Pesquisa realizada pelo IBGE mostra que, em 1998, a população
brasileira do grupo de idade de 5 a 17 anos era de 43 milhões
de habitantes. Desse total, 7,7 milhões trabalhavam,
o que torna o Brasil um dos campeões do trabalho infantil
na América Latina. Apenas Haiti e Guatemala tinham
mais crianças inseridas no mercado de trabalho. Cerca
de 16% do trabalho doméstico infantil nas cidades não
é remunerado.
Trabalho
Infantil no Brasil: dilemas e desafios
Sven
Hilbig*
Introdução
Nas periferias urbanas pobres e na zona rural a infância
tem curta duração, ainda que as crianças
sejam consideradas meninos e meninas
(até 14 anos). É nesta fase que são socializados
no mundo do trabalho. Crianças e adolescentes trabalham
em todas as esferas: Eles cortam cana, colhem café
e laranjas, vendem doces e refrigerantes, vigiam carros, engraxam
sapatos, ajudam as mães em casa, se prostituem e ganham
dinheiro no tráfico de drogas.
Trabalho infantil não é um fenômeno novo
no Brasil. É quase tão velho como a própria
história do país. Desde o início da colonização
as crianças negras e indígenas eram incorporadas
ao trabalho. Com o desenvolvimento socioeconômico do
país a forma do trabalho infantil se modificou. Com
a imigração crescente da Europa e Japão,
pouco antes do final do século XIX, a revolução
industrial chegou ao Brasil. As novas formas de divisão
de trabalho facilitaram a próprio exercício
do trabalho e possibilitaram a inclusão da mão-de-obra
infantil a custos mais baixos, particularmente na industria
têxtil. No século XX, o forte processo de migração,
e conseqüentemente a urbanização, ampliaram
mais uma vez os ramos de atividade para as crianças.
Nas cidades as crianças e adolescentes ganham no setor
informal, principalmente na oferta de serviços e nas
atividades ilícitas (tráfico de drogas, prostituição,
etc.).
Em contraposição a essa milenar injustiça,
os esforços no sentido de eliminar o trabalho infantil
têm data recente. Só a partir do fim da década
de 80 foram aprovadas medidas jurídicas, políticas
e sociais no campo nacional e internacional. O mais importante
nessas novas leis é que estas tinham por objetivo não
apenas combater o trabalho infantil com sua proibição,
mas reconheciam a cidadania das crianças e dos jovens.
Com isso eles se tornam sujeitos de seus próprios atos
com direitos a serem defendidos. O trabalho infantil torna-se,
então, uma questão de direitos humanos. O objetivo
deste artigo é mostrar junto com os dados estatísticos
essas inovações.
A
apresentação de dados atuais
O Brasil é um dos países que apresenta altos
índices de trabalho infantil. Os dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) apontam que a população brasileira do
grupo de idade de 5 a 17 anos era, em 19981 , de 43 milhões
de habilitantes. Deste total, 7,7 milhões trabalhavam,
o que torna o Brasil um dos campões do trabalho infantil
na América Latina. Apenas Haiti e Guatemala tinham
mais crianças inseridas no mercado de trabalho. No
entanto, destaca-se um aspecto positivo: em comparação
com o ano 1992, onde 9,7 milhões das crianças
e adolescentes trabalhavam, o número se reduziu 20%
em termos absolutos.
Dentro deste processo as crianças de mais idade têm
maior participação no mercado de trabalho. Quase
meio milhão de crianças trabalhadoras eram menores
de 9 anos, mas a grande parte (42 %) das crianças e
adolescentes que trabalhavam tinha entre 16 e 17 anos de idade.
Para o grupo de idade de 17 anos, este universo representa
1,7 milhão de crianças, o que significa que
a metade da população do país nessa idade
trabalhava.
A situação jurídica só é
tema de um capítulo posterior. Mas anotar: a distinção
entre o grupo de idade de 16 e 17 anos e os menores desta
faixa é importante porque a Constituição
Federal proíbe em geral o trabalho para as pessoas
que são menores de 16 anos, enquanto que para os demais
a proibição é limitada para algumas formas
de trabalho.
Tipo
e gênero de trabalho infantil
Os dados estatísticos indicam que os meninos trabalham
em maior proporção que as meninas. O número
de crianças e adolescentes trabalhadores se divide
em quase 5 milhões de meninos e 2,7 milhões
de meninas. Ou seja, quase dois terço das crianças
e adolescentes que trabalham são do sexo masculino.
Existem duas explicações principais. Primeiro,
maior dificuldade de incorporação da mão-de-obra
feminina em setores não formais. Segundo, a maior utilização
dela em atividades domésticas, muitas vezes não
incorporadas às estatísticas oficiais. Nesta
atividade trabalham quase vinte vezes mais meninas do que
meninos. As meninas que trabalham como empregadas domésticas
são prejudicadas em vários sentidos. Além
do preconceito, elas sofrem com o grande esforço físico
e com frequentes abusos físicos e sexuais.
Trabalho
infantil nas zonas urbanas e rurais
As estatísticas sobre as regiões urbana e rural
demonstram, primeiramente, uma concentração
do trabalho infantil nas áreas urbanas, da ordem de
57%. Mas isso não significa que as crianças
e os adolescentes nas cidades tenham uma maior necessidade
de trabalhar. Observando-se a relação entre
as crianças e adolescentes trabalhadores com a quantidade
da população infantil nessas duas regiões,
a análise torna-se mais clara: enquanto no campo uma
de cada três crianças trabalha, na cidade apenas
13% das mesmas fazem o mesmo.
O trabalho infantil na região urbana se encontra principalmente
no setor informal, representando 40 % dessas atividades, sendo
que 16% do trabalho doméstico não é remunerado.
Nas cidades, 77% das crianças entre 10 e 17 anos recebem
remuneração. Já no meio rural, dois terços
das crianças e adolescentes não recebem salário.
Esse índice inclui as crianças que trabalham
com suas famílias. Quanto mais jovens são as
crianças e adolescentes no campo, maior o volume proporcional
de trabalho sem remuneração. O índice
de crianças de 10 anos não remunerado é
mais do que o dobro (88%) do que o dos adolescentes de 17
anos (40%).
Trabalho
infantil e as grandes regiões
A diferenciação regional mostra que a obrigação
de trabalhar é maior para as crianças do nordeste.
Quase um quarto, ou 3,3 milhões de crianças
nordestinas trabalham. Em termos absolutos o sudeste ocupa
o segundo lugar, com 2,2 milhões trabalhadores infantis,
apesar de, proporcionalmente, esta ser a região com
menos trabalhadores infantis, com 13% das crianças
e adolescentes inseridos no mercado de trabalho. A renda média
mensal das crianças no nordeste é de R$ 77,00,
enquanto os trabalhadores infantis no sudeste ganham mais
que o dobro, R$ 157,00.
As crianças que trabalham para o tráfico de
drogas representam um caso especial, pois recebem altos salários.
Os "fogueteiros", que soltam fogos de artifício
para avisar que a polícia chegou, recebem em torno
de R$ 50,00 por semana; os "soldados", que fazem
a segurança dos pontos-de-venda, e os "aviões",
que vendem cocaína e maconha, chegam a receber semanalmente
R$ 200,00.
A jornada das crianças trabalhadoras de 5 a 9 anos
é menor do que a das crianças mais velhas. Enquanto
as crianças mais jovens têm uma jornada média
de 12 horas semanais, as crianças de 10 a 13 anos trabalham
22 horas semanais e os adolescentes no grupo de 16 a 17 anos
têm uma média de até 37 horas semanais.
Nas cidades, a jornada média das crianças e
adolescentes é de 27 horas por semana. Na área
rural a jornada é de 34 horas semanais.
Trabalho
infantil e a educação
75% das crianças e adolescentes que trabalham também
freqüentam regulamente a escola. Isso representa um enorme
aumento em comparação aos anos anteriores: 57%
em 1992 e 64% em 1995. A evasão escolar, no entanto,
aumenta de acordo com a idade. Enquanto 90% do grupo de idade
de 5 a 13 anos freqüenta a escola, esse percentual diminui
para 76% no grupo de 14 e 15 anos e, para 63% no grupo de
16 e 17 anos.
Os dados também mostram que as chances de acesso à
escola pioram em função das circunstâncias
de trabalho das crianças e adolescentes. Nas regiões
urbanas a redução no acesso à escola
era de 16% e, para a área rural, cerca de 7%. Isso
gera um alto grau de analfabetismo 20% das crianças
na faixa de 10 a 14.
As
causas para o trabalho infantil
Existem diversos motivos para as crianças e adolescentes
se incorporarem ao mercado de trabalho. A pobreza é
o principal. Outra causa importante é a demanda do
mercado de trabalho por mão-de-obra barata. Além
do fato das crianças trabalharem por menos dinheiro,
elas são mais facilmente disciplinadas e não
estão organizadas em sindicatos.
Uma outra causa é a tradição socioeconômica
existente no Brasil. Mas é preciso diferenciar o trabalho
infantil tradicional, como o dos descendentes dos imigrantes
europeus, e os trabalhos infantis insalubres, perigosos ou
penosos em carvoarias, plantações de cana-de-açúcar,
de laranja ou pedreiras. A inserção no trabalho
nas famílias de imigrantes italianos, alemães
e poloneses do sul do país representa uma maneira de
ensinar um ofício e ajudar na renda dos pais. Embora
comecem o trabalho muito cedo, essas crianças não
deixam de freqüentar a escola. Uma situação
bem diferente é a das crianças que trabalham
pesado, sem nunca freqüentar a escola, trabalham pesado,
sem nunca freqüentar a escola.
O
que querem as crianças trabalhadoras?
A discussão entre afastar ou não as crianças
das atividades de trabalho, ou se existem situações
de trabalho aceitáveis para essas crianças,
está sempre presente. O tema é debatido pelos
próprios trabalhadores infanto-juvenis, pelos governos
e organizações que lutam pelos direitos das
crianças como a Organização Internacional
do Trabalho OIT e o Fundo das Nações
Unidas pela Infância UNICEF.
As crianças trabalhadoras, que estão organizadas
desde os anos 80 em alguns países da América
Latina, África Ocidental e Sudeste Asiático,
questionam o fim do trabalho infantil. Elas fazem objeções
contra a idade mínima legal para a admissão
do trabalho. Primeiro, as leis se restringem à proibição
do trabalho infantil, mas não chegam a abordar a principal
causa do problema: a pobreza. Portanto, essas crianças
dizem "sim para o trabalho com dignidade; e não
à exploração."
Essa discussão causou uma mudança de comportamento
na OIT e na UNICEF, que já distinguem o trabalho explorador
e pernicioso socialmente (child labour) do trabalho que não
é econômico (child work). Enquanto o child labour
deve ser proibido, o child work pode ser aceito por ter um
papel na socialização infantil: "O trabalho
pode ser bom e útil para o desenvolvimento físico,
psíquico, social e a formação moral,
se o mesmo não afetar a formação escolar,
o descanso e repouso" (UNICEF, citado em Liebel, 1998).
A OIT define child labour nas seguintes condições:
"crianças muito jovens que trabalham nas fábricas;
longas jornadas de 12 a 16 horas por dia; atividades que exigem
demais das crianças no sentido físico e psíquico;
trabalho na rua sob condições insalubres e perigosas;
e atividades sem liberdade em condições que
ferem os direitos humanos, como diversas formas de escravidão
ou abuso sexual".
Os
fundamentos jurídicos para combater o trabalho infantil
A seguir, sistematizamos os principais Convênios internacionais
ratificados pelo Brasil e os instrumentos legais de aplicação
nacional que devem proteger as crianças contra a exploração
econômica.
a)
Os Convênios internacionais:
(i)
A Convenção n° 138 da OIT fixa como idade
mínima para o trabalho infantil, em geral, 15 anos.
Em junho de 1999, a mudança de consciência dentro
da OIT se manifestou na Convenção n° 182
(instituída em novembro 2000 e ratificada pelo Brasil
em fevereiro 2001), se posicionando contra as atividades infantis
mais penosas. Os estados-partes comprometem-se a dar passos
imediatos para a prevenção e erradicação
das diversas formas de escravidão; trabalhos forçados;
prostituição infantil; atividades ilícitas;
e atividades que ferem a saúde, a segurança
e a moral das crianças, criando condições
e promovendo o acesso a eduação básica.
(ii)
Em 1989 foi aprovado a Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos da Criança. Enquanto as convenções
antigas se restringiam a um caráter apelativo, essa
convenção regulamenta pela primeira vez os direitos
das crianças de uma forma obrigatória. O artigo
32 obriga os Estados-partes a proteger as crianças
contra a exploração econômica, física
e psíquica. Ao contrário dos antidos convênios,
a Convenção da Criança não só
insiste na necessidade de proteção especial
das crianças, mas também lhes assegura os direitos
liberais clássicos, como por exemplo a liberdade de
expressão e informação e a liberdade
de reunião, passando a considerar as crianças
como sujeitos autônomos de direitos, ou seja, como portadores
de direitos e liberdades.
b)
a legislação nacional
Em 1891, foi promulgada a primeira lei para a proteção
da infância. No entanto, no decorrer dos cem anos subseqüentes,
ela não serviu efetivamente para proteger as crianças
que trabalhavam. A Constituição Federal de 1988
e o Estatuto da Crianca e do Adolscente, promulgado em 1990,
representaram uma inovação e uma importante
brecha na luta pela erradicação do trabalho
infantil.
(i)
A Constituição Federal2 proíbe o trabalho
de menores de 16 anos, permitindo, no entanto, o trabalho
a partir dos 14 anos de idade, desde que na condição
de aprendiz. Aos adolescentes de 16 a 18 anos está
proibida a realização de trabalhos em atividades
insalubres, perigosas ou penosas, trabalho que envolva cargas
pesadas, jornadas longas, e, ainda, trabalhos em locais ou
serviços, que lhes prejudicam o bom desenvolvimento
psíquico, moral e social.
(ii)
Inspirado na Constituição Federal, o Estatuto
da Criança e do Adolescente3 valoriza os direitos fundamentais
das crianças e dos adolescentes. O Estatuto reservou
um capítulo especial à questão do trabalho.
Os seus regulamentos são similares as definições
da Constituição Federal no tocante à
idade mínima e às regulamentações
para os aprendizes. No entanto, o Estatuto estabelece direitos
básicos para as crianças e os adolescentes e
exige a formação dos conselhos de direito e
conselhos tutelares. Os conselhos de direito para as crianças
e adolescentes devem ser constituir no nível municipal,
estadual e federal, por entidades governamentais e não-governamentais.
O objetivo desses conselhos é fortalecer e promover
o controle social das políticas públicas em
torno das crianças e dos adolescentes em todos os níveis
de ação.
Bibliografia:
Liebel,
Manfred; Overwien, Bernd; Recknagel, Albert. Arbeitende Kinder
stärken, 1998.
Schwartzman,
Simon, Organização Internacional do Trabalho
(Brasil), Trabalho Infantil no Brasil, 2001.
Fundação
Abrinq pelos Direitos da Criança: Trabalho Infantil
(CD-ROM), 1997.
*Pesquisador
da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
1
Os dados utilizados neste capitulo são (estimativas)
baseados no relatório "Trabalho Infantil no Brasil"
da Organização Internacional do Trabalho Brasil.
2
Emenda Constitucional n° 20, aprovada em 16 de dezembro
de 1998.
3 Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
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