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Relatórios


Discriminação Racial: casos selecionados

Geledés - Instituto da Mulher Negra      

Em um primeiro momento, serão colocados três casos de discriminação racial, que ressaltarão alguns dos obstáculos existentes no país à afirmação da pessoa negra no mercado de trabalho. Esses casos têm especial relevância, na medida em que explicitam a necessidade premente de se instaurar políticas afirmativas que revertam os prejuízos causados pela discriminação e possibilitem uma maior mobilidade social de pessoas negras no País. Têm relevância, ainda, por marcarem precedentes em uma área ainda carente de jurisprudência.

Em um segundo momento, será relatado um caso de injúria qualificada. Os casos de injúria por motivos raciais são altamente representativos não apenas em relação ao número de casos registrados por Geledés, mas também no âmbito do próprio Judiciário. Como existe no Brasil uma certa resistência à aplicação da Lei 7716/89, que criminalizou condutas racialmente discriminatórias nas relações de consumo, de trabalho e de vizinhança, os casos de injúria racial passaram provavelmente a perfazer a maioria dos casos de racismo no Judiciário. A menor resistência ao reconhecimento do crime de injúria por motivo racial baseia-se provavelmente em dois fatores. Primeiro, as penas previstas para esse crime são mais brandas do que aquelas da Lei 7716/89, além de suscetíveis à fiança e à prescrição. Segundo, enquanto a injúria é uma figura clássica do direito penal, com a qual os operadores do direito já estão acostumados, os crimes de racismo são uma criação recente no direito brasileiro.

O primeiro caso trata, como foi dito, de discriminação racial no mercado de trabalho. A vítima, N. L. C., foi admitida como vendedora em uma loja de calçados de São Paulo no dia 02 de maio de 1995. Após quatro meses de serviços prestados, precisou se ausentar por um dia do emprego devido a problemas de saúde. Ao retornar, tornou-se alvo de seguidas ofensas de caráter racial por parte de três de seus supervisores, conforme consta no depoimento da vítima e nos testemunhos de diversos funcionários da loja, apurados no inquérito penal que deu origem ao processo criminal n. 868/99. (O processo correu perante a 2ª Vara Criminal do Foro da Comarca de Osasco, no Estado de São Paulo.) Os fatos são relatados a seguir.

No dia 20/09/95, o gerente geral do estabelecimento negou a N. L. C. sua comissão pelas vendas realizadas no dia, acrescentando ainda que "preto só enche o saco." No dia seguinte, o mesmo gerente determinou que os funcionários brancos almoçariam antes dos funcionários negros. Por ter discordado dessa atitude, N. L. C. foi colocada por dez minutos de castigo por um segundo supervisor, subgerente da loja. Conforme o relatado em sentença, o subgerente esclareceu aos outros funcionários que colocara N. L. C. de castigo porque "era preta e não vendia nada."

No dia 22/09/1995, um terceiro supervisor estipulou que N. L. C. se dispusesse no fundo da loja. Tratava-se de novo castigo do qual não deveria se esquivar sob pena de ser demitida. A . S. G., outra funcionária do estabelecimento, interveio em benefício da vítima, sendo demitida sem justa causa no primeiro dia útil que se seguiu. Em decorrência da pressão a que foi submetida por seus superiores, N. L. C. pediu demissão.

O Ministério Público do Estado de São Paulo entendeu ser a ação de iniciativa privada, requerendo o arquivamento do feito devido o vencimento do prazo para a apresentação de queixa. A Justiça Paulista decidiu em primeira instância pela improcedência da ação, fundamentando a sentença na irretroatividade do artigo 20, da Lei 7716/89, na redação que lhe foi dada pela Lei 9459/97. Frisou a juíza que tampouco seria aplicável ao caso o artigo 140, parágrafo 3° , do Código Penal, que tipifica a injúria qualificada, em decorrência desse mesmo princípio da irretroatividade. Todavia, ressaltou que se teria configurado a conduta típica descrita no artigo 20, da lei 7716/89, caso os fatos houvessem ocorrido após a nova redação dada à lei.

Geledés ajuizou ação de indenização por ato ilícito em 8 de junho de 2000. Todavia, ainda não foi proferida a sentença (Processo n. 506/00, 1ª Vara Cível da Comarca de Osasco, no Estado de São Paulo). O caso foi divulgado pela TV Gazeta, no programa Check-Up, do dia 22/10/2000.

O caso de N. S. e de G. A . F. também diz respeito à discriminação no mercado de trabalho. No dia 26 de março de 1998, N. S. e G. A . F. dirigiram-se a uma empresa de seguros de saúde em São Paulo, atendendo a um anúncio de emprego veiculado no jornal Folha de São Paulo. Contudo, ao chegarem, foram informadas pelo representante da empresa que as vagas já haviam sido preenchidas.

Uma amiga das vítimas, I. C. L., uma mulher branca, foi, todavia, contratada para o cargo anunciado, embora tivesse se dirigido à empresa após as vítimas. Conforme informado a I. C. L., não apenas havia vagas disponíveis, como precisavam preenchê-las com urgência. Em primeira instância, julgou-se pela improcedência do pedido. O Ministério Público manifestou-se favoravelmente à interposição do recurso pelas vítimas, ressaltando que os fatos apresentaram de forma "patente" a existência de discriminação racial (Processo n. 681/98, 24ª Vara Criminal do Foro Central da Capital de São Paulo).

O terceiro caso também trata de discriminação racial no trabalho. No dia 23 de maio de 1997, A . O . A ., funcionário de uma indústria do setor químico com sede em São Paulo, recebeu em sua mesa de trabalho cópias impressas de uma mensagem entitulada "Piadas para Vocês Pretos," com conteúdo racialmente ofensivo. A mensagem, enviada por um colega de trabalho por correio eletrônico, havia sido impressa e fotocopiada, e circulara por quatro meses e nove dias pelo escritório antes de ser recebida por A . O . A . A título ilustrativo, destacam-se os seguintes "piadas":

- O que mais brilha no preto?
- As algemas.

- O que acontece se o preto cair num monte de bosta?
- Aumenta o monte.

- Por que cigana não lê a mão de preto?
- Porque preto não tem futuro.

- Qual a diferença entre o preto e o câncer?
- O câncer evolui.

- Por que Deus fez o mundo redondo?
- Para os pretos não cagarem nos cantos.

- Quando preto vai à escola?
- Quando está em construção.

- Quando preto anda de carro?
- Quando vai preso.

Em transação penal, o funcionário responsável pelo envio da mensagem reconheceu que a havia mandado, tendo-se acordado que ele pagaria cinco dias de multa pela prática contravencional. Em ação indenizatória (Processo n. 277/00, 2 ª Vara Cível do Foro Distrital de Vinhedo da Comarca de Jundiaí), promovida por Geledés, foi ressaltada a existência do crime do artigo 20, da Lei 7716/89, no intuito de esclarecer a ocorrência de dano moral à vítima. O artigo 20 tipifica penalmente a conduta de "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência." A pena de reclusão de um a três anos e multa é agravada para a pena de reclusão de dois a cinco anos e multa, conforme explicita o parágrafo 2° desse artigo, "se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação ou publicação de qualquer natureza." A ação indenizatória ajuizada por Geledés, contudo, ainda não foi julgada. O caso foi divulgado pela Rede Globo, no programa Fantástico.

O quarto caso trata de injúria qualificada. No dia 18 de fevereiro de 1999, E. O. N. foi ofendido verbalmente quando visitava um amigo seu pela vizinha desse, que se dirigiu a E. O. N. utilizando as expressões "macaco, fedido, preto filho da puta," sem que lhe houvesse sido feita qualquer provocação. Embora tenha sido alegado por uma amiga da ofensora, de cor negra, que nunca havia presenciado qualquer conduta discriminatória por parte daquela, tanto o Ministério Público quanto o juiz da 28ª Vara Criminal de São Paulo entenderam existir caso de injúria qualificada, prevista no artigo 140, parágrafo 3, do Código Penal. O Ministério Público chegou a esclarecer que se buscou pelo dispositivo, "alcançar com maior rigor aqueles autores de crimes contra a honra que, para ofender, se socorrem de elementos relativos a odiosa discriminação racial, de cor ou religião, tão camuflada em nossa sociedade." A querelante foi condenada a um ano de reclusão e a 10 dias-multa, tendo-lhe sido concedido o benefício do sursis, suspensão condicional da pena, por dois anos. A querelante ainda poderá entrar com recurso contra a decisão em primeira instância (Processo n. 586/99, 28ª Vara Criminal da Capital de São Paulo).

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