|   Situação de Direitos Humanos dos
 Povos Indígenas no Brasil no ano 2000
 Rosane 
                    F. Lacerda*           I 
                     Introdução  Estima-se 
                    que há 500 anos, a população indígena 
                    em terras que viriam a formar o Brasil girava em torno de 
                    cinco milhões de habitantes[1]. Desde então, 
                    com a consolidação do domínio colonial 
                    que sofreu, esta população foi vitimada por 
                    um processo de dizimação, tanto através 
                    da disseminação de doenças quanto pela 
                    força das armas, situação que se estendeu 
                    ainda ao século XX com a expansão das fronteiras 
                    econômicas regionais[2]. O completo extermínio 
                    dos povos indígenas no país não ocorreu, 
                    mas restou bastante inculcada no senso comum a idéia 
                    da inevitabilidade do seu completo desaparecimento. Ocorre 
                    que hoje, no limiar do século XXI e passados 500 anos 
                    do início desse processo de despopulação, 
                    se pode comprovar que a idéia do crepúsculo 
                    indígena não se sustenta, como o comprovam, 
                    por exemplo, os povos tidos como extintos, e que nas últimas 
                    duas décadas passaram a reafirmar com veemência 
                    a sua identidade étnica própria[3]. Além 
                    disso, há que se considerar que embora os números 
                    não sejam precisos, o certo é que cada vez mais 
                    se torna evidente que esta população vem sendo 
                    numericamente subestimada. Para o Governo Federal, que considera 
                    apenas a população residente nas terras indígenas 
                    oficialmente reconhecidas e os grupos isolados, haveria 330 
                    mil índios[4]. Porém, se acrescentarmos a esse 
                    número os fornecidos pelo IBGE  Instituto Brasileiro 
                    de Geografia e Estatística quanto aos residentes nas 
                    cidades (150.891[5]), mais os referentes aos povos considerados 
                    ressurgidos, teríamos um total de cerca de 510 mil 
                    indígenas, distribuídos em algo em torno de 
                    225 Povos, falantes de 180 línguas diferentes. Seja 
                    como for, o fato é que no Brasil, após 500 anos, 
                    ainda não se sabe ao certo quanto são os índios 
                    existentes, o que aponta para a necessidade urgente da realização, 
                    por parte do Governo Federal, de um censo específico 
                    para que se possa ter uma visão mais precisa da realidade 
                    indígena e que sirva de base para uma política 
                    indigenista que efetivamente promova a proteção 
                    dos direitos desses grupos étnicos conforme determina 
                    a Constituição Federal. É 
                    o caso, por exemplo, da demarcação e proteção 
                    às terras indígenas. Atualmente, o número 
                    de terras com procedimento administrativo de demarcação 
                    concluído (homologadas e registradas) é de 222, 
                    o que consistiria, para o Governo Brasileiro, em mais de 47%[6] 
                    do que entende ser o número total de terras indígenas. 
                    Ocorre que aqui, como no caso da dimensão populacional, 
                    os números do Governo encontram-se aquém da 
                    realidade, pois desconsideram a existência tanto das 
                    terras dos povos chamados ressurgidos, quanto das terras daquelas 
                    comunidades que foram há não muito tempo expulsas 
                    de seus locais próprios, e que vivem compulsoriamente 
                    em terras que lhes são estranhas. Nessas condições, 
                    tem-se cerca de 178 terras indígenas, cujas comunidades 
                    ou povos reivindicam serem incluídas nos estudos de 
                    identificação e delimitação a 
                    cargo de Equipe Técnica do órgão indigenista 
                    oficial. Seriam, portanto, 741 terras indígenas, das 
                    quais 503 (68%) ainda aguardando os mais diversos tipos de 
                    providências quanto ao procedimento administrativo de 
                    demarcação:  
                     
                      | 178 
                        terras | Aguardando 
                        inclusão no rol de terras a identificar |   
                      | 122 
                        terras | Oficialmente 
                        a identificar, aguardando Portarias de constituição 
                        de GTs de identificação |   
                      | 47 
                        terras | Aguardando 
                        Portarias Declaratórias do Ministro da Justiça |   
                      | 62 
                        terras | Aguardando 
                        Decretos de Homologação do Presidente da 
                        República |   
                      | 94 
                        terras | Aguardando 
                        Registro no Cartório de R. de Imóveis e 
                        na Delegacia do Patrimônio da União |  Assim, 
                    passados sete anos do prazo dado pela Constituição 
                    Federal para a demarcação de todas as terras 
                    indígenas no Brasil, apenas 32% efetivamente o foram. 
                     E 
                    a este problema se soma outro, certamente ainda mais grave 
                    do ponto de vista indígena: o das invasões. 
                    Sem exagero, pode-se afirmar que cerca de 85% das terras indígenas 
                    (incluindo-se as demarcadas) são objeto dos mais diversos 
                    tipos de invasão, que vão do esbulho possessório 
                    à utilização das terras indígenas 
                    para o desenvolvimento de projetos de interesse governamental 
                    (projetos de colonização, abertura de estradas, 
                    hidroelétricas, linhas de transmissão, hidrovias, 
                    ferrovias, gasodutos, oleodutos, minerodutos, criação 
                    de unidades de conservação ambiental, etc.), 
                    passando pelas invasões sazonais para a exploração 
                    de recursos naturais (extração de madeira, caça, 
                    pesca, coleta, etc.). Ambas 
                    as situações  a demora na demarcação 
                    das terras e os atos de invasão e utilização 
                    dos recursos naturais - consistem em violações 
                    de dispositivos constitucionais bastante claros, como por 
                    exemplo, o que determina à União Federal o dever 
                    de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas (art. 231, 
                    caput), o que reconhece os direitos originários e imprescritíveis 
                    dos índios à posse dessas terras (art. 231, 
                    caput e § 4.º) e ao usufruto exclusivo das riquezas 
                    naturais existentes em seu solo, rios e lagos (art. 231, § 
                    2.º), e a nulidade e extinção dos efeitos 
                    jurídicos dos atos que disponham sobre a ocupação, 
                    posse, domínio dessas terras e usufruto daquelas riquezas 
                    naturais (art. 231, § 6.º). Embora 
                    possam ser consideradas como atos de violência em si 
                    mesmos, por consistirem em violações dos direitos 
                    territoriais indígenas e ao seu patrimônio, tais 
                    situações colocam-se também, via de regra, 
                    como as principais fontes geradoras da maioria dos casos de 
                    violações de Direitos Humanos pelos quais passam 
                    os índios, seja individualmente ou coletivamente considerados. 
                     Veremos 
                    a seguir uma exposição preliminar da situação 
                    de violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas 
                    no Brasil, referente ao ano 2000, a partir dos principais 
                    dados até o momento coletados pelo Conselho Indigenista 
                    Missionário  Cimi em todo o País. II  A violência contra os Povos Indígenas 
                    no ano 2000.
   II. 
                    1  As violências e as comemorações 
                    oficiais aos 500 anos do Descobrimento. Para 
                    que se possa melhor dimensionar a situação dos 
                    direitos humanos dos Povos Indígenas no Brasil no decorrer 
                    do ano 2000, é preciso se considerar primeiro a profunda 
                    significação do próprio ano em si para 
                    estes Povos. Trata-se do marco de um processo de 500 anos 
                    de holocausto, que se seguiu como efeito direto da instalação 
                    das relações de dominação coloniais 
                    inicialmente trazidas pela Coroa Portuguesa, e mais tarde 
                    expandidas pelo próprio modelo político-econômico 
                    adotado pelo Estado Brasileiro.  Não 
                    obstante, o tratamento governamental dispensado a este momento 
                    histórico, ou seja, as comemorações oficiais 
                    aos 500 anos, nem de longe foi indicativo de uma postura de 
                    reconhecimento e revisão dessas relações 
                    de dominação. Muito pelo contrário. Dotadas 
                    de indisfarçável cunho triunfalista, as comemorações 
                    oficiais  desde os seus preparativos até a sua 
                    execução - foram levadas a cabo através 
                    da reedição incrivelmente despudorada de práticas 
                    violadoras de direitos fundamentais, acabando por agudizar 
                    mais ainda as tensões já existentes entre Povos 
                    Indígenas e Estado.  De 
                    modo geral, as violências giraram em torno de dois eixos. 
                    O primeiro deles consistiu na forma desrespeitosa como as 
                    instituições governamentais encaminharam a implementação 
                     dentro do próprio espaço territorial 
                    indígena, do seu projeto comemorativo. Foi o caso do 
                    Museu Aberto do Descobrimento, implantado em praticamente 
                    toda a extensão da Terra Indígena Coroa Vermelha 
                    (Pataxó), consistindo por isso em puro ato de invasão. 
                    Considerada favela pelo então Ministro 
                    do Esporte e Turismo Rafael Greca[7] (PFL/PR), a aldeia foi 
                    arquitetonicamente transformada para satisfazer o gosto dos 
                    turistas, mas com problemas que foram desde o pequeno tamanho 
                    das casas e ausência de banheiro, a denúncias 
                    de superfaturamento. Com o projeto, os índios só 
                    podem reformar as suas casas com autorização 
                    expressa do poder público, o que se revela uma intromissão 
                    indevida no modo de vida Pataxó. Contrariando todos 
                    os preceitos constitucionais, parte da área também 
                    foi transformada, ilegalmente, em Área de Proteção 
                    Ambiental  APA. A antiga cruz de madeira existente no 
                    local, como marco da primeira missa celebrada em solo brasileiro, 
                    foi também, sem qualquer consulta à comunidade, 
                    substituída por uma enorme cruz de aço, metal 
                    símbolo da dominação e do holocausto 
                    indígena: a submissão e a morte pela espada. 
                    Enquanto isso, espremidos em uma ínfima porção 
                    de terras, os Pataxó de Coroa Vermelha sequer possuem 
                    local para enterrar seus mortos.  O 
                    segundo eixo consistiu na repressão às manifestações 
                    das comunidades, povos e organizações indígenas 
                    em relação ao evento histórico dos 500 
                    anos. Foi o que aconteceu inicialmente com o Monumento à 
                    Resistência Indígena em Coroa Vermelha. Entendendo 
                    possuir o direito de em suas próprias terras poder 
                    manifestar artisticamente o significado dos 500 anos do ponto 
                    de vista indígena, a Comunidade Pataxó local 
                    (Santa Cruz de Cabrália / BA) iniciou a construção 
                    de um monumento, junto à Cruz marco da primeira missa. 
                    Em 04 de abril, por volta das 10 h da noite, sem aviso prévio 
                    e sem mandado judicial, a área foi invadida por cerca 
                    de 200 soldados da Polícia Militar da Bahia (PM-BA), 
                    fortemente armados, que com o auxílio de tratores destruíram 
                    completamente o monumento. Ainda permaneceram no local durante 
                    horas, submetendo a comunidade a toda sorte de constrangimentos, 
                    inclusive ameaças de expulsão dos índios 
                    de suas próprias casas caso esboçassem alguma 
                    reação. A invasão pela PM-BA se repetiu 
                    no início da manhã de 22 de abril, em perseguição 
                    a um grupo de militantes do movimento negro que procurava 
                    abrigo no local, fugindo às bombas de gás lacrimogêneo 
                    e de efeito moral atiradas pela própria PM com o objetivo 
                    de impedir manifestações de protesto contra 
                    o Governo. Poucas horas depois, quatro kms dali, a Tropa de 
                    Choque e Cavalaria da PM-BA, cercam e atacam a Marcha Indígena 
                    2000  formada por três mil índios de todas 
                    as partes do País e uma multidão de colaboradores 
                    e simpatizantes da causa indígena, impedindo-os de 
                    chegar à cidade de Porto Seguro, onde os índios 
                    fariam rituais pela passagem dos 500 anos. Cerca de 70 índios 
                    ficaram feridos, e vários tiveram problemas respiratórios 
                    por causa dos gazes inalados. Muitos desses índios 
                    possuíam ordens de Salvo Conduto expedidas pela Justiça 
                    Federal do Acre, em Ação de Hábeas Corpus 
                    Preventivo ajuizada pelo MPF, o que lhes deveria garantir 
                    o respeito aos seus direitos constitucionais de livre manifestação 
                    de pensamento, de reunião pacífica, de ir, vir 
                    e ficar. A repressão policial militar arranhou até 
                    mesmo o Estado de Direito.  Assim, 
                    diretamente associadas às comemorações 
                    oficiais pela passagem dos 500 anos do chamado Descobrimento, 
                    foram registrados no ano 2000 contra os indígenas, 
                    os mais diversos tipos de práticas tipificadas como 
                    crimes de abuso de autoridade, entre os quais: atentados à 
                    liberdade de locomoção, à inviolabilidade 
                    de domicílio, à incolumilidade física 
                    do indivíduo, além de ameaças e danos 
                    materiais e morais. Pelo menos no caso da agressão 
                    à Marcha, a pedido do movimento indígena, o 
                    Ministério Público Federal - MPF vem estudando 
                    o ajuizamento de uma ação de reparação 
                    por danos morais em benefício das vítimas do 
                    incidente.  II. 
                    2  Violências em geral.Fora do âmbito das comemorações relativas 
                    aos 500 anos, o ano foi também marcado pela continuidade 
                    das mais variadas violências contra os Povos Indígenas. 
                    Embora os dados relativos ao período ainda não 
                    estejam concluídos, já se pode constatar, como 
                    situação de destaque, o papel de agentes do 
                    poder público na prática desses atos de violação. 
                    Vejamos alguns exemplos, lembrando-se que a estes somam-se 
                    os casos anteriormente mencionados, também praticados 
                    por agentes do poder público:
 · 
                    Terra Indígena Truká (Cabrobó/PE). Janeiro, 
                    Policiais Militares tentam invadir a área a pretexto 
                    de perseguição a supostos ladrões. São 
                    detidos por membros do MPF e deixados sob custódia 
                    temporária no Posto local da Polícia Rodoviária 
                    Federal. Minutos depois são resgatados por seus pares. 
                    Em 19 de agosto, a área é invadida por um contingente 
                    de 60 Policiais Federais, com uso de um helicóptero 
                    e 11 viaturas. Com base num mandado genérico de busca 
                    e apreensão expedido pelo juízo da Vara Federal 
                    de Petrolina (PE), os policiais agem de forma abusiva, atirando 
                    bombas de gás sobre a comunidade, que entra em estado 
                    de pânico e revolta. Alguns índios inicialmente 
                    presos voltam para casa com sinais de tortura. · 
                    Estado do Acre. 15 de fevereiro. Em entrevista concedida ao 
                    Programa Canal Verdade, da TV Rio Branco, o Deputado Federal 
                    José Aleksandro refere-se aos Povos Indígenas 
                    de maneira ofensiva e preconceituosa, o que lhe acarreta uma 
                    representação ao MPF com base na qual é 
                    ajuizada contra o parlamentar uma Ação Civil 
                    Pública com pedido de reparação por danos 
                    morais.  · 
                    Terra Indígena Alto Tarauacá (Jordão/AC). 
                    Maio/junho. O Vereador Alton Farias, do município local, 
                    participa da invasão da terra indígena para 
                    exploração ilegal de madeira e caça, 
                    sendo mandante do crime de ocultação do cadáver 
                    de um índio isolado assassinado pelo grupo de invasores. · 
                    Terra Indígena Boto Velho (Ilha do Bananal  TO). 
                    Agosto, funcionários do Instituto Brasileiro do Meio 
                    Ambiente  IBAMA, do Ministério da Justiça, 
                    impedem a construção de uma escola na aldeia 
                    indígena Boto Velho, habitante tradicional da região, 
                    sob o pretexto da proteção à Unidade 
                    de Conservação Ambiental instalada na terra 
                    indígena. Impedem também o exercício 
                    tradicional da pesca pelos índios Javaé (no 
                    próprio rio Javaé), causando grande revolta 
                    entre os membros da comunidade. · 
                    Comunidade Guarani do Araçaí (SC). 19 de outubro. 
                    Cumprindo Mandado Liminar de despejo da Comunidade expedido 
                    pelo Juiz Federal da 1.ª Vara em Chapecó, a PM-SC 
                     sem intimação prévia da Funai 
                    nem do MPF, cerca a área às seis horas da manhã, 
                    dando 7 minutos para a desocupação do local. 
                    Aos gritos e empurrões (inclusive contra mulheres com 
                    bebês no colo), os PMs destróem os barracos e 
                    colocam os índios em ônibus com destino à 
                    Terra Indígena Nonoai, no Rio Grande do Sul. Por ordem 
                    do Juiz federal, a PM monta barreiras impedindo o ingresso 
                    de índios no estado de Santa Catarina, provenientes 
                    do RS. · 
                    Terra Indígena Yanomami (RR). Setembro. Soldados do 
                    4.º Pelotão de Fronteira (PEF) do Exército, 
                    lotados em Surucucu, são acusados[8] de várias 
                    violações contra os índios Yanomami: 
                    abuso sexual de índias em troca de alimentos (com possibilidade 
                    de ser a causa de vários casos de gonorréia 
                    ocorridos durante o ano); abandono material dos cinco filhos 
                    havidos de indígenas nestas circunstâncias; prática 
                    ilegal de usufruto de recursos naturais da terra indígena 
                    (caça e extração de madeira); poluição 
                    do meio ambiente local com lixo e esgoto, e distribuição 
                    de bebida alcoólica aos índios. · 
                    Rio de Janeiro. 14 de setembro. Discursando no palácio 
                    da Gávea Pequena em cerimônia de assinatura de 
                    contratos de exploração de petróleo, 
                    o Presidente Fernando Henrique Cardoso usa o termo Botocudos 
                    como sinônimo de mentalidade atrasada. Botocudos 
                    era como eram chamados genéricamente os povos usuários 
                    de botoques nos lábios, povos esses que 
                    durante o período Pombalino (Séc. XVIII) foram 
                    duramente perseguidos e exterminados. No 
                    que tange a violências praticadas por particulares chamam 
                    atenção até o momento alguns casos graves, 
                    como por exemplo aquele do assassinato de um índio 
                    isolado na Terra Indígena Alto Tarauacá (AC), 
                    antes mencionado. Segundo relatório da Funai,[9] não 
                    estariam descartadas as possibilidades de o índio morto 
                    ter sido castrado e de outros isolados também terem 
                    sido mortos. Também chamaram atenção 
                    o caso da morte a tiros de um índio Nambikwara (Comodoro/MT), 
                    num confronto com madeireiros em 23 de maio, e o ataque a 
                    3 índios Manchinery e Kaxinawá, em Sena Madureira 
                    (AC), onde um foi morto e os demais gravemente feridos. Outro 
                    destaque é para o caso do ataque e despejo da Comunidade 
                    Guarani-Nhandeva do Tekohá Potrero Guasu (Paranhos/MS). 
                    Por volta da meia-noite, 50 jagunços armados e vestidos 
                    com roupas do Exército, invadem o local a fim de executar 
                    a expulsão sumária da Comunidade. Trinta e cinco 
                    casas com todos os pertences das famílias indígenas 
                    são incendiadas. Os agressores dão tiros para 
                    o alto e espancam alguns índios, inclusive uma criança. 
                    Mulheres são estupradas na frente dos maridos e dos 
                    filhos. Os índios que não conseguem fugir para 
                    o mato são amontoados na carroceria de uma caminhonete 
                    e despejados nos arredores da aldeia de Pirajuí, há 
                    muitos quilômetros de distância. Na tarde do dia 
                    seguinte, os fazendeiros bloqueiam a estrada, impedindo o 
                    acesso de médicos e do Grupo de Trabalho da Funai encarregado 
                    da identificação administrativa da terra indígena. 
                    Agressão semelhante foi registrada também nas 
                    proximidades do dia e do local das comemorações 
                    oficiais pela passagem dos 500 Anos: em 17 de abril, por volta 
                    das 22 hs, cerca de 20 pistoleiros, comandados por um cabo 
                    da PM-BA, expulsaram a tiros 35 famílias Pataxó 
                    que haviam retomado a posse de parte da área Barra 
                    do Cahy (fazenda Bela Vista), pertencente à antiga 
                    aldeia de Barra Velha (Prado/BA).  Ao 
                    mesmo tempo, continuaram também as ações 
                    de intimidação contra a demarcação 
                    da terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, 
                    o que neste ano se registrou através de dois episódios. 
                    No primeiro, em 04 de março, através da investida 
                    de mais de 30 fazendeiros contra um grupo composto de religiosas 
                    da Diocese de Roraima e nove indígenas Makuxi e Wapixana, 
                    sendo três crianças. Sob ameaça, o grupo 
                    foi forçado a deixar o veículo em que viajava 
                    e a andar 30 Km a pé, sem água nem comida, sendo 
                    insultado em todo o trajeto pelos agressores em seus veículos, 
                    de onde gritavam provocações e palavras de baixo 
                    calão. Doze fazendeiros foram indiciados em inquérito 
                    na Polícia Federal, por crimes de Constrangimento ilegal 
                    e dano. No segundo episódio, o Tuxaua Jacir José 
                    de Souza, da Maloca Maturuca e a Diocese de Roraima, em especial 
                    o Padre Jorge Dal Ben, são alvo de grave linchamento 
                    moral através de uma matéria da revista Isto 
                    É[10], que leva para o âmbito nacional 
                    a campanha antiindígena instalada no Estado, a fim 
                    de desestabilizar o apoio à demarcação 
                    da área.  Diversas 
                    outras situações de ameaças contra comunidades 
                    indígenas e suas lideranças em razão 
                    da luta pela demarcação de suas terras também 
                    foram registradas, como por exemplo nos casos Xukuru e Truká, 
                    ambos no estado de Pernambuco e Kulina da Comunidade Pau Pixuna, 
                    em Juruá  Amazonas. III 
                     Conclusão.A partir desta pequena amostragem, duas conclusões 
                    preliminares são apontadas. A primeira é que 
                    grande parte das violações no ano 2000 ocorreram 
                    intimamente associadas aos festejos oficiais pela passagem 
                    dos 500 anos do chamado Descobrimento, tanto pela 
                    forma como as instituições governamentais procuraram 
                    impor o seu projeto comemorativo, quanto pela forma como trataram 
                    as tentativas de manifestação da visão 
                    indígena sobre o mesmo momento histórico. A 
                    segunda é que tanto nestas quanto nas demais violações, 
                    geralmente ligadas à questão da terra, cumpriram 
                    importante papel na autoria das violências, os chamados 
                    agentes do poder público, o que vem a confirmar uma 
                    política de linha dura por parte do governo para com 
                    os movimentos de reivindicação pelos direitos 
                    territoriais indígenas.
 -------------------------------------------------------------------- [1] 
                    PREZIA, Benedito e HOONAERT, E. Esta Terra Tinha Dono. São 
                    Paulo : FTD,1989, p.71. [2] 
                    Primeiro na Região Sul e depois nas Regiões 
                    Centro Oeste e Amazônica. [3] 
                    São casos que têm se verificado em várias 
                    partes do país, mas, sobretudo, nas regiões 
                    Nordeste e Norte. [4] 
                    CARDOSO, Fernando Henrique. Sociedades Indígenas e 
                    a Ação do Governo. Brasília: Presidência 
                    da República., 1996. [5] 
                    IBGE / PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar), 
                    1996. [6] 
                    CARDOSO, idem. [7] 
                    Jornal do Sol, fevereiro de 2000, pág. 04. [8] 
                    Fonte: Documento Assembléia realizada nos dias 
                    15 e 16/setembro/2000. Aldeia Klokonai  Alto Mucajaí 
                     Terra Indígena Yanomami, assinado por 
                    Peri Xirixana Yanomami, liderança do Alto Mucajaí, 
                    que assina pelos demais tuxauas. [9] 
                    Administração Executiva Regional em Rio Branco. 
                    Relatório Sobre Investigação da Morte 
                    de Índio Arredio na Terra Indígena Alto Tarauacá, 
                    Município de Jordão/AC. Rio Branco, Acre, 28 
                    de setembro de 2000. [10] 
                    Roraima em Pé de Guerra por Mino Pedrosa 
                    e Ricardo Stuckert. Edição n.1596, de 03/5/00, 
                    pág.28-31.  * 
                    Rosane F. Lacerda é assessora jurídica no Secretariado 
                    Nacional do Conselho Indigenista Missionário  
                    CIMI. Voltar 
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