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Relatórios


Os trabalhadores desempregados foram expulsos do campo, passando a residir nas periferias dos municípios, excluídos socialmente e sendo utilizados pelas empresas e empreiteiros como mão-de-obra barata, como um estoque de bóias-frias e para o trabalho clandestino. Apenas em Pernambuco, nos últimos 15 anos, de acordo com entidades patronais e de trabalhadores, mais de 150 mil postos de trabalho foram extintos definitivamente com a crise do setor sucroalcoleiro. Nesta última década, parte importante desse contingente desempregado em Pernambuco e na Paraíba reagiu e passou a se organizar em movimentos sociais para reivindicar a realização da reforma agrária. Contudo, a ausência de uma resposta concreta dos organismos públicos responsáveis transformou essa região do Nordeste em uma das duas áreas de maior conflito fundiário no Brasil, ao lado do Pontal do Paranapanema, em São Paulo.

Morte e vida severina no Nordeste
Violência e luta pela terra em Pernambuco
e na Paraíba

“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).”

João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina.   
Marluce Cavalcanti de Melo   


A luta por reforma agrária em Pernambuco e na Paraíba é intensamente marcada pela coragem e resistência popular, nas ligas camponesas, no período da ditadura militar, até os esforços libertadores do Movimento Sem Terra, do Sindicalismo Rural e dos Movimentos e Pastorais da Igreja, enfrentando o velho capitalismo selvagem e hoje o regime neo-liberal, violador dos direitos humanos e excludente socialmente, sob o disfarce de uma democracia formal. Apesar de suor e de sangue, os avanços foram inversamente proporcionais ao sólido processo de organização, às lutas desenvolvidas e às violências sofridas pelas famílias sem terra.

A história da reforma agrária nesses dois estados tem sido muito rica, se olhada do ponto de vista das lutas diversificadas e criativas dos trabalhadores e de suas organizações, mas relativamente pobre em resultados concretos, se analisada do ponto de vista dos precários resultados oficiais: poucas desapropriações de áreas, falta de crédito e assistência técnica aos agricultores, políticas só compensatórias e de interesse eleitoral para as populações sertanejas.

Num ambiente exclusivamente de produção agroindustrial e de concentração de terra, particularmente nos espaços hegemonizados pela cana há séculos, onde inexistem alternativas de trabalho e de produção agrícola familiar, tem-se agravado o quadro de miséria e de tensão social. Os trabalhadores e as trabalhadoras desempregadas foram expulsos do campo, passando a residir nas periferias dos municípios, excluídos socialmente e sendo utilizados pelas empresas e empreiteiros como mão-de-obra barata, como um estoque de bóias-frias e para o trabalho clandestino. Apenas em Pernambuco, nos últimos 15 anos, de acordo com entidades patronais e de trabalhadores, mais de 150 mil postos de trabalho foram extintos definitivamente com a crise do setor sucroalcoleiro.

Nesta última década, parte importante desse contingente desempregado em Pernambuco e na Paraíba reagiu e passou a se organizar em movimentos sociais para reivindicar a realização da reforma agrária. Contudo, a ausência de uma resposta concreta dos organismos públicos responsáveis transformou essa região do Nordeste em uma das duas áreas de maior conflito fundiário no Brasil, ao lado do Pontal do Paranapanema, em São Paulo. Segundo os cálculos divulgados pelos movimentos sociais, a região possui mais de 40 mil famílias acampadas em terras improdutivas, exigindo a desapropriação.

Diante das reivindicações das comunidades da região do Semiárido e das exigências de reformas estruturais, o Governo respondeu com curtos e compensatórios programas sociais, adiando a necessária reestruturação fundiária e uma nova e urgente política de recursos hídricos.

O Governo Federal não soube compreender as necessidades e violações seculares que essas famílias agricultoras vêm sofrendo. Ou, o que é mais concreto e realista, compreendeu essas necessidades, mas virou-lhes as costas, se mantendo insensível e fiel aos seus compromissos com as elites latifundiárias nordestinas, que lhes assegura votos fiéis no Congresso Nacional para implantar um modelo de submissão às exigências da ordem global, em troca de favores e da omissão pública no tratamento da questão social e da reforma agrária.

A partir desse conluio nefasto entre o Governo e as elites, a reforma agrária vem sendo executada com baixos orçamentos, movida lentamente sob pressão da sociedade e muito aquém das demandas da realidade. Nos últimos dois anos, reagindo negativamente às legítimas reivindicações e às democráticas pressões sociais, o Governo Federal iniciou uma série de medidas ofensivas como a criminalização das ocupações de terras, a exclusão do Programa de Reforma Agrária dos assentados que participassem de manifestações contra o Governo e o uso das estruturas policiais oficiais na repressão. Essas atitudes oficiais, além de inconcebíveis por si só, estimularam os latifundiários a intensificar a ação de suas milícias privadas na coação dos trabalhadores rurais, para inibir o seu processo de organização em defesa de seus direitos e interesses.

Coerente com a lógica da criminalização e da falta de compromisso com uma ampla e verdadeira reforma agrária (geradora de oportunidades, de desconcentração fundiária, de cidadania e de justiça social), o Governo FHC aprofundou a sua submissão aos ditâmes globais ao pretender implantar a compra de terras, através do Banco da Terra. Com isso, renunciou ao poder desapropriatório do Estado, para atender aos padrões ditados pelo Banco Mundial em todo o mundo, voltados a privilegiar o domínio da vontade do latifúndio e para abrir um espaço indesejado às negociatas nas compras de terras.

Para se compreender esse recrudescimento da luta pela terra basta refletir sobre os números da violência no campo. De 1995 até 2001, em Pernambuco, foram assassinados 14 trabalhadores rurais, 43 torturados, 232 presos e 416 foram agredidos fisicamente ou feridos em 842 conflitos de terra. Na Paraíba, foram 4 assassinatos, 14 torturados e 333 foram agredidos fisicamente ou feridos em 218 conflitos no campo e 187 de trabalhadores e trabalhadoras, lideranças e agentes pastorais amargaram dias de prisão e longos processos judiciais.

Apesar de tanto sangue dos trabalhadores, muito pouco se fez pela reforma agrária nesses Estados. Desde 1979 os números de desapropriações e de famílias assentadas são mínimos diante das populações de cada Estado e da quantidade de mão-de-obra desempregada na zona rural. De acordo com informações oficiais do INCRA, em Pernambuco foram desapropriados 168 imóveis, que correspondem a uma área total de 144.623 hectares, assentando em torno de 10 mil famílias. Na Paraíba foram desapropriados 187 imóveis, que correspondem a uma área total de 188.771 hectares, assentando em torno também de 10 mil famílias. Ou seja, um número insignificante de assentados em face das elevadas demandas reais.

Soma-se a isso o fato de que esses Estados possuem o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), apurado pelo PNUD e pelo IPEA, em níveis bastante inferiores à média nacional de 0,757, que já muito baixa, colocando o Brasil na 73º colocação entre 173 países aferidos. Em Pernambuco, 116 municípios de um total de 184, e 91 municípios da Paraíba, de um total de 102, possuem o IDH inferior à 0,500, o que significa que estas cidades estariam classificadas entre os 20 países mais pobres do mundo. Miséria, injustiça e desigualdades extremas fazem com que nessa região haja um tensionamento nas relações no campo, provocando um quadro crítico de violências.

No Estado de Pernambuco a mais aguda das várias áreas de tensão se localiza na Usina Aliança, que demitiu mais de mil trabalhadores, sem pagar qualquer direito trabalhista, e lesando os trabalhadores em acordos viciados na Justiça do Trabalho, feitos com a participação consciente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aliança e com o patrocínio infiel de seu advogado. Paralisada desde o ano de 1996 e envolvida também em grandes dívidas fiscais e diante do Banco do Brasil, a Usina possuía, em 1998, um passivo superior aos 250 milhões de reais. Ou seja, o equivalente a um prédio e meio do TRT de São Paulo anonimamente subtraído na zona da mata pernambucana.

Os trabalhadores, lesados nos acordos trabalhistas, têm resistido na área desde 1996, lutando por justiça e por reforma agrária, com o apoio da CPT - Comissão Pastoral da Terra e do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Alguns deles foram assassinados por milícias privadas. Centenas de outros são ameaçados, agredidos ou vivem sob permanente coação. Atualmente, a desapropriação das terras improdutivas da Usina Aliança depende de uma decisão do Juiz da 7ª Vara Federal, revogando uma liminar que concedeu de modo precipitado e injusto, acolhendo provisoriamente os argumentos falaciosos dos proprietários falidos da empresa.

Acompanhando o processo na Justiça e no INCRA, bem como pressionando pela decisão judicial, as famílias sem terra da Usina Aliança seguem persistentes, fortalecendo o seu processo de organização e de resistência, porém em um estado crítico de miséria, sem alternativas de emprego ou de produção, já que qualquer tentativa de produzir, para fins de subsistência, é reprimida pela Justiça local, pelos proprietários, por seus prepostos, por animais atiçados sobre as roças e pela ação destrutiva de agrotóxicos pulverizados pelas milícias da empresa.

Há ainda em Pernambuco as práticas autoritárias tradicionalmente exercidas pelas usinas de cana-de-açúcar. A violência local já é inerente ao modelo secular de monocultura da cana e de controle da terra por menos de 20 famílias de usineiros latifundiários, características que retiram dos cidadãos quaisquer oportunidades de uma vida digna e alternativas de geração de renda e emprego. Vários casos de coações e torturas podem ser narrados pelos moradores dos engenhos e fazendas nessa região, sendo alguns casos bastante emblemáticos dos atentados aos mais elementares direitos da pessoa humana, como a destruição pela Usina Petribú, nos últimos anos, dos sítios de posseiros vintenários, sem qualquer indenização e para plantar mais cana. Alguns conseguiram permanecer no local por decisão judicial, mas são constantemente ameaçados pelos capangas da usina.

Conhecida no Estado pela sua truculência, no início desse ano, seguranças da Usina Petribú seqüestraram e torturaram, por mais de duas horas, dois adolescentes que, com fome, comiam frutas que estavam nas terras da usina. Graças às denúncias feitas por diversas entidades, a Usina Petribú teve suspenso o selo de empresa Amiga da Criança, concedido pela Fundação Abrinq. Foi proposta ação penal, em decorrência das pressões organizadas da sociedade, porém os responsáveis ainda não foram punidos.

Outra usina pernambucana notoriamente conhecida por sua brutalidade, a Usina Santa Teresa, do Grupo João Santos, durante a greve dos canavieiros em 1998, reuniu seus seguranças com policiais militares e reprimiram com tiros uma manifestação grevista, o que resultou na morte do trabalhador rural Luiz Carlos, baleado na nuca e em mais 13 agricultores feridos pelas costas. Enquanto a viúva cria os dois órfãos com extremas dificuldades em uma casa de 25 m2 o Capitão que comandou a operação é homenageado por comerciantes e pelos vereadores do Município de Goiana, e a ação penal instaurada ainda está na fase de pronúncia dos criminosos acusados.

Na Paraíba a violência tem se intensificado a partir das milícias privadas, com a conivência das polícias civis e militares e com o apoio de políticos e autoridades judiciárias locais, construindo-se um cenário de barbáries e abusos cometidos contra famílias sem terra.

Casos como da Fazenda Tanques, no município de Pilar, onde as 57 famílias de camponeses e de moradores foram expulsas pelo proprietário e mais 100 policiais, no ano de 1999, de maneira ilegal e violenta, sem qualquer determinação judicial. Não bastasse isso, capangas destruíram toda a lavoura dessas famílias, entraram nas casas, ameaçaram e espancaram várias pessoas. Apesar de tantas violações, sequer um inquérito policial havia sido instaurado.

A prática de violência nesta fazenda possui contornos doentios e bárbaros, a exemplo da violência inaceitável em que um grupo de capangas forçou um agricultor a andar com um rolo de arame farpado na cabeça. Até hoje nem as agressões, nem as ameaças, foram apuradas, apesar das denúncias feitas ao Ouvidor Agrário do INCRA, aos órgãos oficiais e às entidades internacionais. A omissão generalizada tem favorecido novas ações dos latifundiários. Atualmente, oito trabalhadores estão presos, desde o dia 23 de maio, e o trabalhador Almir Muniz da Silva, desaparecido desde julho do corrente ano, provavelmente assassinado, não podendo sua esposa sequer retirar certidão de óbito, nem exercer o direito de recorrer à previdência oficial para buscar meios mínimos de sustentação, em face da perda do companheiro.

Outro imóvel no qual são comuns essas arbitrariedades é a Fazenda Antas, no município de Sobrado, local marcado pela atuação violenta da Polícia Militar, sob o comando do Sargento Carlos. Esse grupo de soldados tem cometido horrores contra as famílias de agricultores, destruindo as plantações, colocando óleo queimado na fonte de água que abastece a região, torturando e atirando em trabalhadores rurais. Evidentemente, a Polícia, que abriga esses criminosos, não demonstra o menor interesse de cumprir os deveres de apurar e punir esses crimes selvagens. O resultado dessa impunidade crônica foi o assassinato de uma das lideranças da comunidade, o trabalhador Sandoval Alves de Lima.

Essas mesmas práticas odiosas da Polícia Militar e Civil paraibanas, juntamente com as milícias dos latifundiários e das poderosas famílias da velha e da nova aristocracia rural, são repetidas nas Fazendas Jardim, São José, Mendonça, Santa Emília, Santa Luzia, Tambauzinho e Quirino. Locais onde os relatos das agressões são assustadores pela crueldade e pela ousadia, como a prisão de sete pessoas por capangas da Fazenda Quirino, entre elas o professor de economia da UFPB, Sr. Fernando Garcia, e um casal de idosos que assistiam à missa rezada na propriedade com a participação de sindicalistas e assentados. Nem as crianças foram preservadas deste clima de terror “oferecido” por capangas e policiais como aconteceu na área em conflito da Fazenda Jardim, município de Jacaraú, quando pistoleiros apontaram armas e ameaçaram de morte crianças que iam buscar água para suas famílias. O trauma tirou das crianças a liberdade de andar e brincar livremente.

Desse modo, como resultado direto desses oito anos de omissões, de insensibilidades e de equívocos do Governo Fernando Henrique, esses dois Estados nordestinos se encontram, atualmente, em uma crise social ainda mais profunda, com agudas violações aos direitos civis, sociais, econômicos e culturais dos cidadãos que neles residem, particularmente os trabalhadores rurais sem terra.

O profundo desrespeito aos direitos humanos, representado pela ausência de políticas públicas eficazes, vem sendo agravado pela intensificação da violência no campo. Crise que se acentua, por uma irresponsável condução da política de reforma agrária, com mistificação na mídia e com a miragem do cadastramento nos correios.

Propagandas oficiais falsas e enganosas apontam o assentamento de 400 mil famílias, número que, ainda que fosse verdadeiro (e não é), não retira do Governo FHC a péssima marca histórica de promover a realização da maior reforma agrária negativa do mundo, tendo em vista que, no mesmo período, o IBGE e outras entidades oficiais trabalham com números conflitantes de êxodo rural entre 600 a 900 mil famílias que abandonaram os campos brasileiros, bem como indicando que mais de 900 mil pequenos estabelecimentos agrícolas foram extintos, reforçando a nossa grande concentração fundiária e a trajetória nociva do latifúndio no País

A era FHC, prestes a se encerrar e a assumir uma péssima colocação na história brasileira, tem sido uma época fomentadora de violência em Pernambuco e na Paraíba, multiplicando as injustiças e as “cidades de deus” pelo nosso sofrido Brasil afora.

Esta violência que se abate sobre as comunidades rurais e os grupos que lutam, tem como iníquo objetivo proibir os sonhos de cidadania dos agricultores e de uma pátria livre, soberana e justa para todos. É uma violência às vezes descarada e cruel, às vezes sutil e invisível, mas que sempre provoca graves efeitos e cicatrizes nos corpos e nas almas, através da mutilação social, cultural, humana e intelectual. Os severinos e as severinas do Nordeste, os sem terra e sem cidadania ainda tem dignidade e consciência para lutar e para sair, de uma vez por todas, das senzalas às quais continuam secularmente aprisionados.

Marluce Cavalcanti de Melo é assessora da Comissão Pastoral da Terra nos estados da Paraíba, do Rio Grande do Norte, de Alagoas e Pernambuco

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