Muitas indagações estão abertas sobre
o futuro dos moradores dos povoados seculares de Alcântara
e os movimentos sociais empenhados na observância dos
direitos étnicos, dentre os quais se destaca o Sindicato
de Trabalhadores Rurais de Alcântara, o Centro de Cultura
Negra do Maranhão e a Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos, já advertem para o risco de genocídio.
BASE
DE LANÇAMENTO DE FOGUETES DE
ALCÂNTARA(1) AMEAÇA TERRITÓRIO ÉTNICO
Alfredo
Wagner Berno de Almeida(2)
Na paisagem de Alcântara se agigantam ruínas
velhas em demasia, escalavradas pelo tempo, como a dizer a
todo instante que este lugar chegou aos seus derradeiros dias.
O casario nobre e que este lugar chegou aos seus derradeiros
dias. O casario nobre e assobradado, cujas ruínas ficaram
por mausoléus, que hoje vemos debruçados sobre
as colinas que se precipitam ao mar, denota a tragédia
de um passado eufemizado pela expressão erudita "decadência
da lavoura", sintetizadora do ocaso e da desagregação
das plantações algodoeiras e de cana de açúcar
fundadas na monocultura e no trabalho escravo. Das antigas
sedes de fazendas e dos soberbos engenhos restam escavações
ruiniformes e pedras lavradas com a vegetação
densa revestindo tudo onde outrora se assentavam os alicerces.
As fazendas das ordens religiosas foram desmontadas desde
o início da primeira metade do século XVIII,
nos primórdios da "governação"
pombalina, enquanto as fazendas de algodão começaram
a declinar com o fim da Cia. Geral do Grão-Pará
e Maranhão, em 1778, e com a entrada dos EUA no mercado
internacional, enquanto nação independente,
com suas plantações algodoeiras do Sul. Embora
franciscanos, carmelitas e mercedários tenham tido
um tratamento distinto daquele dado pela Coroa à Cia
de Jesus, seus imóveis decaíram por igual século
XIX adentro. O Convento da Ordem dos Carmelitas Descalços
com suas três fazendas, incluindo-se Itamatatiua ou
terras de Santa Teresa, uma olaria e muitas terras, bem como
o Convento de N.S. das Mercês com suas duas fazendas,
incluindo-se as terras de SantAna e muito gado, viram
tudo a perder durante o Império. Do casario avarandado,
mencionado pelos cronistas históricos, ficaram somente
os poços de pedra, de borda arredondada, mais conhecidos
como "poços dos frades". Uma datação
das ruínas dispersas pelo Município de Alcântara
poderia ser estimada entre quase dois séculos e dois
séculos e meio, embora muitas delas datem de construções
realizadas no último quartel do século XVII.
Confrontando-se com estes destroços, tem-se hoje as
edificações de concreto, a pista de pouso e
o setor de controle de satélites do Centro de Lançamento
de Alcântara, do Ministério da Aeronáutica,
com seus foguetes que apontam para o futuro de um modo igualmente
trágico, a cada vez que se espatifam no solo ou que
explodem no ar ou que se perdem nas profundezas abissais e
nas correntes oceânicas.
Comprimidos entre estas duas dimensões trágicas
tem-se hoje 3.600 famílias organizadas em 276 povoados
centenários que jazem estupefatas, como se emergisse
das ruinarias grandiosas e das promessas de futuro um campo
de forças com eternas posições de combate
que sempre ameaçam destroçá-las. Em épocas
pretéritas era o regime escravista que os confinava
nos domínios territoriais das fazendas de algodão
e dos engenhos, reprimindo duramente os quilombos onde se
realizavam livremente. Nos tempos atuais tem-se os deslocamentos
compulsórios, engendrados pelo Centro de Lançamento
de Alcântara-MAer, que em 1986-1987 removeu 312 famílias
e agora ameaça deslocar mais 500 familias usurpando
os territórios tradicionais onde já estão
a pelo menos dois séculos e meio. Antes eram forçados
a ficar nas fazendas e, caso lograssem fugir, eram trazidos
dos quilombos por forças militares. Com a desagregação
e a lenta derrocada das grandes plantações,
desenvolveram livremente sua agricultura de base familiar
e suas práticas extrativas, aquilombando as antigas
fazendas. Doações, concessões, aquisições,
heranças e apossamentos consolidaram este sistema econômico
específico, que alterou a paisagem produto das monoculturas,
erigindo povoados e pequenos sítios com fruteiras e
amplos mangueirais, com roçados e capoeiras, com reservas
de mato, com cocais e buritizais e ainda juçarais acompanhando
o leito dos pequenos igarapés que demandam o mar. Na
frente das casas os jardins floridos colorem os caminhos e
ornam os povoados já seculares. A monotonia da brancura
da penugem que rodeava as sementes dos algodoeiros foi substituída
por uma profusão de espécies e de cores em árvores,
arbustos, ervas vivazes e pequenas áreas de cultivo
de mandioca, arroz e feijão. Os cocais refloresceram
e se multiplicaram onde outrora os canaviais, sob o signo
das chaminés dos engenhos, haviam destruído
a mata nativa. As pipas de aguardente e as barricas de açúcar
deram lugar aos cofos de amêndoa de babaçu para
a produção de azeite, às cargas de banana
e de melancia e aos paneiros de farinha e tapioca que afastaram
o fantasma da grande escassez da segunda metade do século
XVIII. Índios desaldeados, quilombolas, famílias
de escravos sob regime de aforamento, ex-escravos domésticos
e demais moradores das fazendas das ordens religiosas e es-escravos
tornandos herdeiros por força de disposições
testamentárias e de atos de doação resultaram
por consolidar seus domínios numa vasta rede de sítios
e povoados dispersos entre a Baia de Cumã e a baia
de S. Marcos. A autonomia na decisão do que produzir,
como, quando e para quem vender, bem expressa a situaçâo
histórica do processo que se está designando
como aquilombamento, ou seja, a livre administração
dos recursos disponíveis por unidades familiares igualmente
livres e não mais subordinadas aos desígnios
dos grandes proprietários territoriais.
Agora, passados mais de dois séculos, mediante as novas
instituições interessadas nas terras, o Ministério
da Aeronáutica, a INFRAERO e a Agencia Espacial Brasileira,
tais famílias estão sendo forçadas a
sair destes locais onde séculos antes foram compulsoriamente
colocadas e onde lograram construir territórios livres.
Através do eufemismo reassentamento são deslocadas
para áreas que sequer foram de sua escolha. Em 1980,
por meio do decreto 7.820, de 12 de setembro, o Governo do
Maranhão declarou para fins de desapropriação
uma área de 52.000 há para instalação
do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Em
agosto de 1991, o Governo federal através do Presidente
Collor aumentou para 62.000ha a área destinada ao CLA.
Conforme bem sublinha o advogado do STR de Alcântara,
Dr. Domingos Dutra: "Com este decreto, criou-se uma série
de embaraços de natureza jurídica e práticos,
com mais prejuízo às comunidades, tendo em vista
que os processos saíram da Justiça Estadual,
em Alcântara, e passaram para a Justiça Federal
em São Luis".
Observa-se um padrão de sociedade escravista que trata
os povos dominados como passíveis de serem tangidos
de um lugar para outro a qualquer tempo e que sempre utiliza
retoricamente a figura da fronteira, isto é, um estoque
de recursos abertos e disponíveis ou terras sempre
abundantes. Há uma temerária imagem de bem ilimitado
que implica numa indagação: para onde serão
recolocadas as 500 famílias que a INFRAERO diz que
irá deslocar e reassentar no próprio Município?
Para onde?
Antes mesmo desta indagação importa mencionar,
entretanto, que os 276 povoados remetem para uma situação
de rede social, implicando numa divisão de trabalho,
de serviços e de troca de produtos entre eles. Tem-se
consolidado um sistema de trocas equilibradas entre povoados
mais próximos ao mar e a igarapés maiores, que
se dedicam principalmente à pesca e complementam com
agricultura, e povoados considerados "mais centrais"
distantes da beira e do porto que se voltam principalmente
para a agricultura. A reciprocidade positiva, com troca equilibrada
de bens e serviços, consiste num sistema singular,
que conjugado com a afirmação de uma identidade
traduzida por terra dos pretos, terra de santo, terra da santa
(caso Itamatatiua), terras de santíssimos, terras de
santíssima, terra de caboclo e outras denominações,
configura um território étnico ou um território
de exclusividade negra. A idéia de comunidade remanescente
de quilombos passa aqui por estes diferentes planos de organização
social, que entrelaçados delimitam uma territoria própria.
A interpenetração dos planos assinala uma afirmação
étnica, que se realiza tanto no campo quanto nas periferias
urbanas de Alcântara e São Luis para onde muitas
famílias foram expulsas. Está-se diante de um
mosaico complexissimo de planos cruzados e sobrepostos, além
de interações de toda ordem que estão
por serem reconhecidas. O princípio de múltiplas
conexões entre centenas de povoados, numa península
que se manteve por quase dois séculos fora da ação
das políticas governamentais, é que viabiliza
as condições materiais de existência destes
povoados e em virtude do qual eles constituem uma comunidade
dinâmica ou um todo organizado. O intercâmbio
regular entre os povoados inscreve-se dentre as necessidades
fundamentais desta comunidade dinâmica que contém
uma diversidade de modos de vida em grupo, transcendendo àquela
idéia de comunidade definida por critérios notadamente
geográficos. Mesmo que os povoados variem quanto ao
tamanho, à composição, à atividade
econômica principal e aos laços com diferentes
circuitos de mercado, observa-se que seus moradores participam
de um mesmo padrão de relação com recursos
naturais, de uma mesma cultura que compreende uma certa unidade
territorial. Variam por exemplo, os santos padroeiros e as
festas religiosas de povoado para povoado, porém cada
festejo congrega participantes de povoados distintos, ainda
que um deles centralize as sequências cerimoniais. Tem-se
portanto um calendário de rituais religiosos que sucessivamente
vão reforçando os laços de coesão
social entre os diversos povoados. O território étnico,
neste sentido, transcende a uma noção estrito
senso de terra, como recurso básico, e remete a um
sistema de relações sociais que sustenta as
mobilizações hoje em andamento, coordenadas
pelo STR de Alcântara, contra os atos de remoção
compulsória e contra os estudos de impacto ambiental
contratados pela INFRAERO e executados pela empresa Kohan-Saagoyen
Consultoria & Sistemas, que elidiram qualquer referencia
às relações antrópicas e às
comunidades remanescentes de quilombo. Considerando que o
CLA não possui licenciamento ambiental e que houve
desvio de sua finalidade inicial mediante o fato de que a
base tornou-se comercial, as famílias afetadas reivindicaram
em audiências com os Ministros do Supremo Tribunal Federal
e do MMA em agosto de 2000, que sejam realizados novos estudos
de impacto ambiental e um novo RIMA, contemplando as questões
omitidas no anterior e revendo o item da remoção
compulsória.
Agrava este quadro, que tornou o município uma zona
crítica de conflito e tensão social, o fato
de que em 18 de abril de 2.000 foi assinado no Itamaraty,
em Brasília, um Acordo entre o governo brasileiro e
os EUA que garante aos países e empresas estrangeiras,
notadamente os norte-americanos, o uso do CLA como base de
lançamento de foguetes. As condições
de tal acordo são apontadas como lesivas ao desenvolvimento
da pesquisa espacial no Brasil e à soberania nacional
ao asseverar, dentre outros, que o Brasil não terá
poder para inspecionar o conteúdo dos "containers"
transportados pelos EUA para o Centro de Lançamento
de Alcântara. Muitas indagações estão
abertas sobre o futuro dos moradores dos povoados seculares
de Alcântara e os movimentos sociais empenhados na observância
dos direitos étnicos, dentre os quais se destaca o
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alcântara, o Centro
de Cultura Negra do Maranhão e a Sociedade Maranhense
de Direitos Humanos, já advertem para o risco de genocídio.
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1
O Município de Alcântara (MA), com cerca de 22.000
habitantes, encontra-se encravado na Área de Proteção
Ambiental das Reentrâncias Maranhenses.Localiza-se na
mesorregião Norte maranhense, mais exatamente na Microrregião
Litoral Ocidental Maranhense com uma área correspondente
a pouco mais de 120.000ha. Situa-se nos limites da Amazônia
legal, compreendido numa península entre as Baias de
Cumã e de são marcos, cortada por inúmeros
rios e igarapés, o que faz com que considerável
parte de sua área seja classificada como "terrenos
de marinha e seus acrescidos" e como terrenos reservados
nas margens de rios públicos, consoante disposição
constitucional (cap.III,Art.20).
2
Antropólogo, que acompanha a questão pela Associação
Brasileira de Antropologia . Este texto é uma versão
resumida do trabalho apresentado na Oficina "A História
Ameaçada-A luta das comunidades tradicionais contra
a política colonialista da base Espacial de Alcântara"
, organizada pela Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos
Humanos no âmbito do FÓRUM SOCIAL MUNDIAL, realizado
em Porto Alegre de 25 a 30 de janeiro de 2001. Esta oficina
foi coordenada pelo Mestre em Políticas Públicas
Luiz Fernando do Rosário Linhares, autor da dissertação
"Terra de Preto,Terra de Santíssima", que
trata da desagregação dos engenhos e da formação
do campesinato em Alcântara. Participaram da atividade
o Sr. Samuel Moraes, presidente do STR de Alcântara,
o Dr.Domingos Dutra, advogado que há 21 anos acompanha
a questão dos atingidos pelo Centro de Lançamento
de Alcântara (CLA), o Dr. Luiz Antonio Pedrosa, advogado
da SMDDH, e a Dra. Deborah D.Brito Pereira, da Procuradoria
Geral da República.
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