Na Europa a legislação está cada vez
mais dura contra os transgênicos. O consumo destes produtos
não está proibido, mas a obrigação
de rotular inclusive as rações animais contendo
ingredientes transgênicos levará à quase
total recusa de importações contaminadas, tal
a reação dos consumidores a estes produtos.
CAMPANHA
POR UM BRASIL LIVRE DE TRANSGÊNICOS:
BALANÇO
E PERSPECTIVAS
Jean
Marc von der Weid
A
introdução dos transgênicos no Brasil
foi bastante retardada se comparada com todos os outros países
com peso na produção e exportação
agrícolas. Apenas em 1998 foi aprovada a primeira liberação
para uso comercial pela Comissão Técnica Nacional
de Biossegurança (CTNBio), vinculada ao Ministério
da Ciência e Tecnologia.
Este
atraso deveu-se à demora da aprovação
no Brasil de uma legislação sobre patentes que
desse garantias às empresas multinacionais. A lei de
Patentes só foi aprovada em 1995, após 5 anos
de luta política no Congresso. A CTNBio, por sua vez,
só foi criada em 1996, por medida provisória
presidencial que regulamentava os procedimentos para liberar
os transgênicos.
A
liberação comercial da soja Roundup Ready (RR),
resistente ao herbicida Roundup, ambos de patente da Monsanto,
foi a primeira decisão sobre o tema da CTNBio e provocou
a imediata reação do Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor (IDEC) e do Greenpeace Brasil. Estas
ONGs entraram na justiça contestando o ato da CTNBio
e exigindo que se respeite a Constituição Federal
que pede EIA/RIMA (Estudo de Impacto Ambiental / Relatório
de Impacto no Meio Ambiente) para a liberação
no meio ambiente de organismos potencialmente poluidores.
A vitória desta ação em primeira instância
brecou toda a estratégia da Monsanto e outras multinacionais,
como a suíça Novartis.
Nem
as empresas nem o governo brasileiro esperavam este tipo de
reação. A CTNBio foi criada com uma composição
que garantia a ampla maioria a favor dos transgênicos
e não passava pela cabeça dos (ir)responsáveis
do governo federal que a legislação existente
contrariava seus desígnios ou que alguém pudesse
se dar conta disso.
O
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso juntou-se
à Monsanto para recorrer da decisão em primeira
instância em vez de fazer cumprir a lei. Quatro anos
já se passaram e a Monsanto nem qualquer outra empresa
procurou responder às exigências legais, preferindo
pressionar para que os tribunais reinterpretem a lei a seu
favor ou para que o congresso crie uma nova lei mais simpática
a elas.
Na
conjuntura internacional em que iniciou-se a reação
da sociedade civil brasileira, a luta contra os transgênicos
parecia fadada a uma rápida derrota. Na Europa ainda
eram tímidas as resistências dos consumidores
aos alimentos transgênicos e nos Estados Unidos e Argentina
eles pareciam um sucesso avassalador. Dominar o Brasil era
apenas, esperavam todos, uma questão de tempo e de
não muito tempo.
O
segundo gesto de resistência veio do governo do Rio
Grande do Sul, eleito em outubro de 1998 e que tomou posse
em janeiro de 1999. O governo petista de Olívio Dutra
foi suscetível às pressões das ONGs e
movimentos sociais que promoviam a agroecologia no estado
e decretou o Rio Grande do Sul território livre de
transgênicos.
A
posição gaúcha trouxe o tema para o debate
nacional e provocou um conjunto de ONGs a se reunirem em julho
daquele ano em Brasília para traçar os rumos
de uma Campanha nacional contra os transgênicos. Vinte
e cinco entidades participaram desta histórica reunião
e lançaram o manifesto Por Um Brasil Livre de
Transgênicos, primeiro passo de uma longa jornada.
A
Campanha traçou uma estratégia de luta que se
baseou em quatro frentes de ação:
-
Jurídica: acompanhar a ação de IDEC e
Greenpeace nos tribunais.
-
Parlamentar: pressionar os partidos de oposição,
minoritários, para obstruir qualquer votação
na Câmara a favor dos transgênicos e lutar, nos
estados e municípios, por legislações
do tipo da gaúcha, exigindo uma moratória para
os transgênicos.
-
No executivo federal: pressionar o CONAMA (Conselho Nacional
do Meio Ambiente/Ministério do Meio Ambiente) para
definir regras sérias de estudo de impacto ambiental
dos transgênicos; pressionar a Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (ANVISA) do Ministério
da Saúde para fiscalizar a comercialização
de produtos contaminados no país; pressionar o Departamento
de Proteção Vegetal do Ministério da
Agricultura para impedir o cultivo ilegal de transgênicos.
-
Junto à opinião pública: divulgar sistematicamente
informações sobre transgênicos, visando
informar diferentes setores da população.
A
Campanha, coordenada por IDEC, Greenpeace Brasil, Assessoria
e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA),
ActionAid Brasil, Instituto de Estudos Sócio Econômicos
(INESC), FASE Solidariedade e Educação
e Centro de Pesquisa e Assessoria (ESPLAR), conseguiu resultados
surpreendentes nestes três anos de atividade.
O
boletim eletrônico mantido pela AS-PTA circula semanalmente
informações críticas sobre transgênicos.
A entidade também elaborou dossiês de apoio a
entidades em todo o país engajadas na resistência
às multinacionais. Estes documentos, chamados de Argumentários,
sintetizam dados obtidos em fontes de todo o mundo e no próprio
país. Por outro lado, a AS-PTA elaborou dois jornais
de informação sobre transgênicos para
agricultores que foram distribuídos em mais de 300
mil exemplares por entidades do movimento sindical de trabalhadores
rurais, movimento dos sem terra e inúmeras entidades
de base.
A
cartilha para consumidores produzida pelo IDEC também
foi distribuída (mais de 100 mil exemplares) em todo
o país. Cartões postais produzidos pelo Greenpeace
e dirigidos à empresas cujos produtos continham transgênicos
também foram amplamente, resultando em fortes pressões
sobre as mesmas.
Membros
da Campanha ou voluntários mobilizados por ela participaram
de centenas de debates e atos públicos em todo o país
enfrentando a máquina publicitária das empresas
e o rolo compressor do governo, em particular os técnicos
da EMBRAPA.
Pouco
a pouco o tema dos transgênicos foi incorporado nas
agendas dos movimentos sociais como o Grito da Terra,
coordenado pela CONTAG. O MST, em particular, teve um forte
papel de denúncia, inclusive com queima de campos experimentais
junto com o ativista francês José Bové.
Esta
intensa atividade de informação, vigilância
e denúncia apoiou-se em exames laboratoriais de produtos
vendidos à população por grandes empresas.
IDEC e Greenpeace especializaram-se nesta linha de ação
e obrigaram várias empresas a assumir compromissos
públicos de não utilizar produtos contaminados
nas suas marcas.
A
luta das ONGs contou com a colaboração de entidades
ambientalistas representadas no CONAMA e isto resultou numa
vitória na definição das regras que regulamentam
os estudos de impacto ambiental.
A
pressão sobre o governo foi menos eficiente. Apenas
o Ministério do Meio Ambiente manteve uma posição
de respeito às leis vigentes e, embora se curvasse
por vezes às pressões da presidência da
República, sempre acabou por manter a defesa da atribuição
do IBAMA na definição da exigência de
estudos de impacto ambiental, peça-chave de toda a
luta contra a CTNBio, que se arrogava o direito de decidir
se tais estudos eram ou não necessários.
As
pressões sobre a ANVISA nunca resultaram em qualquer
ação deste organismo, cujo responsável
chegou a dizer aos representantes do IDEC e Greenpeace que
não ia meter a mão em cumbuca. O
mesmo se deu em relação à Defesa Vegetal,
que nada fez frente aos cultivos ilegais no Rio Grande do
Sul, deixando toda a responsabilidade nas mãos do governo
estadual. A polícia federal também não
cumpriu o seu papel de coibir o contrabando de sementes transgênicas
da Argentina, resultando esta dupla omissão na ampla
contaminação dos cultivos de soja naquele estado.
A
mobilização por legislações estaduais
resultou em quatro leis proibindo os transgênicos, nos
estados de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Pará
e Rio de Janeiro. É interessante notar que os governos
destes estados estão nas mãos de partidos muito
diferentes: PPB, PSDB e PT. No Rio Grande do Sul a Assembléia
Legislativa derrubou o decreto do governador, enquanto em
Minas Gerais o governador Itamar Franco vetou uma legislação
anti-transgênicos votada pela Assembléia mineira.
A
Campanha teve um grande sucesso no estado do Paraná,
tanto nas mobilizações dos agricultores familiares
(Romaria da Terra, Romaria dos Jovens), que envolveram dezenas
de milhares de pessoas, como no esforço das organizações
de grandes produtores, como a FAEP (Federação
da Agricultura do Estado do Paraná), e dos médios,
como a OCEPAR (Sindicato e Organização das Cooperativas
do Estado do Paraná), visando impedir os cultivos ilegais
no estado. A pressão resultou em um empenho do governo
estadual, do PFL, vigiando cultivos e inclusive a circulação
de sementes vindas do RS. O envolvimento destas últimas
entidades deveu-se à compreensão (tardia mas
não demasiado) de que suas exportações
de soja para a Europa perigavam de ser prejudicadas pela contaminação
dos cultivos ilegais.
A
situação da Campanha, atualmente, é arriscada.
No Tribunal Regional Federal de Brasília, onde se encontra
o recurso da Monsanto e do governo federal contra a ação
do IDEC e Greenpeace, o primeiro voto foi a favor da liberação.
Este voto provocou estupor pela sua absurda parcialidade e
pela evidente influência da Monsanto na argumentação
da Juíza. Ainda está para ser esclarecido, entre
outras coisas, como foi que a Juíza teve acesso a documentos
internos da Campanha, claramente obtidos através de
rackers nos computadores de alguma das entidades da coordenação.
Mesmo
que os outros dois votos acompanhem o da relatora, a Campanha
já identificou muitos procedimentos jurídicos
que permitem embargar a liberação por bastante
tempo. Assim, a alegria dos representantes da Monsanto no
julgamento vai terminar em desaponto, pelo menos por mais
algum tempo.
Na
Câmara de Deputados o perigo é maior, sobretudo
neste período até o final desta legislatura.
Os partidos de oposição terão grande
responsabilidade para impedir a votação do Projeto
de Lei do deputado Confúcio Moura, de Rondônia,
amplamente favorável aos pleitos da Monsanto. Após
as eleições os deputados são bem menos
suscetíveis a pressões da sociedade civil pois
ou já se reelegeram ou já estarão fora
da próxima legislatura.
A
situação mais perigosa, entretanto, está
no Rio Grande do Sul onde a omissão do governo federal
e a capitulação do governo estadual frente às
pressões da direita agrária gaúcha favoreceram
a ampla contaminação dos campos de soja. Os
agricultores gaúchos ainda não se deram conta
do risco que correm, tanto de ter suas culturas erradicadas
ou, sobretudo, de não poderem vender seus produtos
dentro e fora do país.
Na
Europa a legislação está cada vez mais
dura contra os transgênicos. O consumo destes produtos
não está proibido, mas a obrigação
de rotular inclusive as rações animais contendo
ingredientes transgênicos levará à quase
total recusa de importações contaminadas, tal
a reação dos consumidores a estes produtos.
No
Brasil, mantida a legislação atual, a vigilância
da Campanha sobre produtos contaminados vai obrigar as empresas
compradoras de soja a exigir certificação dos
produtores sob ameaça de denúncia ao ministério
público. A continuar a presente contaminação
dos campos de soja muitos agricultores serão prejudicados,
infelizmente.
O
comportamento do governo brasileiro nestes três anos
de Campanha foi difícil de explicar, a não ser
que subserviência aos interesses das multinacionais
faça parte de alguma agenda oculta de negociação
com o governo americano, em troca sabe-se lá do que.
Que
os Ministros e o Presidente estejam convencidos de que os
transgênicos são seguros é uma demonstração
de ignorância, mas pode-se compreender. O que não
se entende é a cegueira aos interesses comerciais brasileiros,
claramente favorecidos pela resistência aos transgênicos
no Brasil e na Europa. Nossas exportações de
soja cresceram em 50% no vácuo criado pela contaminação
da soja americana e pela recusa dos consumidores europeus
a comprar estes produtos. Por que matar a galinha dos
ovos de ouro liberando os transgênicos e competindo
com os americanos de igual para igual? Só temos a perder
com isto, mas o óbvio não parece afetar os nossos
dirigentes.
A
cumplicidade do governo com a Monsanto foi ao ponto de liberar
recursos do FINOR para a implantação da fábrica
do herbicida glifosato em Camaçari, na Bahia. Perto
de 300 milhões de reais, quase a totalidade das disponibilidades
do FINOR para o ano 2000 foram praticamente doados à
Monsanto. Por outro lado, a EMBRAPA já assinou um convênio
de pesquisa de transgênicos com a mesma multinacional,
comprometendo inclusive o patrimônio genético
nacional, já que a patente sobre os produtos finais
será compartido com esta empresa.
O
governo, na pessoa do Ministro da Agricultura, envolveu-se
inclusive em uma escusa operação de valorização
das ações da Monsanto nas bolsas americanas.
Em julho de 2001 o Ministro fez uma curiosa afirmação
anunciando a liberação da soja RR da Monsanto
para a semana seguinte. A Campanha ficou intrigada pois nada
permitia supor que isto era possível. A prontidão
da Campanha durou umas duas semanas, mas nada aconteceu. Soube-se
depois que a única utilidade da declaração
foi a sua publicação no relatório semestral
de empresa que gerou no mercado a expectativa de que o último
dos grandes dominós da geopolítica dos
transgênicos, o Brasil, ia cair.
A
Campanha tem grandes expectativas no próximo governo.
Enquanto escrevemos aumentam as perspectivas de uma vitória
de Lula nas eleições para presidente da República.
No programa do PT está claramente escrito que os transgênicos
não devem ser liberados. Entre os apoios de segundo
turno de Lula, entretanto, não há esta unanimidade.
O programa do PSB é explicitamente contra os transgênicos
mas o de Ciro, não. O PDT é contra, mas o PPS
e o PTB são a favor. Sarney Filho, do PFL, é
contra mas qual a posição dos aliados dissidentes
do PMDB?
Mesmo
dentro do PT não há unanimidade nesta questão,
com importantes conselheiros de Lula tendo posições
favoráveis. Os Movimentos Sociais, os ambientalistas
e a Campanha não podem relaxar. A posição
anti transgênicos do Brasil é fundamental para
uma possível derrota das empresas multinacionais da
transgenia no plano mundial. Cresce a resistência na
Europa e na Ásia e, inclusive, nos Estados Unidos.
As ações das empresas dão um monumental
prejuízo no momento e várias já se livraram
da sua divisão de agribusiness por este motivo.
Se
triunfarmos será a repetição de um feito
bíblico histórico; o Davi da sociedade civil
vencendo o Golias das multinacionais.
Jean
Marc von der Weid é Coordenador do Programa de Políticas
Públicas da AS-PTA. Membro da coordenação
da Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos.
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