Em 2001, no Piauí, levas de pessoas foram aliciadas
para as derrubadas de floresta, feitura e conservação
de pasto em fazendas do sul do Pará para empreendimentos
em áreas de cana-de-açúcar, em São
Paulo e Minas Gerais e para serviços domésticos
em Brasília. Uma parcela destas pessoas _ camponeses
sem ou com pouca terra, a maioria analfabeta e sem qualificação
profissional _ é retida em dezenas de fazendas entre
os rios Araguaia e Xingu, em nome de dívidas contraídas
na viagem, na alimentação e na aquisição
dos instrumentos de trabalho. Muitos dos escravizados, ao
tentarem fugir, são assassinados.
EMIGRAÇÃO
NO PIAUÍ:
O ALICIAMENTO PARA A ESCRAVIDÃO
Ricardo
Rezende Figueira1
O
fenômeno da migração se dá, entre
outros motivos, por guerras públicas ou privadas, por
uma seca prolongada ou outro cataclismo, por questões
religiosas, étnicas ou familiares, por doenças,
por estudo, por necessidade econômica e também
pela conjugação de mais de um motivo.2 Grande
parte das migrações contemporâneas no
Brasil, temporárias ou definitivas, se efetua por pessoas
que buscam um trabalho. São "pessoas deslocadas"
de sua terra, de sua gente, atrás de pequenas esperanças:
comprar uma cama de casal, uma bicicleta, uma roupa nova para
o festejo da padroeira, a comida ou o remédio. Saem
do lugar onde têm uma identidade e entram num mundo
desconhecido e inseguro.3 Entre os estados que têm sofrido
com a emigração está o Piauí,
de onde levas de pessoas, em 2001, por exemplo, foram aliciadas
para as derrubadas de floresta, feitura e conservação
de pasto em fazendas do sul do Pará, para empreendimentos
em áreas de cana-de-açúcar no Maranhão,
em São Paulo e em Minas Gerais e para serviços
domésticos em Brasília.4 Através de promessas
vantajosas, muitos empreendem a viagem cujo desdobramento
posterior não é o esperado. Uma parcela destes
_ camponeses sem terra, com pouca terra, a maioria analfabeta
e sem qualificação profissional _ é retida
em dezenas de fazendas entre os rios Araguaia e o Xingu, em
nome de dívidas contraídas na viagem, na alimentação
e na aquisição dos instrumentos de trabalho.
Alguns saem através da fuga, correndo riscos de serem
capturados e mortos, outros são liberados depois de
alguns meses de trabalho duro e obrigatório, quando
a empreita terminou e iniciou o período da chuva, ou
são libertos pela ação de fiscalização
do governo, depois de alguma denúncia. Esta modalidade
de trabalho obrigatório nas fazendas, sob o pretexto
de uma dívida, é considerada escravidão
contemporânea por dívida. O Código Penal
Brasileiro, como prevê o art. 149, considera crime a
sujeição de uma pessoa a outra.5 Conforme Santana
(1993: 62) "o crime existe, mesmo que seja concedida
ao sujeito passivo alguma liberdade de movimento, mesmo que
não lhe sejam infligidos maus tratos ou sofrimentos
ou ainda que o crime seja cometido com o consentimento da
vitima porque a liberdade humana é inalienável".
Nos
últimos anos, tem havido uma parceria com relativo
sucesso entre a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e
o Grupo Especial de Fiscalização Móvel
do Ministério do Trabalho (GM/MT), possibilitando a
libertação de trabalhadores em muitos municípios.
Constata-se que, em termos nacionais, entre os libertos pela
ação do GM/MT e da Polícia Federal (PF),
15 por cento são piauienses. E o Nordeste concentra
a maioria das vítimas do trabalho escravo, 60 por cento.
Ora, se 16 por cento são piauienses e 60 por cento
nordestinos, isso não significa que a escravidão
se dê majoritariamente no Nordeste. Pelo contrário,
a escravidão se dá, normalmente, fora do município
ou do estado da vítima.6 Ora, onde há abundância
de mão-de-obra ociosa, normalmente não é
necessária a escravidão. Voluntariamente as
pessoas se submetem ao trabalho em quaisquer condições
de exploração. É possível conseguir
alguns que se submetam apenas a troco de alimentação
ou por um quinto do salário mínimo.7 Onde há
escassez de mão-de-obra, aí sim, é mais
provável o trabalho escravo executado por pessoas vindas
de outras regiões, por isso com menos capacidade de
resistência: não é conhecido pela população
local, está longe de seus familiares e amigos, não
possui recursos para a locomoção e pode ser
mais facilmente ameaçado. Certamente por essa razão
depois que a Comissão Parlamentar de Inquérito
instaurada pela Assembléia Legislativa do Estado do
Ceará foi concluída,8 Santana, um de seus membros,
observou que não se constatava "grande incidência
de trabalho escravo no Nordeste" mas esta região,
"notadamente o Ceará", caracterizava-se "como
o exportador de mão-de-obra barata ou até mesma
escrava para os outros Estados (1993: 21)."
Em
2000, 96 lavradores, de um grupo de 176 homens, a maioria
de Barras, PI, foram libertos da fazenda Brasil Verde, no
município de Sapucaia, PA, pelas autoridades. Desde
1988 houve fugas de trabalhadores desta fazenda com denúncias
de escravidão por dívida. No mesmo período,
o imóvel foi submetido a sucessivas fiscalizações
e as autoridades federais constataram a veracidade da maioria
das denúncias.9 Ora, em maio de 2001, um dos jovens
de Barras, já liberto da Brasil Verde no ano anterior,
novamente estava prestes a trabalhar no Pará. Como
se explica que ele e outras pessoas, já resgatadas
uma vez, se aventuram a novos riscos, na mesma área?
O jovem explicou que não tinha como ficar, porque não
havia emprego disponível. Se tivesse sorte, um trabalhador
braçal conseguia ali a diária de três
a quatro reais.10 De fato teria "sorte", porque
mesmo essa diária não era fácil conseguir.
Admitia que, se recebesse trinta reais por mês, não
sairia dali. Por isso, aceitava ir com outro agenciador, esperando
ter tratamento melhor.
Conforme
denúncias da CPT, muitos dos escravizados, ao tentarem
fugir, foram assassinados.11 Há uma multidão
de mulheres, homens e crianças, aguardando uma notícia
de um parente que partiu. São pessoas abatidas pela
dúvida: estarão ainda vivos seus familiares?
Nem todos os que desapareceram morreram ou foram assassinados.
Alguns não mandam notícias porque saíram
de casa com desavenças familiares, outros partiram
contra a vontade dos pais ou da esposa, esperando ganhar dinheiro
e não obtiveram sucesso. A vergonha do fracasso os
silencia. Vejamos alguns casos denunciados recentemente em
Barras, PI.
Mortes
Antônia,
43 anos, três filhos, teve o marido, Francisco, assassinado
numa fazenda no Pará, em janeiro de 1998. Avisada por
B., que trabalhava na mesma fazenda, ela viajou para a região.
Levou consigo uma cruz para fixar no local do homicídio,
mas o gerente da fazenda a impediu. A cruz podia chamar a
atenção da PF que incomodaria a fazenda com
perguntas. Recebeu a Carteira Profissional do esposo sem duas
páginas, aquela que o identificava com a foto e a outra,
onde constava a sua contratação pela fazenda.
Pela falta de documentos, ela não consegue se aposentar.
B. fugiu da fazenda porque além da morte de Francisco,
ouviu conversas do gerente com o funcionário da guarita
da porteira de entrada, combinando assassinatos de peões
que porventura saíssem com saldo e porque viu ossada
humana próxima de uma água no interior da fazenda.12
Há outras informações que confirmam a
existência de ossada nesse imóvel. RPS, 22 anos,
declarou que foi um dos 43 trabalhadores aliciados em 27.04.2001,
na cidade de Barras, PI, para trabalhar na mesma fazenda.
Retornou em 27.06.2001, depois de seu grupo fazer três
"greves". Ele e outro aliciado ainda afirmaram que
quatro trabalhadores, também de Barras, quando foram
colher castanha em uma área ao lado do retiro mais
próximo da sede, viram ossadas humanas próximas
a um pé de castanha. Essa foi uma das razões
que os levou a brigarem para sair da fazenda.13
eu
me taco daqui, pego um carro e vou, chego lá, não
acerto, ando (...) com a cara para cima pela cidade".
A CPT colocou avisos nas emissoras de rádio de Xinguara
procurando-o, em vão. No ano seguinte, disseram-lhe
que o filho estava em Araguaina, TO. A CPT, acionada, colocou
avisos nas emissoras de rádio de Araguaina, novamente
em vão. E Sinhá teme, porque muitos, que empreendem
esse deslocamento ao Pará, morrem. Além do filho,
também um sobrinho foi há anos e a família
não tem notícias.
A
campanha contra a escravidão
Preocupados
com o número de pessoas aliciadas no Estado, a FETAG,
a CUT e a CPT do Piauí resolveram promover, entre 20
e 21 de julho de 2001, em Teresina, o Primeiro Seminário
Estadual de Combate ao Trabalho Escravo. A campanha contra
a escravidão já havia sido desencadeada antes,
em outros lugares, através de Seminários promovidos
pela CPT e por outras organizações preocupadas
com os Direitos Humanos, com o apoio principalmente do GM/MT
e de alguns Parlamentares. Nos Estados do Pará, Tocantins
e Mato Grosso do Norte, na área conhecida como Araguaia-Tocatins,
diversos eventos haviam sido promovidos com a mesma preocupação.
O Seminário de Teresina obteve grande repercussão
nos meios de comunicação do estado, surpreendendo
até mesmo os promotores do evento. Entre os participantes
podia-se contar com sindicalistas de diversos municípios
do Estado e agentes de pastoral de cinco das seis dioceses
do Piauí. Terminando no sábado o Seminário,
parte dos participantes se deslocou no domingo para a cidade
de Barras, ao norte do Estado, onde promoveu um encontro também
de combate ao trabalho escravo na sede do STR. Umas 60 vítimas
e seus parentes compareceram. De Esperantina, cidade vizinha,
estiveram, além do presidente do STR e do padre, uns
15 lavradores. A reunião começou com a projeção
de um vídeo em que lavradores de Barras eram libertados
de uma fazenda do Sul do Pará. Muitos dos presentes
não só reconheciam as pessoas filmadas, mas
também se reconheciam na tela.
Reclamam
por desaparecimento
Na
mesma reunião, diversos parentes de pessoas desaparecidas
se levantaram e, silenciosamente, abriram suas carteiras,
bolsas, ou sacos de plástico e mostraram fotos. Uma
mulher, com a voz embargada e os olhos marejados de lágrimas,
falou: "Quero notícia de meu filho. Prefiro saber
que está morto e, assim, visitar seu túmulo,
do que viver nessa incerteza!" A câmara da TV Globo
filmou este depoimento que foi ao ar em cadeia nacional no
dia seguinte. Os membros da CPT e da FETAG/PI coletaram alguns
depoimentos. Sete mães, dois pais, um sogro, uma esposa,
duas irmãs, uma prima, uma tia de Barras, Esperantina
e Batalha prestaram informações sobre seus parentes
desaparecidos a frei Xavier Plassat, membro da CPT do Tocantins.
Ele recolheu o nome de treze homens e duas mulheres desaparecidos
no Pará, Maranhão, São Paulo e Distrito
Federal entre 1979 e 1998. Entre estes, pode-se destacar uma
mulher desaparecida em Brasília, um homem em São
Paulo, outro no Maranhão. Os demais, onze homens e
uma mulher, no Pará. Possivelmente nem todos foram
para o trabalho escravo. Dos que talvez não tenham
ido para o trabalho escravo há dois que foram para
garimpos, uma mulher para Brasília e um homem para
São Luís, MA.18
Se
há tantos desaparecidos, não se pode esquecer,
contudo, os que acabam sendo reencontrados.
Desaparecidos
são localizados
Cleuza
embarcou de Teresina, PI, para Conceição do
Araguaia, PA, em 1987. Soube que o filho, Francisco, que não
via há tempo, tinha sido assassinado. Acompanhada pela
CPT, esteve na funerária, nos hospitais, mas não
obteve informações. Francisco apareceu dois
anos depois em Teresina, mas ficou em casa apenas quatro dias,
explicando que o gato o esperava e que teria problema se não
voltasse. Desde então não deu mais notícias.
Chegaram informes falsos para Cleuza. Alguém havia
visto seu filho em algum lugar e ela empreendia viagens procurando-o
até confirmar que a notícia não procedia.
Em 2000, Cleuza foi visitada por um dos agentes da CPT que
a havia acolhido em 1987 no Pará. Agachada, colhendo
verduras na horta, logo o reconheceu, apesar de terem se passado
14 anos do primeiro e único encontro que haviam tido.
Abraçou-o, enxugando os olhos, e o convidou para que
entrassem na casa. Na parede da sala tinha alguns retratos
e, entre eles, havia a foto do filho. A mulher contou ter
sonhado com ele aquela semana e, agora, a chegada inesperada
da visita a emocionava. Quase dois meses depois, em 20 de
julho de 2001, estando novamente em Teresina, participando
do Seminário de Combate ao Trabalho Escravo, o mesmo
agente de pastoral retornou à sua casa e ela lhe informou,
que o filho estava vivo e morava em Santana do Araguaia, PA.
De fato Francisco não se comunicou antes por vergonha,
pois saiu de casa, contra o desejo da família e não
obteve sucesso. Estava mais pobre do que antes. Retornar assim
era uma forma de declarar seu fracasso.19
Outra
história de mãe que procurava o filho é
aquela de Maria da Conceição, 64 anos. Seu filho,
Paulo, analfabeto, 34 anos, foi trabalhar no estado do Pará
havia três anos. Finalmente telefonou-lhe do escritório
de uma fazenda no Pará, em maio de 2001, solicitando
que lhe enviasse sem falta, até 5 de junho, mil reais,
através do endereço da própria fazenda.
E a ligação caiu. Ela não conseguiu saber
a razão do pedido. Ora, sendo pobre e viúva,
não tendo como levantar esse dinheiro, ficou desesperada
e enviou uma carta para a emissora de rádio local pedindo
a ajuda econômica. O repórter Roberto Gonçalves
leu a carta. Maria da Conceição temia que o
filho estivesse devendo para a fazenda ou para o gato.20
Retornando
ao Pará, Ana de Sousa Pinto, da CPT de Xinguara, que
estava no Seminário de Teresina e no encontro realizado
em Barras, localizou um dos desaparecidos desta última
cidade. Em Sapucaia, PA, soube que o homem estava vivo, indo
de fazenda em fazenda. Segundo seus conhecidos na cidade:
"Ele não liga mais para a mulher. Fica farreando,
comportando-se como se fosse rapaz solteiro".
Novos
aliciamentos
Em
maio de 2001, hospedaram-se numa pensão, em Barras,
PI, dois empreiteiros da fazenda onde foi assassinado Francisco
Clemente da Silva. Eles, que já haviam aliciado na
semana anterior um grupo de trabalhadores e os levado ao Pará,
retornaram para aliciar outros. Sendo informado, Paulo César
Lima, do GM/MT, se deslocou até Barras onde se reuniu
com algumas vítimas e parentes de vítimas. Dois
dias depois, interditou o ônibus que estava de partida
para o Sul do Pará, com 28 peões já embebedados
pelos gatos. Como tudo era irregular exigiu que o ônibus
se dirigisse para a delegacia com as vítimas e com
os gatos. Ali foram colhidos os depoimentos de todos os envolvidos
e os trabalhadores foram devolvidos às suas famílias.
Em
26 de julho de 2001, cinco dias depois do Seminário
de Combate ao Trabalho Escravo realizado em Teresina, PI,
um diretor do STR de Uruçui, PI, telefonou para a FETAG/PI
avisando que dois gatos aliciavam cinqüenta homens naquele
município.21 Os trabalhadores começaram o ciclo
do endividamento através de um pequeno adiantamento
em dinheiro, o abono. Um dos diretores da FETAG/PI, que atendeu
ao telefonema, procurou sem sucesso a PF de Teresina. Diante
disso, a PM local foi acionada e os gatos, como disseram que
não podiam assinar as Carteiras Profissionais dos trabalhadores,
foram impedidos de levar os trabalhadores. Soube-se, posteriormente,
seriam levados para terras do deputado estadual e secretário
da agricultura do Piauí, Francisco Nonato de Araújo
Filho, em São Felix do Xingu, PA. Não obtendo
sucesso neste local, aliciaram em torno de 60 homens em Xinguara,
PA, e os levaram para a abertura de uma fazenda do secretário
de estado, em São Felix do Xingu. No primeiro momento
o secretário admitiu ser proprietário do imóvel
e deu indicativos que arcaria com as despesas trabalhistas
dos funcionários e com a hospedagem temporária
deles em hotéis de São Félix. Mais tarde
tentou se omitir das responsabilidades, negando, inclusive,
ser proprietário do imóvel.22
O
que fazer
Se
não há oferta de trabalho, não há
como manter uma parte dos trabalhadores no local de origem,
sendo inevitável a emigração temporária
ou permanente destes. É inútil pensar que, através
de uma campanha de informação, as pessoas seriam
convencidas a não empreenderem a viagem. Mesmo sabendo
dos riscos, elas continuarão indo. Há uma inevitabilidade
que parece insanável.23 Enquanto persiste o problema
do desemprego, é necessário criar estruturas
de fiscalização que impeçam não
a emigração, mas o trabalho escravo e a superexploração
da mão-de-obra. Para isto, ter-se-á que exigir
dos agenciadores, no local mesmo do aliciamento, a lista completa
dos trabalhadores, a assinatura da Carteira Profissional,
o compromisso de trazer o contratado de volta tão logo
este o deseje, o pagamento em espécie (e não
em produtos), o nome e o endereço do imóvel
onde será executado o trabalho e o nome do proprietário.
Uma fiscalização eficiente, estando atentos,
além do Estado, os STRs, as Igrejas e a sociedade civil
organizada, pode extirpar o tráfico de gente do Piauí
para os Estados vizinhos. Contudo, o problema pode apenas
estar sendo deslocado para o Maranhão, o Ceará,
a Bahia, o Tocantins e para o próprio estado do Pará,
onde os aliciadores poderão concentrar suas atividades
ilegais sem constrangimento e, os piauienses, premidos pela
necessidade, irão por própria conta para esses
locais e se oferecerão ao agenciamento. Para que isso
não aconteça, a campanha empreendida já
nos estados do Mato Grosso, Pará, Tocantins e Piauí,
deve ser intensificada e estendida aos demais Estados do Nordeste
e a áreas com maior concentração de pobreza
e de desemprego.
Uma
das medidas de maior relevância, com conseqüências
mais permanentes, seria, contudo, a aprovação
de uma das "emendas constitucionais" já propostas
por parlamentares, formulando uma nova redação
ao art. 243 da Constituição, de tal forma que
o perdimento da propriedade previsto para áreas de
culturas ilegais de plantas psicotrópicas, seria ampliado
para os imóveis onde se efetuar o crime previsto no
art. 149 do CPB e, neste caso, o imóvel seria utilizado
para fins de reforma agrária.24 Essa seria uma medida
que, aplicada, produziria um eficiente efeito inibidor contra
a escravidão.
1
Ricardo Rezende Figueira - Presidente do Conselho Deliberativo
da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e doutorando
no Programa de Pós-graduação em Sociologia
e Antropologia do IFCS/UFRJ.
2
O Sudão tem sofrido seca e fome e tem sido sacudido
por uma guerra civil desde a década de 80 _ de um lado
o governo, que deseja impor a lei islâmica ao país
e, do outro, rebeldes do sul _ cristãos e animistas.
"Estima-se que a repressão à rebelião
do sul e a fome, agravada pela seca, tenham causado a morte
de 1,5 milhão de pessoas e provocado o deslocamento
forçado de 5 milhões desde o início da
guerra". E, conforme o jornalista Farah, "A cada
ano, milhares de sudaneses _ em sua maioria mulheres e crianças
_ do sul do país são capturados, levados para
o norte e forçados a trabalhar" FSP. 4.9.2001:
A11).
3
Sayad, com prefácio de P. Bourdieu (1998), trata do
problema do migrante de forma arguta na sua provisoriedade,
nas suas dificuldade de partir e de chegar.
4
Sabe-se de milhares de brasileiros que emigram para os América
do Norte, para a Europa e mesmo para outros países
da América do Sul. Alfredo Wagner, em correspondência
(02.09.2001) ao autor, afirma que, entre 1998 e 1999, teve
acesso a estimativas de que estavam no Suriname, "em
torno de 20.000 brasileiros, mais da metade composta por oriundos
do Maranhão, secundados por paraenses e depois piauienses".
Havia muitos garimpeiros brasileiros mortos e diversos corpos
estavam por meses insepultos e congelados no necrotério
de Paramaribo, aguardando o pagamento das taxas de sepultamento.
Tais corpos, disseram-lhe, seriam entregues para a escola
de medicina local. "No livro de óbitos da Embaixada
(brasileira) havia registro de 20 mortos, na agencia de voluntários
este número, não obstante impreciso, ultrapassava
80 casos e ainda havia as situações de homicídio
que me foram relatadas avulsamente em entrevistas". E
explicou, "o endividamento nos garimpos (do Suriname)
enquadra-se nas formas de `imobilização pela
dívida'".
5
Art. 149 do CBP, inserido no Capítulo VI, "Dos
Crimes contra a Liberdade Individual", prevê: "Reduzir
alguém a condição análoga à
de escravo. Pena _ reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito)
anos".
6
Esta escravidão, que é ilegal, coincide num
aspecto com aquela que é legal: não se escraviza
o de casa, mas o de fora. Como afirma Meillassoux (1995: 22
e 54) "o escravo é antes de tudo (...), o estranho
por excelência, se não o estranho absoluto".
Ou: "Através da captura e do tráfico, o
cativo era introduzido em um processo de estraneidade, que
o preparava para o seu estado de estranho absoluto na sociedade
à qual seria entregue".
7
O salário mínimo brasileiro em agosto de 2001
correspondia a US$ 72.8, por isso 1/5 do salário correspondia
a US$ 14.5.
8
A CPI foi instaurada em 01.10.1992.
9
A fazenda sofreu diversas multas trabalhistas, mas não
houve sanções penais.
10
Em 16.08.2001, corresponderia entre US 1,2 $ ou US 1,6 $.
11
Conforme dados do arquivo da CPT do Sul do Pará, a
partir de 1980, mais de 100 pessoas foram mortas ao tentarem
escapar das fazendas daquela região. Como as fazendas
são enormes e servem de cemitérios clandestinos,
como veremos adiante, teme-se que esse número de assassinatos
conhecidos seja ainda tímido frente à verdade.
12
Depoimento colhido em 23.05.2001, em Barras.
13
Depoimento colhido em 22.07.2001, em Barras.
14
"Gato" é uma denominação dada
pelos trabalhadores ao empreiteiro.
15
Um dos mecanismos utilizados para atrair os trabalhadores
é a bebida. É útil na fase do aliciamento
e será útil na última etapa da viagem,
quando os trabalhadores chegam a sede do município
onde vão trabalhar. Ali, antes de sair da cidade para
a fazenda, em geral à noite, o gato torna a oferecer
bebida alcoólica ao grupo. Bêbados, à
noite, perdem o senso de direção e são
levados para uma fazenda que não conhecem. Assim não
terão idéia da distância e do tempo empreendido
no deslocamento. O que dificultará uma fuga posterior.
16
Depoimento colhido em 23.05.2001, em Barras.
17
Na época, Sinhá Brás não possuía
terra, morava em área do fazendeiro, pagando uma renda.
Sua casa, em 2000, era coberta de palha e a criação
se restringia a uma porca e cinco galinhas soltas no terreiro.
Teve duas cabeças de gado que vendeu para adquirir
15 hectares de terra. As chuvas destruíram o feijão,
o milho produziu pouco e a família estava sem mandioca.
18
Desaparecidos no Pará: José Lopes de Sousa (1986);
Raimundo Nonato da Silva (1988); Francisco das Chagas Carvalho
Linhares (1985); Raimundo Pereira da Silva (1979); Francisco
Pereira da Silva (1983); João Carvalho Rocha (1989);
Jorge Geovan Alencar Correia (1983); Onofre Gomes de Paula
(1998); Esmeraldina Maria da Conceição (1988);
Benildo Filomeno da Silva (1984); Luis Sousa Nascimento (1998)
e Francisco da Silva (1994). Desaparecidos em outros estados:
Maria José de Araújo em Brasília, DF;
José Aroldo Miranda Souza em São Paulo (1980)
Reginaldo Carvalho em São Luís, MA (1992).
19
Depoimento em 23.05.2001. Barras, PI.
20
Depoimento colhido em 22.05.2001, em Barras.
21
Já haviam levado outras cinqüenta pessoas de Benedito
Leite, para uma fazenda em Santana do Araguaia, PA. E, de
Uruçui, um mês antes, o STR havia obrigado um
gato e um fazendeiro do Pará a cumprirem suas obrigações
para com os trabalhadores do município.
22
O Secretário de Agricultura, depois de dias das pressões
sofridas por parte dos funcionários do Governo, dos
membros da CPT e das próprias vítimas, pagou
"o equivalente a 1/5 do valor" dos dias trabalhados,
contestando os cálculos do GM/MT. E não pagou
os mais de 15 dias de hospedagem dos aliciados em pensões
na cidade, enquanto aguardavam um desfecho do problema (Nota
para a Imprensa. CPT/Tucumã/PA, 6.9.2001).
23
Lembra, essa situação, o drama dos trabalhadores
alemães diante do capitalismo em meados do século
XIX para os quais romper a "aparência de inevitabilidade",
repetindo Moore Jr. (1987: 217), "é crucial para
se superar a autoridade moral da repressão".
24
O Senador Ademir Andrade (PSB/PA), a Deputada Federal Socorro
Gomes (PCdoB/PA) e o Deputado Marçal Filho (PMDB/MS)
apresentaram emendas constitucionais versando sobre este perdimento
da terra. Há diversas propostas de Projetos de Lei
apresentados por parlamentares no Congresso sobre o trabalho
escravo. Uma das propostas aprovada de Projeto de Lei, apresentada
pelos Deputados Paulo Rocha (PT/PA), Nilmário Miranda
(PT/MG) e outros, definindo "como crimes condutas que
favorecem ou configuram trabalho forçado e escravo",
foi sancionada pelo presidente da república em 29.12.1998.
Bibliografia
MEILLASSOUX,
Claude. Antropologia da escravidão _ o ventre de ferro
e dinheiro, RJ, Jorge Zahar Ed., 1995;
MOORE,
Barrington, Jr. Injustiça _ as bases sociais da obediência
e da revolta, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987.
SANTANA,
Eudoro. Órfãos da abolição: tráfico
de trabalhadores e trabalho escravo. Fortaleza, Assembléia
Legislativa do Estado do Ceará, 1993;
ABDELMALEK,
Sayad. A Imigração ou os paradoxos da alteridade.
São Paulo, Ed. USP, 1998
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