Dispositivos e serviços de informação,
tão fortalecidos durante a ditadura militar, perduram
até hoje. Desde o primeiro mandato de Fernando Henrique
Cardoso, o tema "subversivo" utilizado nos anos
60 e 70, foi trocado por "forças adversas"
para designar movimentos populares e organizações
sociais.
A
Espionagem do Exército e a Questão
dos Mortos e Desaparecidos Políticos
Cecília
Maria Bouças Coimbra1
No
mês de junho do corrente ano, por solicitação
da Procuradoria Geral da República do RJ _ através
de petição feita pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ
e outras entidades de direitos humanos _ os Procuradores da
República Guilherme Schelb (DF), Marlon Alberto Weinchert
(SP), Ubiratan Cazzeta e Felício pontes (PA) instalaram
Inquérito Civil Público visando esclarecer fatos
relacionados à Guerrilha do Araguaia (episódio
sempre negado pelo Exército e que ocorreu no sul do
estado do Pará, de 1972 a 1974, quando aconteceu o
massacre de 69 militantes políticos do PCdoB, fora
dezenas de moradores da região que foram exterminados
e transformados em desaparecidos. Nesta operação
foram utilizados cerca de 3.500 homens do Exército)
Em
diligências feitas na cidade de Marabá (sul do
Pará), o Ministério Público Federal e
a Polícia Federal apreenderam documentos, divulgados
pela Folha de São Paulo, que revelam o desrespeito
à ordem democrática e à própria
Constituição Brasileira.
Estes papéis apareceram por acaso, durante um inquérito
do Ministério Público para localizar os restos
mortais dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia. Os procuradores
realizaram uma operação de busca numa instalação
do Exército, disfarçada de agência de
notícias, onde os "jornalistas" eram, em
realidade, agentes secretos.
O
conteúdo desses documentos mostram que muitos dispositivos
e serviços de informação, tão
fortalecidos durante a ditadura militar, perduram até
hoje. Desde o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso,
o termo "subversivo", utilizado nos anos 60 e 70,
foi trocado por "forças adversas" para designar
movimentos populares e organizações sociais.
Eles são equiparados ao crime organizado e ao narcotráfico.
Um dos textos afirma que a polícia, para assegurar
a ordem e o bem públicos, se permite "arranhar
direitos dos cidadãos numa espécie de arbítrio
necessário".2
Nos
documentos descobertos, a definição de forças
adversas aparece como "grupos, movimentos sociais, entidades
e ONGs (...) que provocam reflexos negativos para a segurança
nacional (...). No momento atual, verificam-se exemplos dessas
entidades no crime organizado, no narcotráfico e nos
movimentos populares como o MST".
O
Exército ainda coloca a hipótese destes grupos
realizarem "atos de sabotagem" contra suas instalações.
Caso isso ocorra, a recomendação aos agentes
é clara: "repelir e/ou eliminar a força
adversa que tenha se infiltrado". Nessas ocasiões,
deve-se fornecer ao Órgão de Inteligência
"armamento e munição a todos os integrantes"
.
Em
1998, o Exército deflagrou um plano secreto para espionar
o MST, chamado de "Operação Pescado".
Esse plano é financiado com verbas públicas
ocultas e possui duração "indeterminada".
Com o objetivo de justificar esse plano, o Exército
traçou um perfil revolucionário do MST em seus
documentos, que dizem: [O MST tem]
"
objetivo definido de tumultuar a ordem vigente e comprometer
a confiança nas instituições e no regime
atual do governo". A cada novo relatório, os agentes
recomendam o prosseguimento dessa operação.
Em 30 de agosto de 2000, o capitão André Luiz
Silva anotou: "A Operação Pescado deve
continuar, devido (...) à importância de manter
um constante acompanhamento do alvo, que pode se tornar, a
qualquer momento, força adversa em operações
de garantia da lei e da ordem".
Além
do MST, outros movimentos estão sob vigilância:
MLT (Movimento de Luta pela Terra), MTRB (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Brasileiros), MNT (Movimento Nacional dos Trabalhadores),
MMBTRST (Movimento Muda Brasil dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra) e CPT (Comissão Pastoral da Terra).
No
início de 2000, o Exército iniciou outra operação
secreta contra o MST, chamada "Tempestade". Segundo
documentos divulgados pela Folha de S. Paulo, o objetivo desta
missão era "levantar a localização
e a data de invasões, manifestações e
ocupações" do MST. A operação
durou até setembro de 2000.
Além
disso, os documentos divulgados revelam que o Exército
montou outra operação secreta, denominada "Poseidon",
para espionar ONGs. Esses textos indicam que a inteligência
do Exército tem interesse especial por entidades de
defesa do meio ambiente, de direitos humanos e que trabalham
com a questão indígena.
Foi
descoberta também uma tabela de preços usada
por pistoleiros na região norte do país. Essa
tabela revela que, em Marabá, "a morte de um trabalhador
rural pode não valer mais do que uma dose de cachaça.
Se [o trabalhador] for ligado ao MST, o custo costuma ser
de R$ 5.000". A morte de um fiscal do Ibama considerado
rigoroso pode chegar a R$ 10 mil e a morte de um delegado
de polícia pode custar R$ 15 mil. Além disso,
a tabela indica que comerciantes, vereadores, fazendeiros
e políticos em geral podem ser assassinados por recompensas
que variam de R$ 5.000 a R$ 10.000.
A
correta atitude do Ministério Público Federal
de trazer a público a espionagem que, em pleno início
do século XXI, ainda acontece sofreu um duro golpe.
Em final de agosto do corrente ano, atendendo a um mandato
de segurança da Advocacia Geral da União, foi
concedida liminar pelo juiz João Batista Gomes Moreira,
do Tribunal Regional Federal, que determinou a imediata devolução
de toda a documentação do Serviço de
Inteligência do Exército, apreendida em Marabá.
Estes documentos foram também encontrados em outras
duas casas (uma em Brejo Grande e outra em Nova Marabá)
utilizadas pelo Exército como escritórios clandestinos
com vistas ao monitoramento das atividades na região.
Como já afirmado, tal quadro demonstra claramente,
a manutenção do aparato repressivo relativo
ao sistema de inteligência do governo federal, não
obstante a reformulação de sua estrutura, ocorrida
em 1994.
Antes
da expedição do mandato de segurança,
em agosto do ano corrente, o Comandante Militar da Amazônia,
General Valdécio Guilherme de Figueiredo oficiou à
Justiça Federal de Marabá, queixando-se da apreensão
dos documentos, referindo-se aos funcionários que procederam
à apreensão _ em decorrência de autorização
judicial _ de "supostos agentes do Departamento de Polícia
Federal e supostos Procuradores da República"
(Folha de São Paulo, 27/08/01)
Parte
da documentação, encontrada no sul do Pará,
apontou também para a chamada "Operação
Anjos da Guarda", ou seja, a vigilância e o monitoramento
aos ex-colaboradores do Exército na região que
atuaram na repressão à Guerrilha do Araguaia.
Tal operação tem consistido em fornecer cestas
de alimentos, armas consideradas frias e ajuda em dinheiro
para os que colaboraram com o Exército, naquela região,
no período da ditadura militar.
Entre
os documentos que dizem respeito à guerrilha do Araguaia
constam relatórios com detalhes do ponto de vista estratégico-militar,
fazendo parte das Operações "Papagaio"
(1972) e "Sucuri" (1973-1974). Foram também
encontradas listagens com nomes de guerrilheiros mortos e
presos, de moradores da região e dos militares, com
identidades plantadas, que fizeram parte das duas operações.
Outros documentos apontam, o que as entidades de direitos
humanos há muito denunciavam, que os corpos dos opositores
políticos mortos, até hoje desaparecidos, não
foram jogados a esmo na selva. Depois de identificados, acabaram
em covas selecionadas (Folha de São Paulo, 19/08/01,
p. A14).
Enquanto
isto, o Exército, em 07/08/01, em nota oficial divulgada
afirmava que: "Quanto aos desaparecidos nos combates
travados naquela região, é importante salientar
o que o Exército tem reiterado exaustivamente quando
consultado a respeito do assunto: nos arquivos existentes,
nada foi encontrado que pudesse indicar a localização
de seus corpos" (Folha de São Paulo, Idem)
Outros
documentos do Centro de Informações do Exército,
de abril de 1973, apresentam os nomes e codinomes de 32 militares
mobilizados para espreitar a guerrilha que contaram com o
apoio de 21 civis, muitos dos quais recrutados na área.
O
Grupo Tortura Nunca Mais/RJ pesquisando em suas listagens
e nas do Projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese
de São Paulo, levantou que 5 desses militares já
haviam sido denunciados como torturadores e membros do aparato
de repressão. É importante enfatizar que o Projeto
Brasil Nunca Mais _ uma das radiografias mais completas sobre
o regime militar _ é o resultado da microfilmagem de
todos os processos vinculados à questão da "segurança
nacional" que se encontram no Superior Tribunal Militar,
abarcando o período de 1964 a 1979. Trata-se, portanto,
de documentação oficial que não pode
ser rotulada de facciosa. Os 5 militares cujos nomes constam
nesse Projeto Brasil Nunca Mais são: Armando Honório
da Silva (3º Sargento do Exército, servindo em
Brasília); Milhurges Alves Ferreira (2º Sargento,
do Exército, servindo em Goiânia); Aluízio
Madruga de Moreira e Souza (1º Tenente da Aeronáutica,
servindo no Rio de Janeiro); José dos Reis (3º
Sargento do Exército, servindo em Brasília);
Joaquim Artur Lopes de Souza (3o Sargento do Exército,
servindo em Brasília).
Os
documentos demonstram, ainda, que as duas operações
realizadas pelo Exército na região contaram
com o apoio da Marinha, da Aeronáutica e de policiais
militares do Maranhão, Pará e Goiás (Folha
de São Paulo, idem).
Todas
essas informações oficiais, cujo teor foi ainda
muito pouco divulgado, demonstram cabalmente duas questões.
A primeira, diz respeito à existência dos chamados
arquivos secretos da repressão (SNI, DOI-CODIs, Serviços
Secretos da Marinha, Exército e Aeronáutica)
que até agora não foram trazidos a público.
Até hoje as autoridades militares e civis de nosso
país teimam em afirmar que tais arquivos não
existem. Com esses documentos começa a ser revelada
a história das violências cometidas, com o carimbo
oficial, em um dos mais sangrentos episódios de nosso
passado recente: a guerrilha do Araguaia. Segredos, entretanto,
que ainda estão longe de serem totalmente revelados
e trazidos ao conhecimento de toda a sociedade.
A
segunda questão, continuidade desta primeira, é
a de que a história das mortes e desaparecimentos ocorridos
durante o período de terrorismo de Estado, em nosso
país, é uma questão em aberto. O esclarecimento
desses assassinatos cometidos em nome da Segurança
Nacional, e a responsabilização de seus mandantes
e executores ainda não se fez.
Vale
ressaltar o trabalho desenvolvido, de 1996 a 1998, pela Comissão
Especial criada pela Lei 9.140/95 sobre mortos e desaparecidos
políticos, que reconheceu _ apesar das limitações
da Lei _ centenas de militantes mortos sob a guarda do Estado,
trazendo ao conhecimento público as circunstâncias
de algumas de suas mortes. Entretanto, a segunda parte dos
trabalhos _ prevista pela própria Lei _ que deveria
ser a investigação dos locais onde estariam
os restos mortais dos desaparecidos e de alguns mortos e o
depoimento de várias autoridades elencadas nas petições
feitas pelos familiares para prestarem esclarecimentos, até
hoje não aconteceu. Desde 1998 esta Comissão
não mais se reuniu. No exterior as autoridades brasileiras
têm afirmado, inclusive em instâncias de direitos
humanos internacionais, que a questão das mortes e
desaparecimentos políticos ocorridos durante o período
da ditadura militar é uma página virada de nossa
história; é uma questão já resolvida.
Em
alto e bom som afirmamos que não. Todos aqueles que
defendem os direitos humanos e o resgate de nossa história
continuam lutando pela:
imediata
abertura de todos os arquivos da repressão.
Esclarecimento
das circunstâncias em que se deram as mortes e os desaparecimentos
e os seus responsáveis.
Localização
dos restos mortais desses militantes desaparecidos e mortos.
Ampliação
da Lei 9.140/95 que deverá contemplar os mortos em
manifestações públicas durante a ditadura
militar; que não deverá restringir o prazo para
os familiares requererem os seus direitos; que deverá
estender o período de sua abrangência até
o final da ditadura, em 1985 e que deverá colocar o
ônus das provas nas mãos do Estado e não
na dos familiares, como ainda se encontra na letra da referida
Lei.
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1
Cecília Maria Bouças Coimbra - Psicóloga,
Professora Adjunta na Universidade Federal Fluminense, Pós-Doutora
em Ciência Política pelo Núcleo de Estudos
da Violência da USP, Coordenadora da Comissão
Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia,Vice-Presidente
do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, Membro do Conselho Consultivo
da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
2
Reportagens de 2 a 17/08/2001 no Caderno Brasil do jornal
Folha de São Paulo.
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