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Relatórios


A Emergência dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais no Brasil

Jayme Benvenuto Lima Jr. *          

A emergência dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais tem feito surgir no Brasil uma série de iniciativas destinadas a garantir a vigência desses direitos. De uma maneira geral, os movimentos e entidades envolvidos nessas iniciativas têm procurado orientar suas ações no sentido de ampliar o conhecimento em torno do próprio tema, e de estabelecer parâmetros para uma atuação cada vez mais qualificada de monitoramento dos compromissos sociais assumidos internacionalmente pelo Brasil e garantidos formalmente na Constituição brasileira.

Uma das iniciativas mais importantes, nesse sentido, tem sido conduzida pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos - articulação de cerca de 350 entidades brasileiras - que tem se dedicado nos últimos dois anos a realizar oficinas regionais sobre os Direitos Humanos Ecnômicos Sociais e Culturais (DHESC), com a finalidade de treinar membros de suas entidades filiadas no uso de mecanismos nacionais e internacionais de proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais. Essas oficinas têm se convertido no principal espaço de sensibilização da militância ligada às entidades de direitos humanos para a necessidade de ampliar suas visão e sua prática em torno do tema dos direitos humanos indivisíveis.

De igual maneira, o PAD - Processo de Articulação e Diálogo, articulação que envolve sete agências ecumênicas européias e suas contrapartes brasileiras, estabeleceu como um de seus eixos de ação o tema dos direitos humanos, com foco nos direitos econômicos, sociais e culturais. Essa definição tem significado, antes de tudo, uma tomada de consciência dos diversos grupos envolvidos, de que todos estão vinculados a uma prática de promoção dos direitos humanos. Essa iniciativa propiciou também o desenvolvimento da capacidade de construção de estratégias comuns, com o objetivo de obter avanços concretos no campo social. Entre as entidades que compõem o PAD há a consciência de que não se quer trocar direitos civis e políticos por DHESC, mas agregar esses à categoria dos direitos humanos.

Nesse processo de ampliação da perspectiva de ação dos grupos de direitos humanos brasileiros, as conferências nacionais de direitos humanos[1] - convocadas anualmente, desde 1996, por ocasião da instituição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) - têm procurado converter em prática a promoção e a defesa dos DHESC. As conferências nacionais se tornaram o principal espaço de monitoramento do PNDH e de denúncia da sua limitação aos direitos civis e políticos. O momento mais significativo dessa iniciativa se deu quando, em 1999, a 4a. Conferencia Nacional de Direitos Humanos foi toda dedicada à abordagem dos direitos econômicos, sociais e culturais, e teve como principal encaminhamento a constituição de um grupo de trabalho para elaborar o Relatório da Sociedade Civil sobre o Cumprimento, pelo Brasil, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ao assumir essa tarefa na Conferência, a sociedade civil organizada afirmou sua intenção e capacidade de monitorar a implementação dos compromissos assumidos pelo Brasil em nível internacional.

Um ano após o encaminhamento dado pela 4a. Conferência Nacional de Direitos Humanos, o Relatório foi apresentado com enorme impacto no âmbito do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, das Nações Unidas. O Relatório foi recebido pelos membros do Comitê com grande interesse, ao ponto de sua presidente, Virginia Bonoan-Dandan, saudá-lo como “relatório alternativo” da sociedade brasileira, “que será examinado pelo Comitê como oficial, caso o governo brasileiro não apresente o seu relatório, como lhe compete, no prazo devido”. A reação por parte do Comitê ao esforço da sociedade organizada fortalece nosso objetivo de “informar à comunidade internacional e a própria opinião pública brasileira sobre a situação do país no campo dos direitos econômicos, sociais e culturais, incorporando-os no Programa Nacional de Direitos Humanos”[2].

A 4a. Conferência Nacional de Direitos Humanos levou o governo federal a assumir o compromisso de ampliar o Programa Nacional de Direitos Humanos em torno dos direitos econômicos, sociais e culturais. O novo PNDH, reelaborado a partir de consultas a diversos grupos sociais reunidos em seminários regionais, deverá ser lançado até o final do ano 2000.

No mesmo sentido da ampliação da compreensão e da prática dos direitos humanos, diversas entidades brasileiras têm participado de espaços internacionais de articulação. É o caso da Plataforma Interamericana de Direitos Humanos e do Observatório da Cidadania/Social Watch. Ambos os espaços buscam potencializar ações nacionais e internacionais para a proteção dos DHESC, e, nesse sentido, têm tido sua parcela de contribuição para os resultados obtidos no Brasil em termos da incorporação desse tipo de direito à prática das entidades.

Perspectivas para a Realização prática dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

A ampliação dos espaços de DHESC no Brasil tem como pressuposto a adoção de um amplo leque de estratégias. No âmbito das ações nacionais, os movimentos de direitos humanos precisam desenvolver estratégias de reivindicação dos DHESC, através de pelo menos três caminhos – a justiciabilidade (enquanto possibilidade de se exigir direitos face ao Poder Judiciário), as políticas públicas e o monitoramento. Quando combinados, esses três mecanismos poderão garantir a realização dos DHESC num período de tempo mais curto. A preocupação com a questão tempo é uma preocupação que se vincula e se compatibiliza com a emergência de realização dos DHESC.

No campo da justiciabilidade, é preciso testar o Poder Judiciário com demandas relacionadas a direitos econômicos, sociais e culturais - ainda que as primeiras respostas possam não ser positivas. Dessa forma, se estará proporcionando que esse Poder reflita sobre o sentido através do qual a Constituição brasileira de 1988 atribuiu aos DHESC prevalência como nunca antes em nossa história constitucional. Essa condição obriga o Judiciário a se reposicionar no cenário nacional, com vistas ao respeito aos direitos humanos numa perspectiva indivisível. Na viabilização desse caminho, será necessária a utilização direta do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Pacto de San Salvador (como de todos os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos), em cumprimento ao disposto pela Constituição de 1988.

Enquanto realização pela via das políticas públicas, será importante potencializar os diversos espaços públicos (governamentais ou da sociedade civil) para as discussões sobre os direitos econômicos, sociais e culturais. É o caso, por exemplo, dos conselhos e das comissões de direitos humanos e das ouvidorias, em nível municipal, estadual ou nacional. Mais que introduzir o tema da realização dos DHESC nas discussões desses espaços, será necessário cobrar-lhes eficácia através do desenvolvimento de mecanismos de monitoramento para a implementação dos direitos.

O monitoramento é condição sem a qual não se pode esperar a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais numa perspectiva de tempo razoável. A partir da experiência positiva dos Relatores Especiais das Nações Unidas, pode-se vislumbrar o apontamento, pela sociedade civil organizada, de relatores nacionais – com mandato temporal e de conteúdo claramente definido –para a avaliação da realidade em matéria de DHESC, e a proposição de caminhos para a superação dos problemas. Essas pessoas podem estar ligadas a universidades e centros de pesquisa, e deverão ter disponibilidade de tempo e de recursos para a consecução de suas atividades. A produção de conhecimento e a crítica da realidade por parte dos relatores nacionais ganhariam visibilidade em um encontro anual destinado à exposição e ao debate de suas idéias.

Combinado a esse procedimento, podemos estimular visitas ao Brasil de Relatores Especiais temáticos da ONU com mandato em torno dos direitos econômicos, sociais e culturais (sobre o direito ao desenvolvimento; o direito à educação; os efeitos da dívida externa; a extrema pobreza; os efeitos dos programas de ajuste estrutural; e o direito à habitação). As visitas desses relatores teriam a dupla finalidade de verificar a realidade brasileira em matéria de DHESC, e de aumentar o conhecimento da nossa sociedade em torno desses temas.

No âmbito das ações internacionais, faz-se necessário potencializar e ampliar a participação da sociedade civil brasileira nos espaços de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos, na perspectiva de obrigar o governo brasileiro a responder às violações de direitos, a partir das pressões internacionais.

Além do uso dos instrumentos jurídicos no espaço da OEA e da ONU, será preciso que a sociedade civil brasileira esteja presente nos espaços internacionais, na perspectiva de colocar sua visão sobre o que acontece no Brasil em matéria de direitos humanos. Não é adequado nem justo que caiba unicamente ao governo a prerrogativa de representar o que considera ser a situação dos direitos humanos no País. Cabe à sociedade civil a tarefa de fazer o contraponto com o discurso oficial, além de contribuir para o surgimento e aprofundamento de novas propostas para a superação dos problemas.

Por fim, nosso desafio é o fortalecimento da articulação da sociedade civil brasileira para reivindicar a implementação dos direitos humanos em sentido indivisível.

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[1] Participam da organização dos eventos, desde 1996: Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, Movimento Nacional de Direitos Humanos, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Ordem dos Advogados do Brasil, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e organismos associados, Centro de Proteção Internacional de Direitos Humanos, Anistia Internacional, Instituto de Estudos Econômicos e Sociais, Fórum pela Criança e Adolescente, Marcha Global contra o Trabalho Infantil, Federação de Órgãos de Assistência Social e Educacional (Fase) e Ágora.

[2] O Brasil e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Relatório da Sociedade Civil sobre o Cumprimento, pelo Brasil, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados/Movimento Nacional de Direitos Humanos/Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Brasília. 2000.

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*Jayme Benvenuto Lima Jr. é advogado e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; representa o GAJOP – Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares e o MNDH – NE perante a ONU.

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