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Relatórios


Segundo dados preliminares de uma pesquisa realizada pela OIT-Brasil, a procedência dos trabalhadores resgatados da escravidão no Pará é do próprio estado do Pará em 35% dos casos, do Maranhão em 22%, do Piauí em 14%, do Tocantins em 13%. Um contingente importante desses trabalhadores (14%) já é "do trecho", tendo perdido qualquer vinculação com seu local de origem e sua família. Olhando para a origem desses trabalhadores, verifica-se que 8% somente são do Pará, enquanto 39% são do Maranhão, 22% do Piauí e 16% do Tocantins.

Trabalho escravo no Pará
A violação do direito à liberdade e ao trabalho

Fr. Xavier Plassat*


1. A prática do trabalho escravo virou rotina no sul do Pará

A realidade do trabalho escravo no Pará não é novidade. As políticas públicas de incentivos financeiros e fiscais desenvolvidas a partir dos anos 60 têm promovido a afluência neste Estado de milhares de investidores e/ou aventureiros que não hesitaram duas vezes em se aproveitar de todo tipo de meios para implementar projetos pautados na maximização do lucro no mínimo de tempo, muitas vezes sem nenhuma relação com os projetos oficialmente aprovados e subsidiados. Tanto fazia. Essas terras onde corriam rios de dinheiro público não iam ser, e por muito tempo, alvo de nenhuma ação fiscal do Estado: ali o Estado, financiador da penetração predatória desses grupos, renunciou às suas atribuições de fiscalizador da lei e de ordenador da ocupação territorial.

Desde muitos anos, seguindo ou retomando uma já longa tradição de peonagem típica do Grão Pará, notícias de trabalho escravo circulavam nas bandas de Santana, Conceição do Araguaia ou Marabá. A partir de casos que ficam em todas as memórias como o da fazenda da Volkswagen, circulavam números e relatos dramáticos, impressionantes, porém inverificáveis já que não acontecia nenhuma fiscalização ou investigação. Nos últimos anos, a realidade comprovada e a extensão do trabalho escravo passaram a merecer destaque quase que semanal no noticiário, tanto nacional como internacional. Nos últimos anos, a bem da verdade, o alastramento dessa prática criminosa tem sido devastadora.

De 2000 a 2003 (setembro), houve denúncia (na CPT) de cerca de 10.000 trabalhadores (9.906) em quase 300 fazendas do Pará (298), numa escala que foi crescendo de ano em ano: 16 denúncias e 334 trabalhadores em 2000, 24 casos e 1355 trabalhadores em 2001, 117 casos e 4.333 trabalhadores em 2002 e, durante os primeiros 9 meses de 2003, 143 casos e 3.889 trabalhadores. Por si só o Pará acumulou, neste período de 2000 a 2003, 74% do total nacional de trabalhadores envolvidos em denúncias de trabalho escravo (13.331). Essa proporção só baixou em 2003 em decorrência do aparecimento de casos de trabalho escravo onde ainda não se suspeitava que existisse, como Bahia e Rio de Janeiro (cf planilhas A e B). Tudo indica que o icebergue completo do trabalho escravo fica ainda bem longe das vistas da sociedade pois somente escapam da ocultação criminosa os casos que alguns trabalhadores fugitivos, enfrentando riscos dos mais variados, conseguem levar ao nosso conhecimento. Estimativas recentes levantaram hipótese de até 25.000 trabalhadores reduzidos à condição análoga à de escravo (O Liberal, 08.03.03).

O setor agropecuário e madeireiro é quem mais se utiliza da prática do trabalho escravo como sistema de trabalho hoje considerado por muitos até como normal, considerando as condições específicas da região, e o dinamismo próprio da classe empresarial. Mais de 80% dos trabalhadores resgatados da escravidão trabalham no desmatamento preparatório a abertura de fazendas e criação de pastos, na pecuária (limpeza de pasto, construção de cercas, roço de juquira), ou na agricultura (catação de raiz, colheita). Ali assumem as tarefas braçais mais pesadas, na qualidade de trabalhadores temporários, no regime da empreita, sem direito a nenhum dos direitos concedidos pela CLT aos trabalhadores permanentes daquelas fazendas.

2. O trabalho escravo no Pará funciona como parte de um sistema perverso, de âmbito estadual e interestadual

Uma análise dos 39 municípios paraenses com ocorrência de trabalho escravo nos últimos 3 anos revela que em 19 deles localizaram-se 85% das denúncias (239 fazendas denunciadas) e 93% dos trabalhadores denunciados como escravizados (8.629). São estes: Parauapebas, Canaã dos Carajas, Xinguara, Rio Maria, Redenção, Piçarra, Sapucaia, Sta Maria das Barreiras, Itupiranga, Água Azul do Norte, Bannach, Novo Repartimento, Curionópolis, Cumaru do Norte, Marabá, Dom Elizeu, Pacajá, Santana do Araguaia, São Félix do Xingu.

Segundo dados preliminares de uma pesquisa realizada pela OIT-Brasil, a procedência dos trabalhadores resgatados da escravidão no Pará é do próprio estado do Pará em 35% dos casos, do Maranhão em 22%, do Piauí em 14%, do Tocantins em 13%. Um contingente importante desses trabalhadores (14%) já é "do trecho", tendo perdido qualquer vinculação com seu local de origem e sua família. Olhando para a origem desses trabalhadores, verifica-se que 8% somente são do Pará enquanto 39% são do Maranhão, 22% do Piauí e 16% do Tocantins.

Entre os municípios de maior aliciamento de trabalhadores para esse tipo de empreita, predominam no Pará os de Redenção, Santana, Xinguara, Curionópolis, Conceição, Marabá e Rio Maria.

O fato é que existe entre esses estados e esses municípios, sim, uma verdadeira indústria do tráfico de trabalhadores envolvendo, a partir das empreitas encomendadas pelos fazendeiros, uma rede complexa de intermediários onde predominam: o empreiteiro conhecido como gato, e sua rede de reta-gatos, o dono da pensão peoneira, o transportador clandestino, o fiscal da barreira interestadual, o policial de plantão. Segundo investigação apresentada em livro recente por Binka Le Breton, todos estes ganham um bom dinheiro com a intermediação do crime. Ao lado da violência física e/ou psicológica, do isolamento, da humilhação, e da mais abjeta superexploração, o artifício da dívida impagável, fabricada e amarrada nas costas do peão para ser cobrada sem fim e assim garantir a sua permanência no trabalho forçado, tem se tornado o instrumento mais comum de coação do trabalhador.

3. Um crime complexo que mata homens e natureza

A prática do crime de trabalho escravo raramente ocorre sozinha mas sim associada, em conexão criminosa, à prática de vários outros crimes tais como homicídio, formação de quadrilha, desmatamento ilegal, sonegação tributária e previdenciária, falsidade ideológica, grilagem de terra, invasão de áreas indígenas e, segundo investigações recentes do MPF na região do Iriri-Terra do Meio, porte e tráfico de armas, e narcotráfico. Mesmo assim, ou por isso talvez, tem sido extremamente difícil levar a julgamento os infratores flagrados pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, em ações conjuntas realizadas com a Polícia Federal e o Ministério Público. Dos 124 casos fiscalizados no Pará nos últimos 4 anos, resultando na libertação de 3.439 trabalhadores escravizados (40% do total nacional neste período: 8.650), não temos conhecimento de nenhuma condenação criminal consistente, nos termos do disposto pelo Código Penal Brasileiro. De 1995 a 2001, no Sul do Pará, houve só 2 condenações de proprietários. E só 4 empreiteiros foram condenados, alguns a doar cestas básicas.

A omissão começa já pela ausência de investigação séria e a ausência consecutiva de denúncia dos criminosos na Justiça. Entre 1996 e 2003, identificamos somente 49 pessoas denunciadas por este tipo de crime, quer na Justiça Federal quer na Justiça Estadual. Relacionadas com essas 49 denúncias, só foram prolatadas até o momento 24 sentenças. Do total das pessoas sentenciadas, 80% ficaram sem pena e somente 20% receberam punição. Interessante é observar o motivo da ausência de pena: a metade se deve à prescrição, 27% à falta de interesse processual, e 21% à absolvição pura e simples dos réus. Entre os sentenciados, 41% se beneficiaram com a prescrição, 21% com a falta de interesse processual, 17% foram absolvidos, 13% receberam pena alternativa, 4% tiveram prisão preventiva decretada e outros 4% tiveram condenação à prisão em regime semi-aberto.

Como é de se esperar, tamanha impunidade funciona como o mais poderoso incentivador ao recrudescimento da prática criminosa. Basta olhar para o ranking da reincidência elaborado pela CPT para o último ano de 2002 onde verificamos, entre os 10 maiores reincidentes identificados, uma média de reincidência de 5 vezes, sendo campeões os seguintes fazendeiros: Jairo Andrade (com 10 denúncias nos registros da CPT), Grupo Quagliato (com 9 citações), Romeiro Albuquerque (7), Antônio Barbosa (6), Lima Araújo Agropecuária (4).

4. Os caminhos da erradicação

Por certo, a repressão nunca basta sozinha para resolver questões complexas, enraizadas em práticas de longa tradição. No caso do trabalho escravo, fica óbvio, porém, que a melhor prevenção, no curto prazo, passa pela efetivação e intensificação da repressão e da punição dos responsáveis pelo crime. Libertar levas de trabalhadores, como fazem os fiscais do trabalho, nunca erradicará o trabalho escravo por si só. Em ações arriscadas e corajosas, que foram intensificadas nos últimos tempos em função da priorização dessa política pelo Governo Federal (o qual recentemente adotou um Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo) e da multiplicação das denúncias, os fiscais conseguem no máximo impor ao infrator o pagamento dos direitos que vinham sendo sonegados aos trabalhadores, e dar regularização trabalhista provisória à um ilícito criminoso bem mais complexo.

A impunidade pelo aliciamento e pela prática do trabalho escravo incentivam a reincidência e a extensão do crime, como também a ausência de políticas ousadas de geração de emprego e de reforma agrária favorecem a recaída das vítimas nas mesmas e permanentes armadilhas, pois o perverso sistema que sustenta essas práticas continua inalterado. A erradicação do trabalho escravo passa por soluções de curto prazo (repressão e punição efetiva) e de médio e longo prazo (geração de alternativas de trabalho e de desenvolvimento regional, políticas públicas: educação, acesso à terra, emprego).

Procuradores e Juízes do Trabalho audaciosos têm inovado recentemente com inéditas ações visando impor ao empregador recalcitrante o pagamento imediato dos direitos arbitrados pelos fiscais (bloqueio de contas, indisponibilidade e penhora do patrimônio) ou penalizar o infrator com condenação ao pagamento de pesadas indenizações pelos danos morais sofridos pelos trabalhadores e pela sociedade. A Justiça do Trabalho tem inclusive se deslocado até o local do flagrante para agilizar sua intervenção (Varas itinerantes). Um caso típico na atualidade é a Ação Civil Pública impetrada em outubro de 2003 pelo Ministério Público do Pará contra a Lima Araújo Agropecuária - proprietária das fazendas Estrela de Maceió e Estrela das Alagoas, ambas no sul-Pará - com pedido de indenização por danos morais coletivos chega ao valor incomum de 22 milhões de reais, ou seja: 40% do valor estimado dessas fazendas onde, em 4 anos consecutivos, e em 4 ocasiões, o Ministério do Trabalho flagrou a utilização de trabalho escravo, resgatando dali 180 trabalhadores.

No plano criminal, porém, a prevalência até hoje da teoria jurisprudencial da incompetência federal para esse tipo de crime - embora contrária ao ordenamento constitucional - tem inviabilizado uma efetiva ação penal e servido como fator incentivador. Essa jurisprudência tem de ser revertida, nas instâncias superiores da Justiça do país ou na lei. Enquanto isso não ocorrer, a Justiça comum continua se pautando na lerdeza e na indiferência - se não na objetiva conivência - para manter engavetados, até vencer a prescrição, os casos a ela submetidos ou devolvidos pela Justiça Federal. Às penalidades já aplicáveis ao crime de trabalho escravo, precisa ainda acrescentar com urgência penas financeiras e econômicas suscetíveis de exercer um papel dissuasivo real e imediato: confisco da terra, vedação e corte de qualquer financiamento ou licitação pública. Ao punir o crime, que se elimine, enfim, essa incitação legal ao avanço do latifúndio, da destruição ambiental e do mal-desenvolvimento do país. Erradicar o trabalho escravo no Pará e no Brasil como um todo exige, sob o impulso de uma sociedade acordada e mobilizada, o empenho irrestrito do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.


Fr. Xavier Plassat é Coordenador da Campanha nacional da Comissão Pastoral da Terra contra o Trabalho Escravo