Violência Policial 2000: debates
errados e mais violência
Centro
de Justiça Global
Ao
longo do ano, as autoridades brasileiras, a mídia e
o público presenciaram uma série de abusos contra
os direitos humanos, atribuídos particularmente à
polícia. Essas violações foram dirigidas
principalmente contra a população pobre, tanto
do campo quanto da cidade, atingindo residentes das favelas
e periferias, trabalhadores rurais sem terra, e também
manifestantes de outros movimentos sociais como estudantes,
servidores públicos e povos indígenas (capítulos
desse relatório referentes a esses temas descrevem
casos específicos de violações contra
esses setores).
No
meio urbano, a violência policial continua alarmante.
No estado de São Paulo, o número de civis mortos
pela polícia aumentou de 525, em 1998, para 664, em
1999o maior índice desde 1992, ano em que a polícia
matou 111 presidiários em um massacre na Casa de Detenção
do Carandiru. Essa tendência se intensificou ao longo
dos seis primeiros meses do ano 2000, quando a polícia
de São Paulo matou 489 civis, o que significa um aumento
de 77.2 por cento com relação à cifra
de 1999. Um estudo divulgado em julho pelo Ouvidor da Polícia
ajudou a explicar estes índices. Analisando os laudos
de 222 pessoas assassinadas por armas da polícia em
1999 (um terço das vítimas de ações
fatais da polícia), concluiu-se que 51% delas haviam
sido atingidas pelas costas e 23% haviam recebido cinco ou
mais disparos. Esses resultados sugerem que muitas delas foram
sumariamente executadas, e não legitimamente assassinadas
em tiroteios, como as autoridades normalmente alegam. Mais
da metade das vítimas não tinha precedentes
criminais.
Nos
últimos dez anos, 6.672 pessoas foram mortas em ações
da polícia militar no Estado de São Paulo. A
média de pessoas mortas pela polícia de São
Paulo no primeiro semestre de 2000 foi de uma a cada 9 horas,
o que representa quase três homicídios por dia.
Estatísticas da Ouvidoria de Polícia do Estado
de São Paulo apontam que cerca de 60% das pessoas mortas
pela Polícia Militar não tinham antecedentes
criminais. Essa é uma média que vem se mantendo
constante nos últimos quatro anos. Entre os homicídios,
52,6% ocorreram com tiros pelas costas e 55,8% das pessoas
atingidas não estavam em flagrante delito. A pesquisa
também indicou que 43,5% das 193 ocorrências
não tiveram testemunhas e que 45,9% das vítimas
eram jovens entre 18 e 25 anos. Os outros 11% eram menores
de idade.
No
Rio de Janeiro, esforços para melhorar a imagem da
polícia sofreram sério retrocesso quando o governador
Anthony Garotinho despediu, em março deste ano, o sociólogo
Luis Eduardo Soares, então coordenador da Secretaria
da Segurança Pública. As circunstâncias
da demissão de Luis Eduardo Soares sugerem que houve
forte pressão de alguns setores da polícia,
que vinham sendo denunciados por corrupção e
violações aos direitos humanos. Outros membros
da equipe de segurança pública pediram demissão
em protesto contra esse episódio, entre eles a Ouvidora
da Polícia Julita Lemgruber. Luis Eduardo Soares foi
obrigado a deixar o país com sua família, em
conseqüência de uma série de ameaças
de morte.
O
Rio de Janeiro foi palco de um incidente emblemático
em 12 de junho deste ano, quando o país assistiu pela
televisão o drama do seqüestro do ônibus
174 no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio de Janeiro.
Esse incidente ilustra não só a violência
nos centros urbanos, mas também a má atuação
da polícia e a manipulação do debate
público.Sandro do Nascimento - sobrevivente da chacina
na qual oito jovens moradores de rua foram assassinados na
praça da Candelária, no Rio de Janeirotentou
assaltar um ônibus, foi cercado pela polícia,
e acabou tomando os passageiros como reféns. O país
assistiu a cenas de horror: o rapaz enfurecido, apontando
uma arma para as cabeças dos reféns, e principalmente
para uma jovem chamada Geísa. Ao final do incidente,
um policial saiu atirando em direção de Sandro,
mas em vez de acertá-lo, acabou ferindo Geísa
com um tiro de raspão. Essa atitude levou Sandro a
atirar três vezes, matando a refém. As câmeras
de TV também registraram a última imagem de
Sandro, ainda vivo, sendo atirado em um camburão. No
dia seguinte, a morte de Sandro foi revelada e, segundo o
laudo médico, constatou-se que os policiais o estrangularam
dentro do camburão, a caminho do hospital Souza Aguiar.
A
primeira questão levantada sobre esse incidente refere-se
à falta de segurança da população,
particularmente dos setores mais pobres e da classe média
que utilizam transporte público. Em segundo lugar,
verificou-se a falta de preparo da polícia, provocando
a morte da refém. Além disso, esse caso ilustra
a brutalidade policial, demonstrada pelo assassinato do assaltante
a sangue frio. Esse tipo de atitude por parte da polícia
é incentivada pela certeza da impunidade. Finalmente,
esse caso representa a situação de abandono
e falta de perspectiva das crianças e adolescentes
que vivem nas ruas.
Portanto,
o debate sobre esse incidente deveria incluir as seguintes
questões: (1) formas de se controlar a violência
urbana; (2) necessidade de se profissionalizar a polícia;
(3) medidas para combater a brutalidade policial e a impunidade;
(4) formas de lidar com a exclusão social e, especificamente,
com a população que mora ou trabalha nas ruas.
Algumas dessas questões chegaram a ser mencionadas
pelos meios de comunicação, mas o enfoque principal
do debate girou em torno da preocupação com
a violência, principalmente aquela que acontece na Zona
Sul do Rio, afetando as classes média e alta. Vale
lembrar que a maioria dos assaltos em ônibus no Rio
de Janeiro ocorrem nas periferias, atingindo a população
mais pobre. Esses casos raramente ganham visibilidade.
Outro
aspecto do caso praticamente esquecido pela mídia foi
o acompanhamento do inquérito contra os cinco policiais
envolvidos no homicídio. Entidades de direitos humanos
têm denunciado a violência policial como prática
comum em todo o país. Uma prática comum adotada
pela polícia, após cometer homicídios,
é levar o corpo da vítima a um hospital, como
forma de evitar o trabalho de perícia e investigação.
Uma
semana depois do incidente, o governo federal lançou
o Plano Nacional de Segurança, enfocando principalmente
medidas pontuais, como melhorar a iluminação
da cidade. O Plano incluía também o controle
de armas, mas essa medida não foi aprovada pelo Poder
Judiciário. Nenhuma medida tratava da reforma das polícias
ou de questões sociais.
Esse
incidente gerou uma série de manifestações,
culminando com a grande passeata "Basta, Eu Quero Paz",
organizada no Rio e reproduzida com enfoques variados em outras
capitais. Essa manifestação contou com o apoio
de alguns setores da sociedade civil e dos meios de comunicação,
incluindo a Rede Globo. A passeata acabou por adquirir um
caráter despolitizado, sem reivindicações
específicas. As pessoas saíram às ruas
vestidas de branco, com uma vela na mão, para denunciar
"a violência". Não se identificou os
responsáveis pela violência e nem se sabia para
quem estavam pedindo "paz". Portanto, perdeu-se
a oportunidade de pressionar o governo a adotar medidas concretas
e efetivas.
A
violência policial é discriminatória
Uma
pesquisa realizada pelo pesquisador do ISER, Ignácio
Cano, apresentado na conferência anual da ANPOCS revela
que negros e pardos envolvidos em confrontos com a polícia
do Rio de Janeiro morrem mais do que brancos na mesma situação.
Os registros apontam que entre os mortos, os negros e pardos
são 70,2%, e os brancos representam 29,8%.
Uma
pesquisa de opinião pública, com 1080 paulistanos,
feita pelo Datafolha em abril de 1997, perguntava se as pessoas
haviam sido ofendidas verbalmente ou agredidas fisicamente
por algum policial. Do total de entrevistados, 20% teriam
sido ofendidos verbalmente e 8% teriam sido agredidos fisicamente
por algum policial. Comparados por escolaridade e renda, não
foram encontradas diferenças significativas entre os
vitimados. Mas os dados por sexo, idade e raça revelaram
diferenças significativas: a grande maioria das vítimas
eram homens, mais jovens e de pela mais escura. Os contrastes
eram maiores no quesito agressão física,
que atingia 6% dos brancos e 14% dos negros (dados publicados
do Boletim n 1o, Ano 4 1998, Grupo de Pesquisa da Discriminação
da USP).
A
idéia de que no Brasil existiria uma democracia
racial contribui para encobrir a dimensão que
a questão racial ocupa no país. De acordo com
relatório do Sr. Cano, o papel da raça no uso
da força policial letal, talvez seja a mais severa
fonte de violação dos direitos humanos no Brasil.
Após avaliar mais de 1000 homicídios cometidos
pela polícia do Rio de Janeiro, entre os anos de 1993
e 1996, o relatório conclui que a raça constitui
um fator que influencia a polícia - seja conscientemente
ou não - quando se atira para matar. Quanto mais escura
a pele da pessoa, mais suscetível ela está de
ser vítima de uma violência fatal por parte da
polícia.
O
relatório avalia dados que incluem todos os incidentes
na cidade do Rio de Janeiro, entre janeiro de 1993 e julho
de 1996, nos quais civis foram mortos ou feridos por armas
de fogo nos confrontos com a polícia. As vítimas
são classificadas pelas fontes oficiais em três
categorias: branco, pardo e negro. O estudo demonstrou que
civis pardos e negros são alvo de ação
policial fatal com muito maior freqüência do que
suas percentagens na população como um todo.
Além
disso, a pesquisa mostrou que o uso da força letal
varia segundo a raça da pessoa envolvida num conflito
com a polícia. Partindo dos dados sobre conflitos que
resultaram em civis feridos ou mortos durante um período
de quarenta e três meses, a pesquisa avaliou a razão
entre o número de pessoas mortas e o número
de pessoas feridas nesses conflitos.
Essa
razão é chamada de índice de letalidade,
e é calculada da seguinte maneira:
Número
de pessoas mortas em conflitos com a polícia
--------------------------------------------------------------------
Índice
de Letalidade
Número
de pessoas feridas em conflitos com a polícia
Em
casos de tiroteios (e não execuções disfarçadas),
supor-se-ia que o saldo de pessoas mortas seria inferior ao
de pessoas feridas, levando a razão entre civis mortos
e civis feridos a ser inferior a 1,0. No entanto, a pesquisa
comprovou que no Rio de Janeiro, no período pesquisado,
o índice era sempre superior a 1,0, chegando a superar
3,5 em algumas épocas analisadas.
Ao
longo do período analisado, o índice de letalidade
era significativamente maior nas ações da polícia
ocorridas em favelas e periferias. Além disso, esse
índice em relação à população
branca era de 2,7 (isto é, a polícia matou 2,7
mais pessoas brancas do que feriu em confrontos armados).
Essa razão chega a 4,83 para pardos e negros (significando
que a polícia matou quase cinco vezes mais negros e
pardos do que os feriu nesses conflitos). A situação
era ainda mais grave para negros e pardos envolvidos em conflitos
armados com a polícia dentro de favelas. De acordo
com essa pesquisa, nove entre dez brasileiros de cor escura,
envolvidos em conflitos armados com a polícia em favelas,
que resultam em ferimento, terminam mortos.
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