As cerca de 2 mil pessoas que protestavam na Avenida Paulista
contra a criação da Alca, no dia 20 de abril
de 2001, foram personagens de um filme de terror: 69 foram
presas _ sendo 40 menores _, mais de 100 ficaram feridas,
além de diversos casos de humilhação
moral e tortura praticada pela Polícia Militar de São
Paulo.
PM
promove barbárie na Paulista
José
Arbex Jr., Revista Caros Amigos
Foram
69 presos (dos quais, 40 menores de idade, a maioria mulheres),
mais de cem feridos _ alguns com muita gravidade _, vários
casos de humilhação moral e tortura física
praticada por soldados no interior das viaturas e nas dependências
da delegacia de polícia. Este foi o saldo da brutal
repressão praticada pela PM de São Paulo, no
dia 20 de abril, em plena avenida Paulista, contra as cerca
de 2 mil pessoas que se manifestavam em repúdio à
criação da Alca (Área de Livre Comércio
das Américas). Participei da manifestação,
na dupla qualidade de cidadão que se opõe à
Alca e repórter da Caros Amigos. A brutalidade policial
que presenciei só encontra paralelo na truculência
com que as manifestações eram reprimidas à
época da ditadura militar. Ou, se quisermos lembrar
fatos mais recentes, foi equiparável à selvageria
praticada pela PM exatamente um ano antes, em Porto Seguro
(Bahia), ou no dia 18 de maio, contra professores e funcionários
públicos na mesma Paulista, ou, ainda, à ferocidade
empregada contra os acampamentos do MST.
A
polícia nega que tenha cometido abusos, e atribui o
uso da violência à "provocação
dos punks", à obstrução do trânsito
na Paulista e à suposta "desorganização"
dos manifestantes, que não
teriam
comunicado previamente a intenção de fazer a
manifestação. "Se o protesto tivesse ocorrido
de forma organizada, com pedido de autorização
feito à polícia, a PM até garantiria
a segurança dos manifestantes no local", diz o
capitão Roberto Alves, assessor de Comunicação
Social da PM. Isso, simplesmente, não é verdade.
A manifestação começou com um clima muito
pacífico, ordeiro, alegre e criativo, quase que um
"carnaval antiimperialista", recheado de palavras
de ordem irreverentes como "Alca _ ralho com o FMI!"
A
PM acabou com a festa. Atacou primeiro, desnecessariamente,
com cacetetes e bombas, quando a manifestação
acontecia nos limites da calçada e dirigida por uma
comissão organizadora que exercia, até com excesso
de zelo, a função de deixar a avenida desimpedida.
É óbvio que o ataque, surgido do nada, provocou
reações. E esse foi o pretexto para que a PM
convocasse a tropa de choque. A Paulista virou uma praça
de guerra. Os fatos falam por si. Vamos nos limitar, aqui,
a reproduzir relatos das vítimas. Elas dão seus
nomes e sobrenomes, ao contrário dos soldados, que,
contra a lei, tiraram de seus uniformes as tarjas identificadoras.
Elas fizeram boletim de ocorrência, exame de corpo delito
e pretendem iniciar ações para punir os responsáveis.
Enquanto isso, o governador Geraldo Alckmin elogia a ação
da PM, assegurando a impunidade aos que abusam da força.
"Bombas, cassetetes, projéteis de borracha e convencionais"
(Relato
feito pelo Coletivo de Observadores Legais _ cna_sp@hotmail.com
_, um grupo de advogados que acompanhou os manifestantes).
O
ato começou por volta das 12 horas, com uma concentração
em frente ao prédio da Gazeta (Av. Paulista, 900).
No local, os tenentes da PM Sidnei e Ferrara foram informados
do trajeto da manifestação (Citibank, Fiesp
e Banco Central) e receberam, das mãos de uma equipe
de negociadores, uma cópia autenticada de Carta de
Informação encaminhada e protocolada pela Prefeitura
de São Paulo e pela Companhia de Engenharia de Tráfego
(CET), cumprindo exigência do artigo 5º, inciso
XVI, da Constituição Federal de 1988.
Os
manifestantes não pretendiam "fechar a Paulista",
como afirmou a polícia, tanto que atravessaram a avenida
sempre na faixa de pedestres e mantinham-se sempre nas calçadas,
ocupando às vezes, e apenas por alguns instantes, uma
das faixas (a da direita) devido ao grande número de
pessoas. Portanto, o fluxo na Paulista não foi impedido
em momento algum pelos manifestantes e sim pela própria
polícia.
O
primeiro foco de tensão deu-se em frente à Fiesp,
onde a polícia passou a bater nas pernas dos manifestantes
para obrigá-los a voltar para a calçada e encurralá-los
no vão do prédio. Os negociadores tentavam conter
os soldados, que continuavam a espancar gratuitamente as pessoas.
Por um momento, um grupo de pessoas tentou estender uma faixa
em um dos cruzamentos da avenida enquanto o farol estava fechado.
Foi então que um policial, sem mesmo tentar conversar
com os manifestantes desferiu, gratuitamente, um golpe de
cassetete na cabeça de um deles.
A
passeata atravessou a rua e seguiu em direção
ao Banco Central. Quase em frente ao Masp, os soldados da
PM formaram uma barreira (impedindo o fluxo de veículos
na avenida) e partiram, em bloco, na direção
dos manifestantes, passando a atacá-los pelas costas.
O grupo de negociadores tentou, em vão, conter a ação
policial e acabou sofrendo ameaças físicas e
de prisão por parte do próprio tenente Sidnei.
A
PM utilizou com selvageria os cassetetes. Algumas pessoas
foram encurraladas no vão do Masp, onde foram espancadas
violentamente. Uma garota, A.M.O.
24 anos, já caída no chão, levou vários
golpes no rosto; uma outra foi cercada por quatro policiais
e golpeada várias vezes na cabeça. Ambas foram
parar no hospital com ferimentos graves. Ângela quase
perdeu a visão. A outra foi atendida na neurocirurgia
do Hospital das Clinicas, porque um pedaço do capacete
que usava como forma de proteção perfurou sua
cabeça.
A
PM lançou bombas de gás lacrimogêneo e
de efeito moral, que liberam estilhaços na explosão,
diretamente contra os manifestantes, atingindo várias
pessoas nas costas e nas pernas. Pelo menos três foram
atingidas por estilhaços, nas pernas e nas mãos.
Uma corre o risco de perder um dos dedos. A polícia
disparou balas de borracha à queima roupa, desrespeitando
a distância mínima permitida para que o disparo
não cause ferimentos graves. Um dos manifestantes foi
atingido no peito e a bala alojou-se próximo ao coração.
Outro, Rodrigo, um garoto de 15 anos, foi atingido na perna
por um policial com arma de fogo convencional.
Os
primeiros feridos foram encaminhados para o Hospital 9 de
Julho, na região da Paulista. Alguns foram atendidos,
porém em dado momento o hospital recusou-se a receber
mais feridos (inclusive alguns com suspeitas de fraturas).
Enquanto as pessoas pediam por atendimento na porta do hospital,
chegaram duas viaturas policiais. Os policiais sacaram metralhadoras
e escopetas, apontaram para o peito dos feridos e aos berros
mandaram que fossem embora. Chegaram até mesmo a atirar
para o alto.
Após
o primeiro ataque da tropa de choque em frente ao Masp, a
passeata seguiu até o prédio do Banco Central,
onde algumas pessoas ocuparam o hall externo com faixas, batucada
e fantasias. Nesse momento, novamente a via estava livre para
o trânsito de veículos, sendo posteriormente
fechada pela tropa de choque, que voltou a bloquear a avenida.
Os policiais atacaram um grupo de 200 manifestantes que estava
sentado pacificamente em frente ao banco, com chutes e cacetetes.
De longe, alguns policiais lançavam bombas no meio
dos manifestantes. Quando alguns deles tentaram fugir e se
desvencilhar dos golpes, cerca de 20 soldados formaram um
"corredor polonês". Várias pessoas,
dentre as quais garotas e menores, foram espancadas enquanto
tentavam fugir.
As
prisões se deram de maneira igualmente brutal. Muitos
manifestantes, já imobilizados, continuavam a receber
golpes de cassetete nas costas e nas pernas. Durante a condução
dos presos do camburão até a delegacia, os detidos
sofriam os mesmos golpes, além de serem ofendidos,
humilhados e ameaçados verbalmente. No 78º DP,
onde estavam detidas 48 pessoas, entre elas 35 menores e a
maioria mulheres, os policiais obrigaram os presos a ficarem
de joelhos, virados para a parede e aplicavam uma grande quantidade
de golpes, principalmente na cabeça e nas costas.
"Quase
fiquei cega"
(A.
M.O, 24 anos, historiadora e funcionária
do Núcleo de Estudos da Violência da USP)
"Fui
à avenida Paulista com a intenção de
fotografar os eventos. No momento em que começaram
as agressões da polícia, vi que um soldado espancava
uma menina. Outro soldado me viu e me deu uma cacetada no
olho. O ataque dele foi deliberado e intencional. A pancada
abriu o meu supercílio. Com muita dor, eu me abaixei,
e ele ainda me golpeou nas costas e nas pernas. Saí
correndo para o Masp, mas quando cheguei por ali fui de novo
cercada pela tropa de choque e apanhei de novo.
Quando
viram que eu estava sangrando muito, acho que eles ficaram
assustados e permitiram que eu fosse levada ao hospital. Fui
muito mal entendida no 9 de julho. Saí dali e fui para
o Hospital das Clínicas. Ali, constataram que sofri
trauma do globo ocular e tive que fazer uma sutura de quatro
pontos no supercílio, além de ter sofrido hematoma
na pálpebra. Quase fiquei cega."
"Foda-se.
É para você sofrer, filho da puta!"
(João
Mauro B. de Araújo, 19 anos, estudante de Rádio
e TV na Unesp-Bauru)
Cheguei
à avenida Paulista, por volta das 14:00. Perto do Masp,
ouvi alguns estrondos e percebi que a tropa de choque descia
a rua. Um policial veio gritando, com o cacetete em punho,
atrás de mim. Corri, desesperadamente. Entrei no banco
Safra, fui para a escada de incêndio, desci alguns degraus,
quando dois seguranças me detiveram. Na escada, apareceu
o policial que me perseguia. Fui algemado. Reclamei que a
algema estava muito apertada no meu pulso e pedi para afrouxá-la
um pouco. Ele respondeu: "Foda-se. É para você
sofrer, filho da puta!". Ainda na escada, deu-me várias
cacetadas na cabeça. Descobri, posteriormente, o nome
do agressor _ "cabo Vagner".
Já
na viatura, pedi, novamente para afrouxar um pouco as algemas,
não sendo atendido. Em seguida, ele e outros policiais
colocaram mais duas pessoas no carro. Eu gemia de dor e continuava
a pedir que o cabo Vagner afrouxasse as algemas. Ele respondia
com palavrões e ameaças: "Cala a boca seu
merda! Só tá começando..." Ele foi
guiando o carro até a delegacia. No caminho, fazia
zigue-zagues e freava bruscamente, mesmo nos trechos em que
a pista estava livre, para que eu sentisse mais dor. Levou-nos
até o 78º DP. Lá chegando, o cabo ordenou
que saíssemos do carro e aproveitou para dar mais alguns
socos enquanto saíamos. Na delegacia, então
sob responsabilidade do delegado Adriano Rodrigues A. Caleiro
(seu turno ia das 14:00 do dia 20 às 7:00 do dia 21),
colocaram a gente de cara para a parede. Distribuíam
tapões, socos e cacetadas. Eu implorava para desapertar
as algemas. A dor era intensa. Os policiais diziam: "Tá
doendo mocinha? Então vê se isso aqui dói"
e me batiam. Uns ainda chegavam junto de mim e ficavam virando
meu pulso. Também fingiam que iam abri-las, "testando"
outras chaves. Eu chorava de dor.
O
andar térreo da delegacia foi enchendo e daí
mandaram a gente para o andar de cima. Enquanto subíamos
a escada, tomávamos mais cacetadas e eles gritavam:
"Sobe logo, porra!" Lá em cima, obrigaram-nos
a ficar de joelhos e virados para a parede. Os policiais pareciam
se divertir enquanto distribuíam chutes, socos e cacetadas.
Alguém pediu permissão para ligar para o advogado
e levou vários golpes, outro pediu para usar o banheiro
e foi impedido. Enquanto nos batiam, zombavam literalmente
de nossos direitos: "Olha aqui seus direitos humanos!"
(mostrando o cacetete) e "vocês não são
gente, são lixo. São o lixo da sociedade!"
Os
nossos joelhos também doíam, por ficarmos muito
tempo na mesma posição: não podíamos
sentar de maneira alguma. Levaram-me, com mais algumas pessoas
(Danilo Chagas Nogueira, Guilherme Gitahx de Figueiredo, Gustavo
Esteves Lopes, Luiz Henrique de Oliveira e Vinicius Santana),
para uma outra sala. Lá fizeram questionários
e, como já havia advogados e comissões na delegacia,
pararam de nos espancar. Empurraram-me para outra sala, junto
aos demais, para fazerem nossas fichas. Ninguém ali
se conhecia. A maioria foi capturada separadamente. Alguns
nem sabiam o motivo da detenção, estando na
Paulista por mera casualidade, como ocorreu com um jovem mineiro,
João Carlos, um dos seis indiciados.
Depois
de nos ficharem, fomos encaminhados ao setor de carceragem,
para aguardar o processo. Ali, permaneceram dez pessoas dentre
os detidos: quatro menores e seis maiores de dezoito anos
_ os mesmos que, segundo as autoridades policiais, seriam
enquadrados por formação de quadrilha e outros
delitos. Depois de duas horas sofrendo as brutalidades praticadas
contra nós, conseguimos, finalmente, fazer os primeiros
contatos com advogados. Eles chegaram ao seguinte acordo:
os dez últimos detidos seriam soltos, sendo que os
seis "maiores" mediante fiança, no valor
de quinhentos reais para cada, totalizando a quantia de três
mil reais.
Depois
de fícarmos lá a noite inteira, e já
pela manhã (em torno das 6:00 hs), foram tiradas fotos
dos maiores (inclusive a minha), segurando placas identificadoras,
não obstante a contestação dos advogados
presentes, para os quais essa atitude era flagrantemente inconstitucional.
Após o pagamento da fiança, em dinheiro (não
seríam aceitos cheques), coletado, a maior parte (dois
mil reais), entre as entidades ali representadas, e não
sendo entregue qualquer documento comprobatório aos
indiciados, no tocante à fiança, fomos conduzidos
para o IML em viaturas do 78º DP. Fizemos o exame de
corpo de delito e finalmente fomos liberados.
"Fui
levado até a escada, e espancado pela terceira vez"
(Guilherme
Gitahy de Figueiredo, mestrando em Ciência Política
da Unicamp, bolsista do Cebrap)
Eu
estava na Paulista com o objetivo de fazer uma reportagem
sobre a manifestação contra a Alca. Tirei fotos
e gravei entrevistas com várias pessoas, entre elas
um tenente da polícia, transeuntes, motoristas, e manifestantes.
A maioria era de adolescentes de classe média, atraídos
pela proposta de manifestação pacífica,
lúdica e bem humorada. Motoristas achavam "engraçado"
e "simpático" aqueles jovens "fantasiados"
que recitavam poesias, faziam ruídos estranhos e apresentavam
performances teatrais, e pedestres se aproximavam para saber
o que era.
Quando
a repressão começou, a maioria não respondeu
à violência, utilizando formas de resistência
pacífica;outros se revoltaram, atirando pedras. Uma
equipe de manifestantes tinha a função de negociar
com a polícia, a despeito das ameaças que sofriam,
e conseguiram uma trégua para conversar com um oficial.
Enquanto prosseguiam as negociações, entrei
no Bob's, para comer e beber algo. Ao sair, o confronto havia
recomeçado. Caminhei rápido para a esquina e
vi que a manifestação havia se posicionado diante
do Banco Central. A orientação que estavam recebendo
era para ficarem sentados e evitar a violência, enquanto
indivíduos do outro lado da Paulista lançavam
pedras. No meio, a linha de frente da PM parecia indecisa
sobre contra qual lado investir. Atacaram os sentados, que
não tinham para onde correr, e que ficaram também
expostos às pedras jogadas contra os policiais.
Eu
estava tirando fotos dos garotos tentando escapar por um lago
artificial, quando tive que me afastar da Paulista, pois balas
de borracha zuniam ao meu redor. Parei cerca de 100 metros
adiante. A penúltima pessoa que entrevistei foi um
estudante do colégio Objetivo com um ferimento no supercílio,
que acabara de escapar do Banco Central, e disse que precisava
de socorro médico, pois estava com um estilhaço
de bomba de gás em seu ferimento. Foi quando resolvi
ajudá-lo. Chegando à Paulista, não vimos
onde estava a manifestação e não vimos
ambulância nenhuma. Começamos a caminhar rumo
ao Objetivo, pois lá poderia haver algum ambulatório.
Foi quando avistamos um carro que parecia uma ambulância.
Chegamos
diante de dois policiais que estavam ao lado do carro, e mostrei
o menino: ele está ferido, está precisando de
ajuda. Diante da recusa dos policiais em socorrer o garoto,
liguei meu gravador diante do oficial: você não
acha que deveriam haver ambulâncias aqui? A resposta
foram golpes de cacetete. Caído no chão, fui
espancado por ele com a ajuda de outro PM, e algemado. Me
arrastaram até o camburão, onde me espancaram
mais uma vez. Na 78 DP, fui virado para a parede, enquanto
o PM dizia que eu o havia atacado com palavrões. Ainda
agindo como cidadão, exclamei que era mentira. Foi
quando levaram o meu gravador e a minha máquina fotográfica.
Fui levado até a escada, e espancado pela terceira
vez. Outros presos disseram que "todos foram espancados
ali".
No
segundo andar, me colocaram junto aos já detidos. Tínhamos
que ficar de joelhos e se alguém se virasse um pouco
ou tentasse dizer alguma coisa, era golpeado. Posteriormente
fui levado para outra sala. Por horas, fomos obrigados a ficar
de pé. Apenas com a mediação de vereadores
e deputados que chegaram mais tarde é que minha família
foi avisada. Finalmente soubemos que estávamos presos
em "flagrante". Para atestar o "caráter
violento" da manifestação, e a eficácia
em "punir os responsáveis", os maiores de
idade do grupo estavam sendo acusados de desacato à
autoridade, resistência à prisão, depredação
de prédios públicos e privados, formação
de quadrilha e corrupção de menores. Apareceram
falsos testemunhos, enquanto desapareceram o gravador e a
máquina fotográfica.
Após
uma demorada negociação de deputados com o secretário
de segurança pública de SP, o delegado desistiu
de nos acusar por corrupção de menores e formação
de quadrilha, crimes inafiançáveis, que nos
deixariam presos por mais tempo. Fomos soltos com uma fiança
de 500 reais cada um, e agora resta a dúvida: o Estado
vai levar adiante um processo forjado contra nós? A
versão divulgada pela polícia, é que
se tratava de uma "manifestação punk isolada
e violenta".
"O
PM apontou a arma e mandou que deixássemos o hospital"
(O
seguinte depoimento foi feito por Lili, publicado no site
www.midiaindependente.org. Um relato bastante semelhante,
quase idêntico, foi feito a Caros Amigos pela estudante
Isemara da Silva Calixto, 17 anos, que sofreu deslocamento
do braço e traumatismo no pescoço).
Depois
de tomar muitas borrachadas da polícia, eu e mais alguns
manifestantes feridos fomos ao Hospital 9 de Julho e pedimos
para ser atendidos. Um funcionário do hospital, alegando
que já estava cheio, disse que não poderíamos
ser atendidos naquele lugar. Enquanto discutíamos o
que fazer e aonde ir, uma viatura da polícia parou
em frente ao hospital. Soldados, com armas a mão, perguntaram
o que estávamos fazendo. Explicamos que alguns de nós
estavam feridos. Nisso a polícia apontou suas armas
para gente e mandou que saíssemos de lá, se
não apanharíamos mais.
Pedimos, mais uma vez, que o hospital nos atendesse, pois
estávamos realmente feridos. O hospital negou mais
uma vez. Deixamos o local. Mas, enquanto caminhávamos,
os policiais apontaram suas escopetas e mandaram que saíssemos
logo. Agilizamos os passos, mas ainda ouvimos a polícia,
atrás de nós, engatilhar as armas. Eles atiraram
para o alto, para nos intimidar ainda mais... Nós,
feridos e amigos, fomos então obrigados a sair correndo
independendo da nossa situação".
"Levei
muitas cacetadas e chutes na perna esquerda"
(André
Cristo, 25 anos; o relato foi também enviado à
Ouvidoria da Polícia Militar de São Paulo)
A
maioria dos manifestantes era de jovens estudantes. Alguns
eram punks, a maioria não. Diversos grupos marcaram
presença, um deles se encarregou de uma alegre batucada
que quase não parou de tocar. Depois de mais de uma
hora de concentração (iniciada ao meio dia em
frente à Fundação Cásper Líbero),
começamos a andar em direção ao prédio
do Banco Central, nosso objetivo final. Já havíamos
conversado com os policiais e mostrado o aviso da manifestação
protocolado na prefeitura.
O
primeiro incidente ocorreu em frente ao prédio da Fiesp,
com um manifestante atingido na cabeça, por trás.
Desse momento em diante o clima ficou tenso. Na volta para
o outro lado da rua, eu fiquei para trás, na tentativa
de não me envolver com a confusão. Quando me
aproximava do Masp, fui surpreendido por uma fileira de policiais,
que se aproximava por trás. De repente eles começaram
a correr e o pânico tomou conta de todos. Bombas foram
lançadas, a polícia começou a bater em
muitos manifestantes. Uma manifestante foi encurralada no
vão do edifício do museu por quatro policiais
e foi agredida no rosto com cacetadas. Seguiram-se muitas
prisões.
Dávamos a volta ao quarteirão e éramos
constrangidos, assustados, agredidos. Quando, enfim, pude
voltar à Paulista segui o som da batucada e encontrei
ainda muitos manifestantes na entrada do Banco Central. Parecia
que as coisas tinham acalmado. Um policial de patente mais
alta negociava com os manifestantes um pouco distante de onde
eu me encontrava. Resolvi ficar na entrada do Banco Central
achando que estaria mais seguro. Os manifestantes resolveram
sentar na entrada do Banco e permanecer lá.
Soube,
posteriormente, que o policial que negociava com os manifestantes
foi atingido por uma pedra na cabeça. Não concordo
de maneira alguma com esse tipo de ação por
parte dos manifestantes. Mas eu nem pude entender, no momento,
o que se passava. Houve uma correria, muitos manifestantes
vieram para a porta do Banco. Eu permanecia sentado e não
via o que se passava na rua.
De
repente uma fileira de policiais subiu as escadas do Banco
Central encurralando-nos entre as portas e dois espelhos d'água
laterais. Ficamos espremidos e, à medida que os policias
desfechavam golpes com seus cacetetes e davam chutes nos manifestantes
mais à frente, ficávamos mais espremidos. Uma
amiga começou a sentir o braço ser esmagado,
eu não conseguia mover os pés. Enquanto isso
os policiais prosseguiam na tortura, agora apontando lançadores
de balas de borracha diretamente para os nossos rostos. Puxavam
os manifestantes mais a frente pelos braços enquanto
batiam com os porretes.
Passado
o momento de terror, abriu-se um corredor entre os policiais
e um dos espelhos d'água. Assim que consegui me erguer,
ajudei a minha amiga a se levantar e, atendendo às
ordens dos policiais, que gritavam: "saindo, saindo,
todo mundo prá fora!",caminhei para a única
saída possível. Foi então que eu fui
duramente agredido. Tentava proteger uma amiga machucada,
carregava com uma das mãos duas mochilas, estava com
medo e tentava me afastar da confusão. Levei muitas
cacetadas fortes, muitos chutes na perna esquerda. Fiquei
com a palma da mão direita roxa, o braço direito
escoriado. Ao menos três vergalhões nas costas,
um bem embaixo próximo a base da coluna vertebral.
A minha amiga foi operada e hoje carrega dentro do cotovelo
um pino de dez centímetros.
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