esse é um obstáculo
político que só poderá ser vencido com
a tenaz mobilização de organizações
não-govermentais de mulheres e das policiais que porventura
tiveram acesso a cursos de capacitação na ótica
de gênero.
Em segundo lugar, as delegacias da mulher enfrentam discriminação
e preconceito dentro da própria polícia, tanto
por parte de policiais do sexo masculino quanto de policiais
do sexo feminino. Desde o seu nascedouro, essas delegacias
foram alvo de escárnio. Certa vez, uma delegada titular
da primeira delegacia da mulher observou, de sua janela no
primeiro andar, um delegado que passava na calçada
cuspindo na placa da delegacia. A instituição
policial é marcada por hierarquias e por uma cultura
de hierarquização. Embora a lei não estabeleça
hierarquias entre os funcionários das delegacias da
mulher e dos distritos policiais, não raro as delegacias
da mulher são vistas como de valor inferior. Na visão
de muitos policiais, essas delegacias fazem mais um serviço
"social" do que propriamente policial. Consequentemente,
para esses policiais, os crimes ali apurados não são
"verdadeiros" crimes.11
Além dessas limitações culturais, as
delegacias da mulher enfrentam obstáculos típicos
de todo o aparato policial e judiciário. Há
precariedade material e de recursos humanos. No âmbito
material, somente as delegacias da mulher da capital dispõem
de computadores e estes não funcionam em rede. A maior
parte das viaturas não está equipada com rádio.
Nenhuma delegacia da mulher possui terminais para consulta
de antecedentes criminais. Quanto a recursos humanos, faltam
escrivãs de polícia. Algumas delegadas acumulam
funções com outras delegacias. Faltam casas-abrigo,
comprometendo-se a segurança da mulher e das crianças
em risco de vida.12 O estado de São Paulo dispõe
apenas de uma casa-abrigo, o COMVIDA, com capacidade para
cerca de 30 mulheres, acompanhadas de seus filhos.
Igualmente típico de todo o sistema de justiça
criminal, a maior parte das ocorrências (menos de 20%)
não dão lugar a inquéritos policiais.
A impunidade é assim dissimulada por uma aparência
de justiça. Com a criação dos Juizados
Especiais Criminais, o número de inquéritos
ficou ainda mais reduzido e a questão da impunidade
ganhou maior destaque.
Sem menosprezar o debate necessário acerca dos efeitos
dos Juizados Especiais Criminais na qualidade de justiça
produzida, há que se perguntar se a criminalização
da violência contra a mulher é realmente a melhor
solução para todas as formas de violência,
como, por exemplo, a violência conjugal, a violência
racial contra mulheres, a violência policial contra
prostitutas, a discriminação por orientação
sexual, etc. Uma vez que cada uma dessas formas de violência
envolve diferentes tipos de relações sociais,
a compreensão das mesmas e sua solução
devem ser igualmente diferenciadas.
Por outro lado, não se pode perder de vista que a criminalização,
mesmo não sendo eficaz, funciona como ameaça
e poder simbólico do estado para neutralizar a diferença
de poder que está na base das variadas formas de violência
contra a mulher. Ademais, mesmo que o poder neutralizante
do estado não seja eficiente para coibir de todo essas
violências, o mero fato de existirem delegacias da mulher
contribui para a construção de uma identidade
de gênero, gera uma certa auto-confiança nas
mulheres e lhes permite a articulação de um
certo senso de direitos.13Em um país marcado por graves
violações de direitos humanos como é
o caso do Brasil, essa pequena semente de cidadania não
pode ser desprezada.
--------------------------------------------------------------------
*Professora
de Sociologia da University of San Francisco EUA.
1
Ver Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. "Relatório
Final da Pesquisa Nacional sobre as Condições
de Funcionamento das Delegacias Especializados no Atendimento
às Mulheres", 2000.
2 A denominação das delegacias da mulher não
é uniforme em todo o país. No Rio de Janeiro,
por exemplo, são denominadas Delegacias Especializadas
no Atendimento à Mulher. No Rio Grande do Norte, são
chamadas de Delegacias Especializada em Defesa da Mulher.
3
Analiso essas negociações e relações
conflituosas em minha tese de doutorado intitulada "The
State, Feminism, and Gendered Citizenship: Constructing Rights
in Womens Police Stations in São Paulo."
University of California at Berkeley, 1999. Ver também
SANTOS, Maria Cecilia MacDowell dos. "Cidadania de Gênero
Contraditória: Queixas, Crimes e Direitos na Delegacia
da Mulher em São Paulo". In: AMARAL JÚNIOR,
Alberto do, PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.).
O Cinquentenário da Declaração Universal
dos Direitos do Homen. São Paulo: Edusp, 1999.
4
Dados da Assessoria Especial das Delegacias de Polícia
de Defesa da Mulher do Estado de São Paulo, hoje denominada
Serviço Técnico de Apoio às Delegacias
de Polícia de Defesa da Mulher DGP. Sobre o
número de ocorrências em outros estados, ver
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, op. cit. Ver também
AMARAL, Célia Chaves Gurgel do, LETELIER, Celinda Lílian,
GÓIS, Ivoneide Lima e AQUINO, Sílivia de. Dores
Visíveis: Violência em Delegacias da Mulher no
Nordeste. Edições REDOR/NEGIF/UFC, 2001.
5
Sobre o papel mediador das delegacias da mulher, ver BRANDÃO,
Elaine Reis, "Violência conjugal e recurso feminino
à polícia". In: BRUSCHINI, Crisitna e HOLLANDA,
Heloísa Buarque de (orgs.). Horizontes Plurais: novos
estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora
34; Fundação Carlos Chagas, 1998. Ver ainda
MUNIZ, Jacqueline. "Os direitos dos outros e outros direitosL
um estudo sobre a negociação de conflitos nas
DEAMs/RJ". In: SOARES, Luiz Eduardo (org.). Violência
e política no Rio de Janeiro. Rio de JaneiroL ISER/Relumé,
1996. Sobre o papel de "recriminalização"
da Lei Nº 9009/96, ver CAMPOS, Carmen Hein. "Violência
doméstica no espaço da lei". In: BRUSCHINI,
Crisitna e PINTO, Céli Regina (orgs.). Tempos e lugares
de gênero. São Paulo: Editora 34; Fundação
Carlos Chagas, 2001.
6
Dados do Serviço Técnico de Apoio às
Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher _ DGP. Igualmente
inexistente é a anotação de dados sobre
as vítimas e agressores, o que se fazia até
1994.
7
Nos demais foruns da capital, os juízes e funcionários
das varas criminais vêm acumulando funções
e atuando em Juizados Especiais Criminais improvisados nas
próprias varas. Não há dados sobre a
movimentação desses Juizados em São Paulo.
Em Porto Alegre, CAMPOS (op. cit.) aponta que os Juizados
Criminais são responsáveis pela "grande
movimentação processual da Justiça Penal"
e que setenta por cento dos processos julgados em 1998 referiram-se
à violência doméstica e à violência
contra a mulher.
8
Além do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, op.
cit., ver CAMPOS, op. cit., bem como MELO, Mônica de.
"Juizado especial criminal e o acesso à justiça
da mulher vítima de violência." Monografia
que recebeu o Prêmio "Procuradoria Geral do Estado
de São Paulo _ 2000".
9
Ver MASSUNO, Elizabeth. "Violência de gênero:
delegacia de defesa da mulher, é necessária?"
Núcleo de Estudos da Mulher e Relações
Sociais de Gênero _ NEMGE-USP, 1999.
10
Ver MASSUNO, op. cit.
11
Ver minha tese de doutorado, supra citada, e SANTOS, op. cit.
12
Ver MASSUNO, op. cit.
13
Nesse sentido, ver minha tese de doutorado, supra citada,
assim como BRANDÃO, op. cit. e MUNIZ, op. cit.
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