Resquícios da Ditadura no Brasil
Cecília
Maria Bouças Coimbra*
Mortos
e desaparecidos políticos: a procura continua
O
governo brasileiro assinou, no dia 04 de dezembro de 1995,
a Lei 9 140/95, fruto do árduo trabalho de entidades
de direitos humanos nacionais e internacionais, familiares
de mortos e desaparecidos políticos e alguns parlamentares,
que estabeleceu condições para a reparação
moral de pessoas mortas e desaparecidas por motivos políticos,
bem como indenização financeira a seus familiares.
Quando
a lei foi promulgada, reconheceu de imediato como mortos 136
desaparecidos políticos e criou uma Comissão
Especial, vinculada ao Ministério da Justiça,
para analisar, caso a caso, outras mortes de causas não
naturais, por motivação política, ocorridas
em dependências policiais ou assemelhados
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
A
Comissão Especial realizou sua última reunião
em 05/05/98, quando considerou terminada a primeira fase de
seus trabalhos prevista pela lei; ou seja, os casos de mortos
pelo Estado apresentados por seus familiares. Durante os anos
de 1999 e 2000 a Comissão não voltou a se reunir.
Os apelos dos Grupos Tortura Nunca Mais e familiares de mortos
e desaparecidos políticos tem sido totalmente ignorados
pelo governo federal. A própria Lei 9.140/95 prevê
uma segunda fase dos trabalhos em dois de seus artigos: 4º
- § II, envidar esforços para a localização
dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência
de indícios quanto ao local em que possam estar depositados
; 9º - ... a Comissão Especial poderá
solicitar: I documentos de qualquer órgão
público, II a realização de perícias,
III a colaboração de testemunhas e IV
a intermediação do Ministério
das Relações Exteriores para obtenção
de informações junto a governos e a entidades
estrangeiras . Ou seja, a Lei 9 140/95, apesar de suas
limitações, não chegou a ser cumprida
pelo próprio governo que a promulgou, e a 2ª fase
dos trabalhos não foi até hoje iniciada.
As
entidades de direitos humanos e familiares de mortos e desaparecidos
políticos queriam e querem uma lei mais abrangente.
Uma lei que possibilite o exame das circunstâncias em
que ocorreram as violações de direitos humanos
causadoras daquelas mortes, os locais onde foram enterrados
como indigentes todos os desaparecidos políticos e
muitos mortos oficiais, a identificação dos
responsáveis pelas mesmas e sua submissão à
Justiça, assim como a ampla divulgação
dessas informações para toda a sociedade. Uma
lei que contemple também os casos ocorridos em manifestações
públicas durante a ditadura militar; que não
restrinja o prazo para as famílias requererem os seus
direitos e estenda o período de sua abrangência
até o final da ditadura, em 1985.
À
época, o governo não montou esquemas amplos
de divulgação para informar e mobilizar as famílias
dos mortos e desaparecidos políticos sobre a Lei 9
140/95. Com isso, famílias que têm parentes na
lista dos 136 desaparecidos políticos e na de mortos,
sob a guarda do Estado, não foram localizadas até
hoje.
O
mais grave é que a lei imputou todo o ônus das
provas aos familiares. Os Grupos Tortura Nunca Mais e a Comissão
de Familiares fizeram inúmeras pesquisas e orientaram
muitas famílias para que, ao organizarem seus requerimentos,
procurassem ex-presos políticos e ex-companheiros que
pudessem dar depoimentos, localizassem testemunhas e realizassem
pesquisas no único arquivo da repressão aberto:
os do DOPS. Exumações foram efetuadas, laudos
periciais refeitos, testes de DNA solicitados e até
a dificílima tarefa de localização dos
restos mortais de alguns desaparecidos começou a ser
empreendida, ainda de forma precária, pelas famílias
e os Grupos Tortura Nunca Mais, sem qualquer ajuda governamental.
Uma
grande frustração decorreu da sonegação
de informações por parte dos órgãos
oficiais. Sabe-se que a Polícia Federal, as P-2 das
Polícias Militares, os Centros de Informação
do Exército (Ciex), da Marinha (Cenimar) e da Aeronáutica
(Cisa) têm informações arquivadas sobre
o período da ditadura militar que precisam ser conhecidas
pela nação. Alguns governos estaduais, como
o de Minas Gerais, têm dificultado o acesso às
informações do arquivo do DOPS, ou do que restou
dele.
Outra
questão a ser ressaltada refere-se à abertura
dos arquivos secretos da ditadura militar, que permanecem
sob a guarda dos órgãos de segurança
e da Presidência da República, que contêm
informações importantes sobre aquele período
histórico e se revestem de inegável e inestimável
interesse público. Um dos eixos da luta dos Grupos
Tortura Nunca Mais e familiares de mortos e desaparecidos
políticos, atualmente, é pela ampla e irrestrita
abertura dos arquivos secretos da Polícia Federal,
das Forças Armadas, do SNI, dos DOI-CODIs (Departamento
de Operações Internas - Centro de Operações
de Defesa Interna), como única forma possível
para a localização dos restos mortais dos desaparecidos
políticos.
Apesar
das dificuldades, essas informações têm
sido descobertas pouco a pouco. O então Major Curió,
que atuou na repressão à Guerrilha do Araguaia,
já mostrou a jornalistas cópias de documentos
oficiais que certamente podem levar à localização
dos restos mortais de muitas pessoas desaparecidos. É
importante assinalar que o Major, ex-agente do Serviço
Nacional de Informações (SNI), ex-membro do
Conselho de Segurança Nacional (CSN), coordenador de
sessões de torturas nos anos 60 e 70, foi eleito, em
novembro último, prefeito pelo PMDB da cidade de Curionópolis,
no sudeste do Pará, com população estimada
em 30 mil habitantes.
Uma
outra questão a ser levantada refere-se aos trabalhos
de identificação das ossadas encontradas no
cemitério de Perus, em São Paulo, no final dos
anos 80, que após anos de um confuso e questionável
processo de investigação por parte do Departamento
de Medicina Legal da Unicamp, encontram-se agora sob a expectativa
de transferência para o Instituto Oscar Freire, da Universidade
de São Paulo, para continuação dos trabalhos
inconclusos.
Há
10 anos atrás, em 04 de setembro de 1990, foi aberta
a vala clandestina no Cemitério de Perus. Das 1500
ossadas encontradas, 1049 foram catalogadas e encaminhadas
para o Departamento de Medicina Legal da Unicamp para identificação.
Muitas delas são de militantes políticos assassinados
pela ditadura militar e considerados desaparecidos. Os trabalhos
iniciais de investigação resultaram na identificação
dos corpos de Frederico Eduardo Mayr, Denis Casemiro, Antônio
Carlos Bicalho Lana, Sônia Maria Moraes Angel Jones
e Helber José Gomes Goulart. Porém, este trabalho,
então chefiado pelo médico Badan Palhares, foi
interrompido e as ossadas estão abandonadas numa sala
da Unicamp.
Nestes
10 anos, os governos federal, estadual e municipal de São
Paulo não tiveram interesse em retomar o trabalho de
identificação deste material de importância
histórica e fundamental para o esclarecimento dessas
mortes.
Em
resumo, a questão dos mortos e desaparecidos políticos
não é uma página virada de nossa história.
Os Grupos Tortura Nunca Mais e os familiares de mortos e desaparecidos
ainda lutam, tenazmente, por:
Ampla
e irrestrita abertura de todos os arquivos da repressão.
Esclarecimento
das circunstâncias em que se deram as mortes e desaparecimentos,
e seus responsáveis.
Localização
dos restos mortais dos mortos cujos corpos não foram
entregues a seus familiares, e de todos os desaparecidos políticos.
Membros
do Aparato de Repressão da Ditadura Militar continuam
ocupando cargos públicos no Rio de Janeiro: Josias
Quintal - Atual Secretário de Segurança Pública
do Estado do Rio de Janeiro
Em
entrevista concedida ao programa Roda Viva, exibido pela TV
Cultura, no dia 01 de maio do presente ano, o Dr. Luís
Eduardo Soares, ex-Coordenador de Segurança Pública
do Estado do Rio de Janeiro afirmou que o atual secretário
de Segurança Pública do Estado, Coronel da Polícia
Militar Josias Quintal, havia pertencido aos quadros do Departamento
de Operações Internas Centro de Operações
de Defesa Interna do Rio de Janeiro (DOI-CODI/RJ). O Grupo
Tortura Nunca Mais/RJ tomou conhecimento também que
este Secretário trabalhou no Serviço de Inteligência,
como Analista de Informações, daquele centro
de tortura, na 2ª Brigada do Exército, no período
de 1976 a 1978, fato confirmado pelo próprio Coronel
à imprensa local, no mesmo mês de maio.
Sabe-se
que a ditadura se consolidou, torturou, matou e desapareceu
com os opositores políticos, com apoio de uma vasta
estrutura, com atores que desempenhavam diferentes papéis,
todos importantes. Se não existissem os serviços
de informação, selecionando as pessoas que se
destacavam na luta contra a ditadura, em todos os campos do
conhecimento, seria impossível reprimi-las. Esses serviços
abriram o caminho para a repressão atuar. De fato,
a espionagem era uma etapa de um longo processo, que terminava
no médico legista, que dava atestado de óbito
corroborando a versão de suicídio ou de morte
em tiroteio, quando havia marcas de torturas nos corpos das
vítimas. Foi com o auxílio de pessoas com essa
mentalidade que a barbárie se instalou em nosso país,
durante o terrorismo de Estado.
O
papel que o Coronel Josias Quintal cumpriu naquele período
e o mal que causou, devem ser investigados: quantas vítimas
provocou, não só levando à prisão
e à tortura, mas também impedindo que outras
pessoas pudessem trabalhar, ou ainda causando a perda dos
seus empregos. Afinal, os famosos atestados de bons antecedentes,
obrigatórios na época, eram alimentados pelos
órgãos de informação e só
podiam ser concedidos pelos mesmos.
O
coronel Josias afirmou para a imprensa, em maio de 2000, que:
"foi um tempo muito bom para mim. Era um privilégio
para qualquer oficial receber um convite como aquele... fazíamos
basicamente o acompanhamento das atividades terroristas com
base nos documentos das organizações de esquerda":
Tais declarações mostram muito claramente que
concepções de segurança são defendidas
pelo atual Secretário de Segurança Pública.
A maneira de obter informações pelos métodos
utilizados pelo DOI-CODI é defendida e é motivo
de orgulho para este secretário. Serão essas
as concepções que orientam a nova Polícia
Técnica que está sendo montada no estado do
Rio de Janeiro?
O
coronel Josias tem se tornado, ao longo do corrente ano, o
"homem forte" do governo do Estado do Rio de Janeiro.
Em outubro passado, viajou para a Colômbia, na tentativa
de localizar o traficante Fernandinho Beira-Mar. Esta viagem
foi realizada secretamente, pois não foi comunicado
ao governo colombiano que estaria realizando investigações
naquele país e nem ao governo brasileiro. Quintal foi
barrado no aeroporto de Bogotá, acompanhado da promotora
Márcia Velasco e do sub-secretário de Planejamento
Operacional do Estado do Rio de Janeiro, coronel Lenine Freitas
que tinha seu passaporte vencido. Esse ridículo episódio
irritou não só o Itamarati, mas também
a Polícia Federal que, junto com o governo do Estado
do Rio de Janeiro, trabalha para a prisão do traficante.
José
Halfeld Filho futuro Vice - prefeito da cidade de Cordeiro/RJ
O
Grupo Tortura Nunca Mais/RJ tomou conhecimento, desde 1985,
através do depoimento de ex-presas políticas,
que o Sr. José Halfeld Filho, coronel da reserva do
Corpo de Bombeiros, participou dos órgãos de
repressão que agiram durante a ditadura militar.
Enfatizamos
o fato de que a denúncia de tal participação
já foi tornada pública por ocasião da
indicação do senhor José Halfeld Filho
para cargos de confiança em governos estaduais passados.
Em 1985, como secretário Estadual de Defesa Civil,
indicou para comandante do Corpo de Bombeiros do Estado do
Rio de Janeiro o conhecido torturador, coronel bombeiro Walter
da Costa Jacarandá, que atuou no DOI-CODI/RJ entre
1969 e 1973, e que fez curso nas Forças Especiais dos
Estados Unidos. Diante das denúncias feitas por um
grupo de ex-presos políticos, incluindo o então
secretário Estadual de Transportes Brandão Monteiro,
a indicação feita pelo coronel Halfeld não
se efetivou.
Na
mesma época, outros ex-presos políticos, além
de reconhecerem o coronel Jacarandá como torturador,
prestaram depoimentos à então criada Comissão
Estadual de Justiça, Segurança Pública
e Direitos Humanos, reconhecendo o coronel Halfeld como carcereiro
e responsável pelas presas políticas no ano
de 1969, no presídio São Judas Tadeu, localizado
no andar térreo do prédio do DOPS/RJ, situado
à Rua da Relação. Apesar das denúncias,
o coronel Halfeld continuou a ocupar a Secretaria de Defesa
Civil, numa flagrante contradição com a política
de direitos humanos anunciada pelo Governo Estadual da época.
Posteriormente,
em junho de 1994, por iniciativa do vereador Luis Carlos Aguiar,
do PSC, teve seu nome indicado para ser agraciado com o título
de Cidadão Honorário, na Câmara de Vereadores
do Município do Rio de Janeiro. O GTNM/RJ denunciou
as ligações do coronel Halfeld com o aparato
de repressão e o referido vereador retirou a indicação.
Está claro, portanto, que as ligações
do coronel Halfeld com o terrorismo de Estado que vigorou
em nosso país é um fato amplamente divulgado,
desde 1985, pela imprensa de nosso estado.
Além
dessas informações, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ
colheu depoimentos de cinco ex-presas políticas sobre
a atuação do coronel Halfeld. São elas:
Iná Meireles de Souza, médica, portadora da
Cédula de Identidade nº 80.822.569, do IFP-RJ;
Maria Alice Saboya, pedagoga, portadora da Cédula de
Identidade nº 1192118 SSP-GO; Ziléia Reznik, portadora
da Cédula de Identidade nº 8075315-5, do IFP;
Maria Augusta Carneiro Ribeiro, atualmente trabalhando na
área de computação gráfica, portadora
da cédula de identidade Nº 02108127-8 IFP-RJ e
Martha Mota Lima Alvarez, portadora da Cédula de Identidade
nº 03143.001-9IFP-RJ.
Em
1998, José Halfeld Filho assumiu o cargo de Vice-secretário
de Agricultura do Estado do Rio de Janeiro. Em 1999, foi empossado
como Coordenador da Agência de Desenvolvimento Regional,
em Cordeiro (RJ). Em novembro de 2000, foi eleito Vice-prefeito
da cidade de Cordeiro, no norte fluminense, em coligação
do PDT, partido de Halfeld, com o PSB.
Diante
do exposto, fica evidenciado o comprometimento do senhor José
Halfeld Filho com o aparato de repressão que, durante
mais de uma década, praticou seguidas violações
contra os direitos humanos de toda a população
brasileira, agindo fora da lei mesmo da lei de exceção
que então vigorava em nosso país. Somente este
fato explica a presença de um oficial do Corpo de Bombeiros
nas atividades de encarceramento e transporte de presas políticas
tarefas totalmente estranhas ao ofício da instituição
à qual Halfeld pertencia.
O
Grupo Tortura Nunca Mais/RJ afirma, com base nos fatos acima
relatados, que o coronel da Reserva do Corpo de Bombeiros
José Halfeld Filho pertenceu ao aparato de repressão,
sendo um elemento do sistema. Tal comprometimento, ao nosso
ver, é incompatível com a ocupação
de cargos de confiança em governos que se pretendam
democráticos e preocupados com os direitos humanos.
Cassação
de Médico Torturador é Confirmada
A
segunda turma do Superior Tribunal de Justiça confirmou,
em 29 de novembro último, por unanimidade, a cassação
do registro de médico do General de Brigada do Exército
Ricardo Agnese Fayad por ter participado como assessor de
tortura de violações praticadas contra presos
políticos, entre os anos de 1970 a 1974, no DOI-CODI/RJ.
O
Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro havia cassado
seu registro em 1994, o que foi posteriormente, confirmado
pelo Conselho Federal. Fayad havia esquecido mandato de segurança
determinando sua reintegração e Conselhos de
medicina apelaram e o STJ, finalmente, reconheceu suas competências
para punir médicos militares que violem a ética
profissional.
Torturador
é demitido da ABIN
O
Grupo Tortura Nunca Mais/RJ denunciou, em 30 de novembro último,
Carlos Alberto Del Menezzi, funcionário da Agência
Brasileira de Informação, como elemento diretamente
envolvido em torturas, prisões e cercos durante o período
da ditadura militar.
O
Grupo pesquisou nos 12 volumes do Projeto Brasil Nunca Mais,
coordenado pela Arquidiocese de São Paulo e encontrou
o nome de Del Menezzi em quatro citações. Três
ex-presos políticos (José Adão Pinto,
Maurício Vieira de Paiva e Ângelo Pezzuti da
Silva já falecido) denunciaram-no em auditorias
militares, como torturador. A é poça das denúncias
(1969 e 1970), Del Menezzi era 2o. tenente de Infantaria do
Exército, servindo no 12o. Batalhão, em Belo
Horizonte, Minas Gerais.
Após
a denúncia ter se tornado pública, por pressão
de parlamentares e entidades de direitos humanos, Carlos Alberto
Del Menezzi foi exonerado da ABIN pelo Presidente da República,
assim como o diretor executivo do órgão, Coronel
Ariel de Cunto, responsável pela nomeação
de Del Menezzi, também foi demitido.
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Cecília Maria Bouças Coimbra é presidente
do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ e membro do Conselho Consultivo
do Centro de Justiça Global.
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