Levantamento divulgado pelo Cimi mostra que, até 31
de julho, das 756 terras indígenas computadas, 442
continuavam pendentes de providências relativas aos
mais diversos estágios do procedimento administrativo
de demarcação, previstos nos termos do Dec.
1775/96. Nos últimos cinco séculos, 1.477 povos
indígenas diferentes foram extintos em toda a extensão
do que hoje forma o território brasileiro.
Mais
pedras no caminho dos
Povos Indígenas para os Outros 500
Rosane
F. Lacerda *
Introdução
Recente
publicação do Conselho Indigenista Missionário
Cimi1, informa que nos últimos cinco séculos,
1.477 Povos indígenas diferentes foram extintos em
toda a extensão do que hoje forma o território
brasileiro, como resultado de uma política genocida,
de domínio e conquista.
Hoje,
em pleno ano de 2001, vive-se um momento que, conforme o imaginário
vigente no mundo ocidental, deveria marcar o início
de um novo século e de um novo milênio, não
só em termos de calendário, mas, sobretudo,
de mudança de valores, de perspectivas de um futuro
melhor.
Para
os Povos Indígenas no Brasil, o período coincide
também com um marco simbólico, imbuído
de importantes expectativas. O ano de 2001 marca, enfim, o
início dos "Outros 500", nos quais, nos dizeres
de D. Pedro Casaldáliga, devemos ingressar com uma
" atitude sincera de memória, remorso e
compromisso... sem a desculpa de dizermos que não
podemos refazer o passado, porque, sim, podemos desvelá-lo,
fazer outro presente, forjar um futuro outro."2
Tal
expectativa, contudo, não parece ser compartilhada
pelas elites detentoras do poder político, e econômico,
que demonstram seu empenho na manutenção de
velhas práticas representativas das mesmas políticas
que produziram o genocídio indígena no país.
Assim,
por exemplo, o ano de 2001 transcorre novamente sem se solucionar
o problema das terras indígenas. Em levantamento divulgado
pelo Cimi na rede internet3, até 31 de julho, tínhamos
ainda no país 175 terras a serem incluídas no
rol de terras "a identificar"; 130 terras aguardando
identificação; 39 terras aguardando definição
do Ministro da Justiça mediante Portaria Declaratória
e 98 terras homologadas mas ainda aguardando registro imobiliário.
Ou seja, das 756 terras indígenas então computadas,
442 continuavam pendentes de providências relativas
aos mais diversos estágios do procedimento administrativo
de demarcação, previstos nos termos do Dec.
1.775/96.
Outro
problema presente neste ano é que grande parte das
terras, mesmo as demarcadas ou situadas nas etapas finais
do procedimento, continuaram invadidas, tendo havido pouco
esforço por parte do governo federal para desintrusá-las
ou para efetuar indenizações quanto às
benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé,
omissão que só contribui para acirrar os ânimos
de ocupantes ilegais contra os índios, tornando-os
alvos de diversos atos de violência.
Em
2001 continuaram as pressões sobre as riquezas naturais
existentes nas terras indígenas, a exemplo de empresas
madeireiras e garimpeiras. No entanto, percebe-se claramente
neste ano o crescimento substancial de outras ondas de pressão:
a) Por parte do setor elétrico, com a aceleração
dos projetos de construção de pelo menos 16
Usinas Hidrelétricas em terras indígenas onde
vivem 25 povos distintos, inclusive grupos isolados e extremamente
vulneráveis; b) Por parte do Projeto Calha Norte, com
a intensificação da presença militar
nas terras indígenas, através da construção
de novos quartéis junto a aldeias, a exemplo do 6º
Pelotão Especial de Fronteiras, na maloca Uiramutã
(Raposa/Serra do Sol RR), representando para os índios
enormes riscos, a exemplo da prática de abusos sexuais
contra mulheres indígenas, como no caso Yanomami, denunciado
com destaque durante o ano; e c) Por parte do governo federal
através da criação de Unidades de Conservação
Ambiental sobrepostas a terras indígenas.
No
plano político-institucional, percebe-se ao longo do
ano a utilização, novamente, da questão
indígena como moeda de troca entre Executivo e Legislativo
federais, através do apoio da base parlamentar governista
à criação e instalação
de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs)
de propósitos claramente antiindígenas: a CPI
da demarcação das Terras Indígenas, que
tem como um dos objetivos centrais o ataque às demarcações
das Terras Yanomami (AM/RR) e Raposa / Serra do Sol (RR),
e a CPI das Ongs, que visa sobretudo organizações
indígenas e ambientalistas. Neste contexto tudo indica
que também o Projeto de Lei que dispõe sobre
o novo Estatuto do Índio, cujo andamento ficou paralisado
durante o ano, tenha também os seus principais dispositivos
leiloados entre os setores com fortes interesses econômicos
sobre as terras indígenas e seus recursos naturais.
É
de se observar no entanto, de parte do Judiciário,
duas importantes decisões: a condenação,
por crime de genocídio, dos autores do massacre dos
Tikuna (28.03.1988), em sentença proferida pela 2ª
Vara Federal em Manaus (AM) e a decisão do Supremo
Tribunal Federal - STF, ao anular o Júri (MS) no qual
havia sido absolvido o principal acusado como mandante do
assassinato do líder Marçal Guarani (25.11.1983),
e determinar a competência da justiça federal
para o caso. O clima geral de impunidade, contudo,
continuou
durante o ano, a exemplo de casos como a morte do Cacique
Chicão Xukuru e a violência policial sobre a
marcha indígena em Porto Seguro, em 22 de abril de
2000.
Registre-se
também que as violências este ano atingiram profissionais
com importante papel na defesa dos direitos indígenas,
a exemplo da Procuradora da República (1ª Região)
e membro da 6ª Câmara de Coordenação
e Revisão da Procuradoria-Geral da República,
Débora Duprat. Intervindo em favor dos índios
na ação judicial contra a instalação
do quartel do Exército em Uiramutã (Raposa /
Serra do Sol RR), foi ameaçada de "levar
um tiro na cabeça" caso não desistisse
de defender os índios na justiça. Também
a advogada Maria José Amaral (OAB/PE), que acompanha
o caso da morte do Cacique Chicão Xukuru, recebeu durante
o ano ameaças de morte e teve barrado, pela Polícia
Federal no Recife, o seu acesso às investigações
sobre a morte da liderança Chico Quelé Xukuru.
Não
obstante, os povos e comunidades indígenas novamente
souberam reagir, o que foi demonstrado em três momentos
significativos. Primeiro, no mês de abril em Luziânia-GO,
com a retomada dos encaminhamentos havidos na Conferência
Indígena 2000, através de Assembléia
que reuniu 176 lideranças de 77 povos vindos de 21
Estados do País4 . Segundo, em Durban África
do Sul, durante a III Conferência da ONU contra o Racismo,
quando a delegação indígena presente
chegou inclusive a denunciar "o boicote premeditado,
arrogante, racista e irresponsável do Governo Brasileiro
que não se empenhou em participar na mediação
das queixas dos povos indígenas" havidos durante
a Conferência.5 Terceiro, em 19 de agosto, com a inauguração
pelos Pataxó, no Monte Pascoal (BA), do Monumento à
Resistência Indígena, um ano e quatro meses após
ter sido destruído pela Polícia Militar da Bahia6
. Conforme o "Manifesto" lançado na ocasião,
o monumento expressa, para os índios, os " sentimentos,
desejos e sonhos de Outros 500, diferentes do passado, com
terra demarcada, direitos garantidos, respeito às diferentes
culturas e à autonomia."7
Principais
ocorrências em 2001
Com
as dificuldades de acesso a informações provenientes
de grande parte das terras indígenas, sobretudo as
mais longínquas e isoladas, bem como ao fato de o período
relatado estar limitado aos meses de janeiro a setembro do
ano 2001, o elenco de violações de direitos
humanos aqui abordados é, obviamente, amostragem ainda
parcial. Os tipos de ocorrência são, contudo,
demonstrativos significativos da situação vivida
pelos povos indígenas neste ano, suficientes para subsidiar
uma análise de suas origens e significados.
Assassinatos:
No
período o Cimi registrou nove casos de assassinatos
de indígenas em todo o País, num total de 10
vítimas. Em dois casos (Chico Quelé, Xukuru
PE e Avappcarendy Guarani-Kaiowá MS)
se tem informações de que as mortes estariam
diretamente relacionadas a conflitos de terra. No entanto,
continua extremamente preocupante o alto índice de
envolvimento de agentes do poder público na autoria
dos crimes. Das 10 mortes registradas, em pelo menos 03 (Nô
e Nilson Félix Truká PE e Vicente Cândido
de Lima Guarani PR) a autoria é atribuída
a Policiais militares. Numa terceira morte (Avappcarendy),
embora se aponte como autores materiais jagunços contratados
por fazendeiros em Amambai (MS), tem-se também, como
um dos mandantes, o vice-prefeito da cidade, o que faz com
que em pelo menos 40% das mortes tenham tido envolvimento
de agentes do poder público: 03 mortos por policiais
militares
e 01 tendo como um dos mandantes um vice-prefeito.
A
seguir, um breve relato de alguns casos, segundo a ordem cronológica
das ocorrências:
José
Nô Félix, 39 e Nilson Félix, 16 ( pai
e filho ) Truká PE. Ferido à bala numa
operação da PM na cidade de Cabrobó (PE),
em 04 de janeiro, o adolescente era levado no carro do vereador
Romero Gomes, juntamente com seu pai e uma enfermeira, do
Hospital local para o da cidade de Petrolina (PE), onde receberia
atendimento médico mais adequado. No trajeto entre
as duas cidades, o veículo foi interceptado por uma
viatura da PMPE. Pai e filho foram levados à força
por um grupo de Policiais e desapareceram. Três dias
depois, os corpos das vítimas eram encontrados, próximo
à cidade de Santa Maria da Boa Vista (PE), degolados
e queimados com uso de pneus de carro.
Avappcarendy
ou Samuel Martins, 25 a 35 anos, Guarani-Kaiowá
MS. Morto na madrugada de 26 de março quando preparava-se,
junto com a comunidade indígena (cerca de 150 pessoas,
inclusive mulheres e crianças), para tentar (pela terceira
vez) retomar as terras do Tekohá Kaajari, ocupado
pela Fazenda Santa Clara, no município de Amambai (RS).
Ao se aproximar do local com os demais, levou um tiro de espingarda
calibre 22 no coração. Segundo a polícia,
a arma seria de precisão pois o tiro certeiro teria
sido disparado a longa distância. Vários outros
indígenas saíram feridos. A Polícia Federal
apontou o Presidente do Sindicado Rural de Amambai, Gumercindo
Bonamingo, e o Vice-Prefeito do município, Wilson Nunes
(PPB), como suspeitos de mandantes.
Cândido
de Lima, 39, Guarani PR. Morto em 23 de abril, pelo
cabo Nilson dos Santos8 ex-comandante da Polícia Militar
em Santa Amélia (PR), numa operação destinada
a fazer a vítima devolver e se afastar do neto de 5
meses de idade, a quem estava impedido de ter contato por
imposição dos familiares. Cercada e desarmada,
a vítima pediu aos PMs que abaixassem as armas para
que pudesse entregar a criança. Segundo os PMs, um
dos policiais escorregou, assustando o índio que já
se preparava para por a criança no chão. Um
dos PMs também se assustou e sua arma teria disparado
"acidentalmente" matando o índio pelas costas.
Segundo o delegado, os PMs estavam despreparados para essa
ação. O cacique Mário Sampaio disse que
os PMs entraram na terra indígena sem autorização
das lideranças, que poderiam ter resolvido o problema
sem a intervenção policial.
Francisco
de Assis Santana, ou Chico Quelé, 56, Xukuru
PE. Importante liderança Xukuru, foi morto em 23 de
agosto, com dois tiros de espingarda calibre 12, numa tocaia
montada no interior da terra indígena, em Pesqueira
(PE). A vítima participara, dias antes, de mais uma
retomada de parte do território tradicional do Povo,
e fora surpreendida quando dirigia-se ao Posto da Funai na
Aldeia São José, para uma reunião a respeito
das indenizações de benfeitorias dos ocupantes
não-indígenas. Investigações preliminares
no local dão conta de que a tocaia estava armada há
pelo menos dois dias, e que os rastros deixados pelo(s) atirador(es),
em sua fuga, dirigiam-se à Fazenda Carrapato, de José
Cordeiro de Santana (Zé de Riva), inimigo da luta dos
Xukuru pela terra e apontado pelos índios como o principal
suspeito pela autoria intelectual da morte do Cacique Chicão.
Embora os indícios apontem para o envolvimento dos
fazendeiros na morte de Quelé, a Polícia Federal
empenha-se em apurar a existência de conflitos internos
entre as lideranças indígenas como tendo sido
a causa do crime.
Ameaças
de morte:
De
janeiro a setembro de 2001, o Cimi registrou um total de 09
casos de ameaças de morte, a maioria contra comunidades
inteiras e não apenas contra indivíduos determinados,
somando mais de três mil vítimas. Dos 09 casos
apontados, 05 tiveram o envolvimento direto de agentes do
poder público em sua autoria, e 04 casos tiveram sua
autoria atribuída a particulares. Estes últimos
(La Klañon SC,
Tekohá
Kaajari MS, Caramuru-Paraguaçu
BA e Maloca do Lage RR) envolvem a formação
de milícias armadas contra os índios, contratação
de pistoleiros e invasão garimpeira, estando relacionados
a conflitos fundiários. Os de autoria atribuída
a agentes do Poder público envolveram Policiais Militares
(Truká PE e La Klañon SC), Soldados
do Exército (Maloca do Lage, Makuxi RR) e um
Prefeito Municipal (Pataxó Hã-Hã-Hãe
BA). Vejamos alguns casos:
Comunidade
Xokleng de La Klañon SC. Lutando para reaver
parte de suas terras ilegalmente vendidas pelo Governo do
Estado, a comunidade foi alvo da formação de
milícias armadas, segundo a imprensa9 criadas por grupos
de agricultores em Victor Meirelles (SC), através da
compra de armas a um atravessador, em Itajaí (SC).
O objetivo das milícias seria "resistir à
chegada dos indígenas", caso as famílias
"não sejam indenizadas pelas terras que compraram".
Como a União Federal só pode promover a indenização
por benfeitorias (CF/88, art. 231, § 6.º), os colonos
reagem ameaçando os índios caso se aproximem
do local.10 Neste clima de tensão, na manhã
de 12 de maio, um grupo de indígenas enfermos, que
estava sendo transportado numa Kombi da Fundação
Nacional de Saúde Funasa, para o Hospital de
José Boiteux (SC), vendo a PM agredindo outros membros
da comunidade parou o veículo na intenção
de tentar se esconder, passando a ser alvo da agressão
dos policiais, que ameaçaram jogar a Kombi numa ribanceira.
No episódio, a PMSC agia no cumprimento de um mandado
de Manutenção de Posse expedido pela Juíza
de Direito da Comarca de Ibirama11 (SC), Iraci Satomi Schioquetti,
em favor da Empresa Manoel Marchetti Indústria e Comércio
Ltda com relação às terras da Fazenda
Ipê, incidente na terra indígena.
Comunidade
Guarani-Kaiowá do Tekohá Kaajari
MS. Expulsa de suas terras e obrigada a viver confinada na
Aldeia Limão Verde (Amambai MS), a comunidade
vem tentando insistentemente retornar para o seu Tekohá12
. Na terceira tentativa de retomada do local, a comunidade
foi recebida à bala por jagunços contratados
por fazendeiros, episódio que resultou na morte de
Avappcarendy, anteriormente mencionada. Na casa do presidente
do Sindicado Rural de Amambai, Gumercindo Bonamingo "a
PF encontrou armas, explosivos e uma caminhonete, provavelmente
utilizados no ataque ..." 13 , o que indica a existência
de uma milícia armada, destinada a eliminar os índios
em seu trajeto de volta ao Tekohá.
Comunidade
Pataxó Hã-Hã-Hãe BA. No
mês de fevereiro o indígena Agnaldo Francisco
dos Santos vereador pelo PT em Pau Brasil (BA), passou a sofrer
ameaças de morte por parte do Prefeito José
Augusto dos Santos Filho, ao denunciar irregularidades na
administração municipal. O Prefeito é
um dos principais opositores à demarcação
da Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu,
e tem vários parentes com terras no interior da área
indígena. Em junho de 2001 em novos protestos contra
a demora no julgamento da Ação Cível
Originária de Nulidade de Títulos há
19 anos em trâmite no STF, os índios ocuparam
mais duas fazendas no interior da terra indígena. Logo
após, vários pistoleiros armados passaram a
ser vistos circulando a cidade de Pau Brasil à procura
de índios.
Comunidade
Makuxi da Maloca do Lage, T.I. Raposa / Serra do Sol
RR. Na tarde de 09 de maio, a maloca foi invadida por soldados
do 7.º Batalhão de Infantaria da Selva, embriagados
e portando armas de fogo. Ameaçaram promover um "banho
de sangue" na maloca, caso fossem impedidos de transitar
na região. Assustadas, as crianças, para se
proteger, fugiram para a mata e só retornaram na madrugada
do
dia seguinte. O episódio ocorreu em meio à mobilização
dos índios contra a construção de um
quartel do Exército na aldeia Uiramutã, interior
da terra indígena, e às denúncias de
abusos sexuais de militares contra índias Yanomami,
também em Roraima. Meses depois, em 1.º de agosto,
a Maloca do Lage foi invadida por garimpeiros. Com facas e
facões em riste, ameaçavam os índios
na tentativa de forçar passagem por um caminho tradicional
dos Macuxi que dá acesso ao território da República
da Guiana. Em menor número, os garimpeiros recuaram
por enquanto.
Comunidade
Truká PE. Em 08 de janeiro, os indígenas
Aurivan dos Santos Barros ("Neguinho Truká")
e Wilson José Ferreira, foram abordados pela PM em
Santa Maria da Boa Vista (PE) quando viajavam de ônibus
para o Recife (PE) para encaminhar denúncias de violências
policiais contra os índios. Perguntando onde moravam,
os policiais os acusaram como assaltantes de ônibus,
e os ameaçaram "estourar as cabeças"
caso denunciassem as agressões. O ônibus ainda
foi seguido pelos policiais por cerca de 40 Km, numa clara
tentativa de intimidação. Ainda em janeiro,
os familiares de Nô e Nilson Félix passaram a
ser alvos de ameaças por parte de Policiais Militares,
com o intuito de pressionar os índios contra o andamento
das investigações em torno do caso daquelas
duas mortes.
Abuso
de autoridade:
Também
no mesmo período o Cimi registrou a ocorrência
de cinco casos de abuso de autoridade14 , praticados nas suas
mais diversas formas: agressões físicas, violações
de domicílio, detenções ilegais, etc.
Este tipo de ocorrência, praticado principalmente por
Policiais Militares, afetou comunidades das terras indígenas
Truká (PE), La Klañon (SC), Xerente (TO) e Raposa
/ Serra do Sol (RR), onde vivem cerca de 15 mil indígenas:
Comunidade
Indígena Truká PE. Em 04 de janeiro a
Terra Indígena foi novamente invadida por Policiais
Militares, alguns encapuzados, em 12 veículos entre
viaturas e carros de passeio. Os PMs agiram sem mandado judicial,
num ato que caracteriza violação de domicílio.
Na mesma ocasião, colocaram o indígena conhecido
como "Lobinho" no porta-malas de um dos veículos,
obrigando-o a informar a casa de Nilson Félix (que
seria morto juntamente com o seu pai), a fim de procurar pelo
seu irmão, o também menor Nelson Félix,
de 14 anos.
Comunidade
Xokleng de La Klañon SC. Em 12 de maio, a fim
de cumprir um mandado possessório contra os índios,
um grupo de PMs cometeu uma série de abusos, entre
os quais destacamos: a) retenção do veículo
da Funasa em que viajavam os indígenas doentes com
destino ao hospital de José Boiteux; b) invasões
das residências dos indígenas Miriam Vaicá
Priprá (professora) e Olímpio Veitschá
Priprá, com uso de bombas de efeito moral e balas de
borracha, a despeito da presença de diversas crianças;
c) espancamento de diversos índios, com cassetetes
e chutes, além do uso de balas de borracha; d) detenção
ilegal dos indígenas Samuel Cuzung Priprá, Womble
Camblem, Ndilli Cangui Filho, Nidli Ingaclã e Adailson
da Silva. Eis alguns relatos: Antônia Priprá
de resguardo e com seu filho de apenas 6 dias e outro
de 2 anos, desmaiou e ficou sozinha na Kombi da Funasa com
os bebês, sem receber nenhuma assistência. Ao
recobrar os sentidos, presenciou sua mãe sendo espancada
pelos policiais. Ilsa Coctá Priprá (mãe
de Antônia) Enferma, foi algemada ao tentar sair
da Kombi para fugir dos policiais. Foi espancada nas pernas,
cabeça e abdome, levou 3 tiros com bala de borracha,
caiu e foi chutada, ficando com hematomas e cortes por todo
o corpo. Pediu água para ela e sua filha, mas não
foi atendida, embora os policiais bebessem água na
sua frente. Paulo, idoso e deficiente físico, foi alvejado
no braço com sua própria muleta, jogado no chão
e pisoteado.
Terra
Indígena Raposa / Serra do Sol RR. O fato, já
citado, que vitimou a comunidade Makuxi da Maloca do Lage
em 09 de maio, configurou
também em violação de domicílio,
já que os Soldados entraram na área sem nenhum
convite ou permissão da comunidade, numa prática
de evidente desrespeito à organização
social do grupo, além das outras violações
anteriormente mencionadas.
Terra
Indígena Xerente TO. Em 17 de agosto, também
a Terra Indígena Xerente sofreu invasão de Policiais,
Militares e Civis, numa ação comandada pelo
delegado Ricardo Moreira de Toledo Salles, titular da delegacia
de Pedro Afonso (TO). Embora motivados por um mandado de prisão,
o fato é que os policiais não tinham competência
para ingressar na terra indígena, dado estar sob jurisdição
federal, devendo ter sido requisitados policiais federais
para o cumprimento da ordem. Revoltada com a intromissão
indevida dos policiais a comunidade reagiu, tendo havido confronto.
Só depois a Polícia Federal foi acionada.
Conclusão
e recomendações:
Em
que pese o levantamento aqui apontado ser ainda uma amostragem
parcial, necessitando de maiores complementações,
impressiona o alto grau de envolvimento de agentes do poder
público sobretudo Policiais Militares, mas também
Policiais Civis, Soldados do Exército e até
mesmo de Prefeitos e Vice-prefeitos Municipais , em
termos de autoria dos atos de violência, seguindo uma
tendência que já apontávamos na edição
2000 do Relatório do Centro de Justiça Global.
Tal
circunstância evidencia acentuadamente a grande responsabilidade
do Estado (por ação ou por omissão )
nas violações de Direitos Humanos sofridas pelos
membros das comunidades indígenas e mesmo por estas
enquanto coletividades especialmente protegidas.
Cremos
que a superação deste tipo de situação
exige do Estado Brasileiro, em primeiro lugar, reconhecer
a situação de terror e insegurança em
que vive grande parte da população indígena
no país, muitas vezes encurralada por projetos econômicos
de fortes impactos negativos sobre a vida de suas comunidades.
Exige
também o ataque à principal fonte das violências
providenciando, conforme manda a Constituição
Federal: a) a imediata demarcação das terras
de ocupação tradicional indígena e a
proteção da posse permanente e exclusiva dos
índios sobre as mesmas; b) a alocação
do montante necessário de recursos destinados à
efetuação de todas as indenizações
de benfeitorias derivadas de ocupação de boa-fé
nas terras indígenas. Concomitantemente, no sentido
de se combater uma outra fonte das violências que é
a impunidade, faz-se necessário que o Estado atue firmemente
no sentido de proceder a investigações verdadeiramente
sérias e competentes quanto aos casos de violações
tantas vezes apontados, e que exerça o seu papel de
julgar e punir exemplarmente todos os seus responsáveis.
*
Advogada, Assessora Jurídica no Secretariado Nacional
do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo
anexo à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB).
--------------------------------------------------------------------
1
Conselho Indigenista Missionário. Outros 500: Construindo
uma Nova História. São Paulo: Editora Salesiana,
2001
2
CASALDÁLIGA, Pedro. In: Conselho Indigenista Missionário,
Idem, p. 10
3
http://www.cimi.org.br/
4
Jornal Porantim, Cimi, ano XXIII, n.º 235, Brasília
DF, maio de 2001, pág. 8-9.
5
Declaração do Comitê Indígena Brasileiro
contra o legado continuado de Discriminação
e Racismo contra os povos indígenas do Brasil. Apresentado
na Conferência das Nações Unidas contra
Racismo, Xenofobia e Intolerância, 7 de setembro, 2001.
Texto disponibilizado na home page do Cimi na internet (http://www.cimi.org.br/).
6
LACERDA, Rosane F. "Situação de Direitos
Humanos dos Povos Indígenas no Brasil no ano 2000."
In: Justiça Global, Direitos Humanos no Brasil 2000.
p. 20.
7
Jornal Porantim, Cimi, ano XXIII, n.º 238 , Brasília
DF, setembro de 2001, p. 14.
8
ide os jornais Hoje em Dia, Folha de Londrina e Gazeta do
Povo, edições de 25 e 26 de abril. de 2001.
9
Jornal de Santa Catarina, edição de 10.02.2001.
"Colonos se armam contra índios no Alto Vale".
10 Em dezembro de 2000 tentou-se, através de um projeto
de Emenda à Constituição Estadual, de
autoria do Deputado Pedro Uczai, obrigar o Estado de Santa
Catarina a se responsabilizar pela indenização
dos colonos, mas o projeto foi derrubado pelos parlamentares
governistas, maioria na Assembléia Legislativa.
11 A competência para as causas em que se discutam direitos
indígenas é da Justiça Federal (CF/88
art. 109, XI).
12
Aldeia onde "se concretiza o modo de ser próprio
dos Guarani Kaiowá". BRAND, Antônio. "Os
suicídios entre os Guarani Kaiowá no Mato Grosso
do Sul". In: Jornal Porantim, Cimi, ano XVII, n.º
178, setembro de 1995, pág. 8.
13 Jornal Porantim, Cimi, ano XXIII, n.º 234, Brasília
DF, abril de 2001, p. 14.
14
Lei n.º 4.898, de 09 de dezembro de 1965
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