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Relatórios


Destruindo o Futuro: Tortura na Febem


Centro de Justiça Global
Movimento Nacional de Direitos Humanos
Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura e
Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo

"Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamentos
ou punições cruéis, desumanas ou degradantes".

-- Artigo V da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948.

Alijados de seus direitos básicos e fundamentais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, os internos da Febem de São Paulo são submetidos à tortura sistemática como forma de contenção ou repressão. Diante da apatia e do descaso das autoridades governamentais, e distante dos olhos da sociedade - que só vê e se choca quando os adolescentes estão rebelados, desesperados e descontrolados - está em curso uma rotina de desrespeito, humilhação e tortura.

A Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM) de São Paulo, fundada em 1976, mantém aproximadamente 4.000 adolescentes cumprindo medida sócio-educativa de internação. Conforme um levantamento feito pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) em julho passado, cerca de 950 adolescentes estão sendo mantidos irregularmente em Unidades de Internação que, na realidade, funcionam como presídios, em desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Nessas prisões não existem atividades educacionais ou profissionalizantes, conforme exige a lei.

Nosso levantamento demonstra que as ocorrências de tortura e humilhações são freqüentes, apesar das autoridades tentarem ofuscar o problema. Analisando denúncias, desde outubro de 1999, quando foi iniciado o Projeto de Reformulação da Febem, estima-se que mais de 700 internos foram vítimas de tortura e agressões perpetradas por funcionários em diversas Unidades da Febem (ver os casos abaixo). Constatamos que, em média, três internos são espancados ou torturados por dia nas dependências da Instituição. De acordo com a Anistia Internacional, "as denúncias de espancamento afetando dezenas de adolescentes indicam que perdura na Febem uma situação de tolerância semi-oficial de tais práticas" (AI/julho/00).

A portaria 17, de 29 de Junho de 2000, exige que entidades como os Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedecas), o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONDECA), a Pastoral do Menor e outras entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente solicitem autorização ao presidente da Fundação para ingressarem nas Unidades da Febem, com cinco dias de antecedência. Essa portaria impossibilita o acesso de entidades de direitos humanos em casos de emergência, facilitando a ação de agentes de repressão nas Febems.

Após uma rebelião ocorrida no Complexo Imigrantes da Febem, que resultou na morte de quatro adolescentes, o governador Mário Covas pareceu sensibilizado e declarou que trataria o assunto com a prioridade devida. O Governador afirmou também que resolveria o problema em 135 dias. Passados dez meses, constatamos que as políticas governamentais continuam estimulando a repressão. A partir de agosto de 1999, o governo passou a transferir adolescentes das Febems para o sistema penitenciário, de acordo com o projeto "Novo Olhar". Os adolescentes passaram a ser transferidos sem qualquer critério (de idade, compleição física ou gravidade do delito cometido) para os presídios, onde são tratados como detentos comuns e sujeitos a maus-tratos. Em alguns casos, os internos permanecem apenas uma hora por dia ao ar livre e têm apenas quinze minutos de visita familiar por semana. Além da falta de salubridade e higiene, conforme demonstram laudos da equipe técnica do Poder Judiciário e da Secretária de Saúde, os internos são submetidos à tortura e maus-tratos.

O projeto de reestruturação da Febem, implementado pelo governo de São Paulo, tem se limitado à utilização de um modelo repressivo e violento, que inclui a utilização de tortura e maus-tratos como forma de controle e contenção, e é defendido por autoridades que alegam a suposta periculosidade e agressividade dos adolescentes, além do suposto clamor popular por segurança. Segundo a Anistia Internacional, a ênfase em relação à segurança pública "mascara uma tolerância generalizada da tortura e dos maus-tratos de adolescentes infratores" (AI/Julho/00). Enquanto essas questões continuarem sendo subestimadas pelo governo, violações graves aos direitos humanos continuarão impunes no estado de São Paulo.

Métodos de Tortura

Dois tipos de sessões de tortura se destacam no dia-a-dia da Febem: o chamado "repique" e a "recepção". O "repique" é utilizado após tentativas de fuga, rebeliões, tumultos ou meras discussões. Um grupo de funcionários (que pode ultrapassar 50), munidos de paus e canos de ferro, espancam os adolescentes semi nus e de cabeças baixas, no pátio ou nas celas, muitas vezes após serem detidos pela tropa de choque. Esse método serve de retaliação e repressão. Já a "recepção" ocorre nas transferências entre Unidades, quando os internos são recebidos por um "corredor polonês" formado por monitores e funcionários da segurança, que aos chutes e socos, ou munidos de paus, ferros e correntes, agridem os internos enquanto são ditadas as normas de disciplina. "Coro" e "Choça" são outras expressões utilizadas pelos jovens para descrever agressões e surras cotidianas. Na rotina da Febem é comum encontrar internos com escoriações, equimoses, hematomas e até queimaduras de cigarro.

Grande parte dessas denúncias foram comprovadas materialmente por laudos de exames de corpo delito requisitados pela Promotoria do Departamento de Execuções da Infância e Juventude, e por testemunhos dos adolescentes. O Ministério Público também detém um arquivo de fotos e fitas de vídeo com imagens de internos que foram torturados nas dependências da Fundação. O expressivo número de procedimentos instaurados pela Promotoria do Departamento de Execuções da Infância e Juventude da Capital comprova o aumento das agressões e da tortura na Febem. Conforme levantamento feito em julho passado pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, só no primeiro semestre de 2000 a promotoria tinha instaurado 72 procedimentos investigatórios que apuravam agressões e tortura contra internos da Febem. Existiam 52 denúncias (geralmente feitas por familiares, entidades e advogados) que estavam sendo analisadas e poderiam se transformar em procedimentos investigatórios. A maioria dos procedimentos e denúncias se referia ao Circuito Grave do Complexo do Tatuapé, com 53 casos. Outras Unidades que se destacavam em ocorrências eram: Cadeião de Pinheiros, com 20 casos; Presídio de Franco da Rocha, inaugurado em abril/00, com 10 casos; e Cadeião de Santo André, desativado em junho, com 9 casos. A Tropa de Choque da Polícia Militar foi citada em 4 denúncias, por agressões contra os internos da Febem.

Em comparação, durante todo o ano anterior (1999), a Promotoria da Infância e Juventude instaurou 75 procedimentos que apuravam supostas agressões e torturas nas quais os internos figuravam como vítimas. Atualmente encontram-se em curso na Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital 87 procedimentos investigatórios referentes à apuração de agressões praticadas por funcionários contra internos. Entre novembro e junho deste ano, foi requisitada a instauração de mais de 50 inquéritos policiais para apuração de agressões supostamente praticadas por funcionários da Febem.

Em várias vistorias realizadas pelo Ministério Público, Judiciário e entidades de direitos humanos na Febem Imigrantes, em 1998 e 1999, foram encontrados equipamentos de tortura como máquinas de choque, paus, barras de ferro, cabos de enxada, fios de cobre e correntes. Segundo relatório da Anistia Internacional, "O espancamento de adolescentes é ocorrência freqüente, muitas vezes durante a noite. Alguns monitores mantêm uma reserva de paus e barras de ferro para esse fim. Após os espancamentos é comum os adolescentes serem obrigados a tomar banho frio a fim de limitar o aparecimento de hematomas" (AI/Julho/00).

Os Ninjas

Apesar de considerados uma "lenda" pelas autoridades, os "Ninjas" formam um grupo de torturadores que normalmente agem encapuzados, durante a noite, promovendo espancamentos generalizados, como os ocorridos em junho e julho de 2000 no Cadeião de Pinheiros, na UE 1 (Unidade Educacional) do Tatuapé e na Unidade de Franco da Rocha. Os três casos resultaram em mais de 130 adolescentes feridos. Na UE 1, um interno foi parar no hospital e passou a ter que andar de muletas. Em setembro de 1999, uma equipe de TV flagrou a atuação de um grupo de "Ninjas", munido de paus e ferros, no Complexo da Febem Imigrantes. Após a exibição das cenas, rompeu-se uma fuga de aproximadamente 600 internos e, provavelmente, vítimas e testemunhas estavam entre os fugitivos.

Cronologia de incidentes

Out./99 - Internos transferidos para o Cadeião de Pinheiros afirmaram que apanharam da Tropa de Choque e de funcionários na "recepção" (corredor polonês formado por monitores munidos de paus e ferros, que também batem com as mãos e dão chutes). O Ministério Público e a Pastoral do Menor constataram lesões e até dedos quebrados. Vários internos estavam há mais de 22 dias sem sair das celas, longe da luz do sol e apresentavam escoriações.

Nov./99 - No COC, o interno A.S. foi agredido e teve sua cabeça colocada dentro da privada e a descarga apertada.

Nov./99 - Transferência dos internos do Tatuapé para o Cadeião de Santo André: internos denunciaram espancamento pela Tropa de Choque e foram recepcionados por um "corredor polonês" de monitores, que os agrediram com chutes, socos e pauladas. Também foram obrigados a tomar banho frio para diminuir as marcas dos hematomas. Laudos comprovaram lesões em 90 dos 108 examinados. No mesmo mês houve também um espancamento na hora do banho, quando os internos estavam despidos.

Dez./99 - No Dia Internacional dos Direitos Humanos a comissão que vistoriou o Cadeião de Santo André constatou espancamento de pelo menos 19 internos, que apresentavam marcas de sapato, paus e ferros. A Comissão encontrou roupas ensangüentadas e sangue no chão de algumas celas. Os exames de corpo de delito comprovaram as lesões.

Jan./00 - O Ministério Público divulgou fotos de internos que foram torturados no Cadeião de Pinheiros na virada do ano. Três dias após as denúncias, o adolescente C.E.S. foi torturado novamente por ter reclamado das agressões aos Promotores.

Jan./00 - Internos do Cadeião de Santo André denunciaram ter encontrado um cabo de enxada com os dizeres "Estatuto", uma alusão ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

Jan./00 - Internos do Cadeião de Santo André denunciaram espancamento praticado por monitores e agentes de segurança. Os adolescentes relataram que os funcionários entraram nos pavilhões portando canos de ferro e pedaços de pau. Laudos apontaram lesões em mais de 50 adolescentes. As "armas" foram vistas e também fotografadas pela imprensa local.

Fev./00 - Internos do COC foram torturados após um tumulto. Nove internos, que supostamente teriam feito um funcionário de refém, denunciaram terem sido espancados e empilhados numa cela com pouca ventilação onde ficaram sangrando. Disseram ainda que funcionários teriam jogado urina sobre eles e os obrigado a ingerir. Depois foram transferidos para a Casa de Detenção e um deles permaneceu no Hospital do Mandaqui sob suspeita de traumatismo craniano. Vistoria do Ministério Público com legistas constatou que 42 internos apresentavam lesões.

Fev./00 - Rebelião no Tatuapé teria sido iniciada na Unidade de Referência Terapêutica, conhecida como "Masmorra do Tatuapé", devido à prática constante de tortura nesse estabelecimento, onde internos passavam o dia todo semi nus, confinados em solitárias, sendo torturados e humilhados até quando precisavam ir ao banheiro. Vistoria do Ministério Público e de entidades de direitos humanos constatou marcas das agressões, comprovadas por exames. A maioria dos 231 internos (das UEs 13,4,14,12 e URT) examinados no dia 20 de fevereiro apresentavam lesões como cortes, hematomas e queimaduras. Laudo do Poder Judiciário no Processo de interdição da Unidade atestam que "vergonhosamente há prática de tortura, ferindo o artigo 5 da Declaração Universal dos Direitos do Homem".

Março/00 - Internos fazem greve de fome no Cadeião de Pinheiros em protesto contra agressões e maus-tratos.

Março/00 - Mães, Conselho Tutelar e Cedeca entregam ao Ministério Público uma lista de 53 internos feridos em suposta sessão de tortura conhecida como "repique", que teria ocorrido após revista da tropa de choque da polícia militar no Cadeião de Santo André, quando os adolescentes já estavam passivos, trancados nas celas e sem roupas.

Abril/00 - Comissão de Direitos Humanos da ALESP constata que haviam 24 adolescentes feridos e sem atendimento médico, em vistoria realizada uma semana após a rebelião no Cadeião de Santo André. Os internos denunciaram espancamento praticado por funcionários e carcereiros.

Maio/00 - Vistoria do Ministério Público na Febem de Franco da Rocha constata que a Unidade foi inaugurada com tortura. Os 220 internos removidos para o local sofreram "recepção". Um deles teve todos os dentes quebrados ao levar um soco de um policial militar. Em outros 40 foram constatadas lesões corporais causadas por pauladas e golpes de cassetete. Os internos permaneciam o dia todo trancados nas celas superlotadas.

Junho/00 - Internos fazem greve de fome e denunciam maus-tratos no Cadeião de Pinheiros. Treze deles se apresentam na Promotoria mostrando lesões e denunciando a tortura na Unidade.

Junho/00 - Internos da UE -1 denunciam tortura praticada pelos "Ninjas", ou funcionários que entram encapuzados durante a noite e torturam os internos com tacos, paus, ferros e correntes, na sessão de tortura conhecida como "repique". O Ministério Público constata e os laudos comprovam ferimentos em 41 internos, sendo que um deles andava de muletas. Os internos estavam há mais de uma semana confinados e sem atendimento médico.

Junho/00 - Vistoria do Ministério Público no Cadeião de Pinheiros constata que 50 internos apresentavam lesões corporais, com marcas evidentes de chutes, paus, ferros e correntes. As condições de higiene também eram bastante precárias.

Julho/00 - No mês em que se completava 10 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, os internos da Unidade da Febem de Franco da Rocha denunciaram casos de espancamento. Na noite do dia 07 de julho, os internos da ala G não teriam respeitado o horário de dormir (as 10:00h) e começaram a gritar e a balançar as grades. Isso foi motivo para que os "Ninjas", munidos de paus e barras de ferro, invadissem as celas e começassem a agredir os adolescentes. Depois, os internos foram colocados no pátio, só de cuecas. Os funcionários também teriam jogado água nos meninos, assim como nas roupas, cobertores e colchões. A Pastoral do Menor entregou ao Ministério Público uma lista com nomes de 45 adolescentes que apresentavam lesões em várias partes do corpo, principalmente na cabeça. Um deles estava irreconhecível e ficou internado no hospital durante uma semana.

Conclusões e recomendações

1. A existência de tortura, maus-tratos, tratamento cruel, desumano e degradante nas unidades da Febem foi comprovada em diversas ocasiões.

2. O governo do estado de São Paulo não pode continuar a ignorar a tortura, maus-tratos e outras graves violações praticadas na Febem. O primeiro passo para se resolver um problema é reconhecer que ele existe.

3. O não cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente é o principal problema da Febem. Sabemos que isso não é de responsabilidade apenas desse governo, mas de vários outros que jamais trataram o assunto com a prioridade devida.

4. A Sistema Judiciário também tem sua parcela de responsabilidade com relação à tortura e aos maus-tratos, por ter cassado liminares que impediam o funcionamento de Unidades da Febem onde esses abusos são praticados, acatando os recursos do governo estadual.

5. As entidades de direitos humanos reconhecem as dificuldades enfrentadas pelas autoridades para resolver estes problemas, que são resultantes de décadas de negligência, descaso e incompetência, e estão dispostas a dialogar com o governo do estado e procurar uma saída para a crise que a Febem enfrenta.

6. É importante se investir no quadro de funcionários com contratação, qualificação, reciclagem, apoio psicológico, assistencial, treinamento para lidarem com dificuldades e situações de tensão, evitando insultos, confrontos ou violência deliberada.

7. Extinguir as jornadas de trabalho exaustivas e as horas extras dos funcionários.

8. Estruturar ouvidorias independentes e autônomas em relação à Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social e à Febem, com seus ocupantes escolhidos pela sociedade civil, nos moldes da ouvidoria de polícia.

9. Afastar imediatamente todos os envolvidos em tortura e maus-tratos, inclusive de cargos de direção. Instaurar processos administrativos e jurídicos para investigar violações de direitos humanos na Febem.

10. Elaborar normas e diretrizes disciplinares a serem observadas e cumpridas pelos internos e funcionários.

11. As transferências devem ser monitoradas para se evitar a "recepção".

12. Os adolescentes devem ser mantidos em unidades pequenas, próximas de suas famílias, onde tenham um cronograma diário de atividades culturais, educacionais, profissionalizantes e de lazer. Devem receber tratamento médico, psiquiátrico, psicológico e de drogadição, se for o caso.

13. Deve ser garantido apoio financeiro para possibilitar as visitas familiares, já que as unidades são distantes para a maioria das famílias.

14. Os internos devem ser separados por critérios de idade, compleição física e gravidade do delito cometido.

15. Os internos que provisoriamente aguardam decisão judicial devem ser mantidos em unidades separadas dos já sentenciados.

16. Deve se proporcionar atendimento e tratamento personalizado aos internos, levando em conta suas peculiaridades.

17. A medida de internação deve ser aplicada pelo Judiciário como última alternativa, respeitando-se a brevidade e a excepcionalidade.

18. Acabar com a perseguição e tentativa de desacreditar e intimidar os defensores dos direitos humanos através de inquéritos policiais e acusações difamatórias de incitamento de rebeliões, ou tentando culpá-los pela crise na Febem.

19. O acesso das entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente deve ser garantido urgentemente, de acordo com as normas da ONU, das quais o Brasil é signatário.

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