Somente no ano de 2001, foram resgatados 1.600 trabalhadores
da escravidão. Isso representa quase três vezes
os números dos anos de 1999 e 2000, e 6 a 8 vezes mais
que em cada um dos quatro anos anteriores. As estimativas
para 2002 confirmam essa tendência: de janeiro a setembro
deste ano foram cerca de 2.200 trabalhadores resgatados.
Vidas
Roubadas[i] : trabalho escravo no Brasil de hoje
Fr.
Xavier Plassat, op
Inspirando-me
do grande jurista e ativista dominicano Bartolomeu de Las
Casas, que, vindo de longe por ter sido ele mesmo dono de
escravos por algum tempo, tornou-se um dos primeiros a colocar
sua arte e sua indignação a serviço do
combate à escravização dos índios
nas Américas, quero repetir essas palavras fundadoras
do direito de todos os tempos: Todos os direitos para todos.
O Direito só existe se for efetivamente de todos e
para todos. Quero também expressar a nossa indignação
frente ao dramático alastramento do trabalho escravo
no Brasil de hoje e à insuportável lentidão
e timidez com que o problema vem sendo encarado pelas autoridades.
Indignação
Como
não sentir indignação na pele quando,
como ocorreu entre 15 de junho e 15 de agosto passado nas
pequenas cidades de Ananás e Angico, norte do Tocantins,
foram devolvidos às famílias, um atrás
do outro, 6 cadáveres de trabalhadores mortos, em 8
semanas assassinados? em empreitas irregulares
no sul do Pará: dois na fazenda 3J de Joaquim do
Tato; quatro na fazenda Pista 1 de Aldemir Lima Nunes
Branquinho, ambas no município de São
Félix do Xingu-PA e somando mais de 500 alqueires de
derrubada; da mesma fazenda Pista 1, um quinto morto, sem
nome, foi logo sepultado pelo gato em Tucumã. Vidas
roubadas aos 20 anos (Carlos Dias), 32 anos (Cícero
Pereira da Silva) ou 47 anos (Jorge Bispo), vidas e mortes
sem nem identidade para outros 3... E, ao completar três
meses das primeiras mortes, como não ser tomado por
um sentimento de revolta e impotência: ainda não
houve nenhuma ação, quer judicial quer fiscal,
para apurar tais fatos. Falta de recursos. Falta de vontade?
Indignação:
como contê-la, ao colher diariamente, como o fazem nossas
equipes da CPT, principalmente em Marabá, Xinguara,
Tucumã, Araguaína os depoimentos dos mais de
75 casos já registrados desde janeiro passado, histórias
de humilhação, abuso, matança, apartheid
silencioso em nosso meio? História de coragem e dignidade
de quem assumiu de tentar fugir para ir pedir socorro, enfrentando
pistolagem, sede e fome.
Indignação:
como calá-la ao rever a história repetida ao
longo das décadas, alternando denegação
da realidade pelas mais altas autoridades do país e
promessas de drástico rigor, para inglês ver;
Justiça discutindo competência enquanto infratores
prosperam impunes e vítimas desamparadas; parlamentares
acobertando com tranqüilidade fatos criminosos, até
em suas próprias fazendas, articulando conivências
em todos os níveis da cadeia da escravidão;
contradições e desandos de governantes que um
dia reduzem multas trabalhistas, outro dia assinam acordo
de mansidão com o infrator, e no outro, ainda, por
obediência ao deus do superávit primário,
cortam cegamente verbas da fiscalização? satisfecit
de nossos embaixadores em Genebra ou Washington ao apresentar
alguns remedinhos para OIT ver, enquanto prolifera o escravismo
moderno, alimentado pela intocada impunidade.
Indignação:
contra o crime do trabalho escravo, em si, em nome das vítimas;
indignação contra a lentidão dessa nossa
sociedade a superar desafios há muito tempo identificados.
Escravidão
moderna: um sistema perfeitamente integrado
Quem
diria que, passados 114 anos da oficial emancipação
dos escravos na terra da Santa Cruz, a escravidão no
Brasil voltaria a fazer manchete em magazines nacionais e,
olha lá, em jornais internacionais. New York Times,
25 de Março de 2002: Exportações mais
prezadas do Brasil assentam-se em trabalho escravo e devastação.
Não passa um mês sem que o Jornal Nacional nos
exponha os rostos famintos e adoentados de trabalhadores retirados
de remotas áreas de pasto ou de derrubada do Pará,
Mato Grosso ou Maranhão, por Políciais Federais
e Fiscais do Trabalho. Não se trata de grupos pequenos
ou de casos individuais: é habitual ver times de 30,
50 e até 150 homens, sempre com a mesma patética
história de miséria, enganação,
superexploração, chantagem da dívida,
violência, mortes, gatos, pensões, servidão
branca. Por trás dessas imagens esporádicas,
destinadas a comover o público sem remover a situação,
existe uma sistemática hoje muito bem identificada,
um sistema perfeitamente integrado onde cada peça tem
seu papel definido, tendo por condições básicas
de sua permanência a ganância e o lucro a qualquer
custo, as vistas grossas das autoridades, a impunidade total
de seus operadores, o silêncio constrangido da sociedade.
Dois
terços dos trabalhadores brasileiros encontrados em
situação de trabalho escravo no Pará,
Maranhão e Mato Grosso são do Nordeste, principalmente
Piauí, Maranhão, Ceará. Não é
por acaso. Na falta total de alternativas de sobrevivência
nos seus locais de origem, esses trabalhadores constituem
uma presa ideal para recrutadores, empreiteiros espertos apelidados
de gatos. Com carro de som, andam com promessas chamativas
pelas ruas dos povoados e cidades do interior, juntando carradas
de gente para hipotéticos Eldorados amazônicos
e, nas periferias das cidades maiores, compram literalmente
as dívidas acumuladas nas pensões por
peões de muitas viagens (os chamados peões do
trecho), para levá-los a mil, dois mil quilômetros
dali, em condições piores que as da boiada.
Já
estão presos, embora não o saibam ainda
Seu
contrato de empreita (que nada tem de contrato:
não tem escrita nem consentimento livre ou informado)
já nasceu sob o sinal da dívida: dívida
do abono inicial generosamente proposto pelo gato, dívida
da pensão paga diretamente ao dono da mesma, dívida
do transporte e da calculada alcoolização de
praxe durante a viagem, dívida das ferramentas, botinas,
remédios e, no sistema auto-qualificado de cativo,
da própria comida, adquiridos no barracão ou
na cantina do gato a preços exorbitantes. Essas dívidas
serão no momento oportuno descontadas de qualquer valor
a receber pelo trabalho fornecido, mantendo o saldo do peão
inexoravelmente negativo. A chantagem da dívida
a pagar servirá como corrente eficaz para manter
subjugado o trabalhador, impedindo-lhe o direito de sair do
serviço enquanto não zerar o saldo negativo
acumulado. Além de pagar para trabalhar, está
preso: se não bastasse a força do seu código
de honra (devo, portanto fico trabalhando)
código profundamente arraigado na cultura pioneira
guardas e pistoleiros saberão convencê-lo
do seu melhor interesse, sem falar do confinamento que o mantém
recluído num cantinho da Amazônia que sequer
ele conhece ou localiza (e ao qual o único acesso,
às vezes, depende de barco ou avionete). A fuga de
raros heróis, conseguida a preço de sangue e
marchas sem fim para escapar do terror, é até
hoje o único o único! recurso
possível para que seja desvendada uma parte deste icebergue
monstruoso.
Promessa
enganosa (aliciamento), dívida crescente
e impagável, trabalho forçado, coação
psicológica ou física, violência e ameaças,
impedimento de sair, superexploração... estes
são os ingredientes da chamada escravidão branca,
praticada hoje em grande escala principalmente nos serviços
de desmatamento (geralmente ilegal), abertura e manutenção
de pastos, nos confins do Pará e Mato Grosso, bem como
no Maranhão e, esporadicamente Tocantins; no Acre e
Amazonas, também, mas numa proporção
largamente desconhecida. A corrente vai do fazendeiro
geralmente desconhecido dos trabalhadores até
a dona da pensão, do boteco ou do caminhão,
passando pelos gatos e sub-gatos, o gerente e os vigilanças
da fazenda. Envolve a cumplicidade de muitos: a polícia
civil ou militar que, mediante propinas adequadas, aceita
fechar os olhos quando, nas estradas secundárias, passam
transportes obviamente irregulares; funcionários regionais
do trabalho ou do meio ambiente cuja indicação
ou emprego, com freqüência, depende da extensiva
compreensão que possam manifestar para com os interesses
das oligarquias de plantão[ii].
Números:
como medir um icebergue?
Os
números estão aí, assustadores para um
país cujas autoridades, até 1995, rejeitavam,
indignadas, qualquer uma das acusações já
repetidamente levantadas pela CPT - a partir do histórico
grito proferido por Dom Pedro Casaldáliga, em 1971[iii]
- em fóruns nacionais ou internacionais (denúncias
na OIT, na Comissão de Direitos Humanos da ONU e na
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA):
1.600 trabalhadores oficialmente resgatados da escravidão,
somente no ano de 2001[iv], quase 3 vezes os números
dos anos 1999 (639) e 2000 (583) e 6 a 8 vezes mais que em
cada um dos 4 anos anteriores. As estimativas provisórias
para 2002 confirmam e amplificam essa tendência já
de crescimento explosivo: de janeiro a setembro de 2002,cerca
de 2.200 trabalhadores resgatados... Para cada pessoa resgatada
pelos fiscais do trabalho, o Ministério calcula que
ficam outras 3 na servidão branca. Coeficiente bastante
questionável: por que não 5 ou 15 ou 30 como
leva a supor a freqüência dos transportes de peões
observados na região ou a importância numérica
das derrubadas registradas. Com base nessa última,
estima-se em mais de 15 mil o número de trabalhadores
possivelmente explorados neste sistema, no pique das empreitadas
do sul e sudeste do Pará (região de Marabá,
Xinguara, São Félix do Xingu). Numa tentativa
de auto-euforização, há quem avalia que
os números-recorde de 2001 e 2002 possam refletir
quem sabe? o avanço e a eficiência da
fiscalização... Redondo engano! Basta observar
os casos registrados e analisados pela CPT, no Pará,
para se certificar de que o aumento dos resgates traduz de
fato uma efetiva e problemática multiplicação
do uso criminoso da mão de obra escrava. Em primeiro
lugar, chegou a seis (um quarto do total), no final de 2001,
o número de casos denunciados às autoridades,
mas ainda carentes de fiscalização, por falta
de disponibilidade ou de recursos ou de meios de acesso. Das
24 fazendas denunciadas em 2001, somando 1287 trabalhadores
(entre eles, 272 ainda não resgatados no final do ano),
7 são reincidentes, e não por leve recaída
no crime. A média dessas 7 fazendas é de 4,9
reincidências, levando o recorde a fazenda Forkilha,
em Santa Maria das Barreiras, de propriedade de Jairo Andrade,
com nove citações nos últimos anos! Mais
que o conhecido grupo Quagliato (150 mil cabeças de
gado, líder mundial na área de inseminação
artificial), já citado sete vezes entre 1988 e 2000,
um caso emblemático de impunidade, levado pela CPT
à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
da OEA. Ambos Jairo Andrade e Grupo Quagliato estão
de novo liderando o ranking provisório apurado pela
CPT em 20/09/2002 a partir das denúncias dos primeiros
9 meses, registradas no Pará. Cada um deles é
de novo reincidente em 2002, desta vez em meio a um total
de casos assustadoramente dilatado (77 fazendas denunciadas
entre 1/1/02 e 20/09/02, envolvendo 3.180 trabalhadores, sendo
10 fazendas reincidentes com média de reincidência
de 4,2 vezes), e a um déficit de fiscalização
que chega a perto da metade das denúncias. Ou seja,
nessa data, uma em cada duas fazendas denunciadas ainda aguarda
fiscalização enquanto o prazo médio de
espera dos trabalhadores sob cativeiro está em cerca
de dois meses, prazo geralmente suficiente para garantir o
apagamento de qualquer evidência.
A
repressão ao trabalho escravo
Isto
nos leva ao bojo da questão: o governo federal tem
criado, a partir de 1995, uma exemplar ferramenta de fiscalização,
conhecida como Grupo Especial de Fiscalização
Móvel, o qual é citado como exemplo pela coragem
de seus integrantes (todos voluntários e escolhidos
fora do Estado sob fiscalização), pela isenção
de seu comando (embora periodicamente ameaçada por
inúmeras tentativas de interferência), pela qualidade
e complementaridade de sua composição (embora
ainda bastante teórica: falta efetiva participação
e integração com os fiscais do trabalho, por
parte da polícia federal, dos agentes ambientais, e
dos procuradores do MPF e do MPT[v] chamados também
a acompanhar as operações). Hoje fica evidente
que de nada serve a repressão pontual - o Grupo Móvel
só consegue colocar a campo um máximo de quatro
equipes - quando nenhuma sanção subseqüente
vem dissuadir os infratores de recomeçar. Ora, a lista
dos crimes impunes é impressionante. Os poucos fazendeiros
levados à condenação nos últimos
oito anos (2!) tiveram sua pena suspensa ou substituída
pela obrigação de entregar por algumas semanas
umas cestas básicas a pobres da vizinhança.
Apegada em jurisprudência ultrapassada do STF, a Justiça
Federal tem-se acostumado a declinar sua competência,
devolvendo para a Justiça comum casos prontos para
ser julgados e, em seguida, definitivamente sepultados. Quando
da criação do Grupo Móvel e do GERTRAF[vi],
o presidente Fernando Henrique Cardoso, recém eleito,
foi em rede nacional declarar a guerra ao crime, anunciando
penas exemplares, especialmente no plano econômico:
Quando
a denúncia é comprovada, muitos destes exploradores
pagam a multa cobrada pelo Ministério do Trabalho,
mas continuam com as irregularidades. A punição
da lei não basta. É preciso pegar esse pessoal
pelo bolso. É só no bolso que eles sentem. O
governo não vai mais conceder empréstimos, subsídios,
rolamento de dívidas a esses fazendeiros e empresários
inescrupulosos e nem deixar que eles participem de concorrências
públicas. [junho 1995]
Mais
uma vez, a impunidade do sistema brasileiro se torna o agente
principal da permanência e extensão do crime.
Não que faltem textos legais punindo criminalmente
os autores de aliciamento, tráfico de pessoas, transporte
ilegal, sujeição e cerceamento da liberdade
e redução à condição igual
à de escravo (cf Código Penal, art. 149, 203,
207). Falta, sim, sua efetiva aplicação. Faltam
ainda e apesar das promessas, efetivas sanções
econômicas: corte de financiamentos, confisco da terra
(diferente da desapropriação que, pelo superfaturamento
concedido vez ou outra, reverte em premiação
do felizardo desapropriado; cf o caso emblemático de
Luis Pires/Flor da Mata). Falta definir uma vez por todas
a exclusiva competência federal para esse tipo de crime.
Falta multiplicar os recursos e meios alocados ao Grupo Móvel:
quando a barata pulula, não bastam 4 latinhas de inseticida...
como diz, com bastante razão, referindo-se ao Brasil,
o Pr. Kevin Bales[vii]. Falta integrar efetivamente os vários
departamentos da esfera pública, competentes para conter
o crime: trabalho, polícia, justiça, ministério
público, meio ambiente, reforma agrária etc.
Falta enfim gerar alternativas de educação,
qualificação e trabalho que afastem das populações
mais empobrecidas esta única e desumana opção.
Preocupações
atualíssimas
1.
O alastramento do trabalho escravo é real
O
gráfico que construímos (cf anexo) a partir
dos resgates realizados pelo Grupo Móvel em todo o
país, de um lado, e das denúncias registradas
pela CPT do Pará, do outro lado, nos leva a uma avaliação
assustadora: em poucos momentos do período recente
houve tamanho recrudescimento de denúncias por escravidão.
Parece que voltamos aos tempos heróicos da abertura
da Amazônia contados por Ricardo Rezende em artigo publicado
no livro coletivo Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo
(Loyola/CPT, 1999). De 1973 a 1995, haviam sido denunciadas,
segundo J.S.Martins citado por Rezende, 431 fazendas somando
85 mil trabalhadores (média anual de 18 fazendas e
3.700 trabalhadores); de 1988 a 1996, as estatísticas
da CPT apresentam uma média anual de 22 fazendas e
11 mil trabalhadores envolvidos. Na época o número
integrava elevado contingente de trabalhadores de carvoarias,
número que tendeu a regredir a partir de 1996 com efeito
de felizes iniciativas, particularmente no Mato Grosso do
Sul. O pique foi 1986, com 26 fazendas denunciadas. A comparação
com os números deste ano de 2002 já citado é
de assustar (77 fazendas denunciadas só no Pará
3.180 trabalhadores , mais outros 10 a 15 casos
em Mato Grosso e Maranhão, sem contar os casos registrados
em RS (Vacaria), SC e SP; e sem falar ainda de tanto chão
que ainda desconhecemos na Amazônia). O que estaria
acontecendo? A maior eficácia do Grupo Móvel?
Infelizmente, não. O número citado é
de denúncias, apuradas ou não, documentadas
com depoimentos de foragidos, despejados ou desistentes da
empreita. As denúncias crescem mais que proporcionalmente
aos flagrantes realizados. Entre elas cresce o número
inclusive de fazendeiros de médio e pequeno porte.
Não se pode descartar, entre os peões, uma maior
incitação e garra para denunciar, como resultado
da badalada eficiência do GM. Existe uma explicação
mais crua a este fenômeno: há realmente, neste
momento, no Brasil, um crescimento da utilização
do trabalho escravo. Além da falta de opções
de emprego no campo, isso tem tudo a ver com a oportuna observação
do Relatório Global do Seguimento da Declaração
da OIT (Não ao Trabalho Forçado, 2001), par.
81: Apesar das medidas [recém promulgadas para
punir vários aspectos do trabalho degradante],muito
poucas pessoas que se servem do trabalho forçado têm
sido punidas... no ano de 1999 só se registrou a prisão
de 2 pessoas responsáveis por esse tipo de trabalho.
Embora o Governo tenha mencionado a necessidade de sanções
realmente severas, nada indica que isso esteja acontecendo.
A impunidade desfrutada pelos responsáveis, a lentidão
dos processos judiciais e a falta de coordenação
entre órgãos governamentais acabam favorecendo
os infratores [..] Além disso, nos poucos casos de
condenação dos responsáveis por esse
tipo de delito, trata-se, ao que parece, de intermediários
ou de pequenos proprietários, ao invés de donos
de grandes fazendas ou empresas. Discurso reforçado
pelas observações formuladas em 2002 pelo Comitê
dos Expertos da OIT em seu relatório, pp 108-112 da
versão inglesa: the activities of the labour inspectors
are not adequate in themselves to eradicate situations of
forced labour, if they are not supported by a prosecutory
and judicial system capable of imposing severe penalties on
those responsible... The praiseworthy action taken by the
Labour delegations, including inspection, has resulted in
the release of hundreds of enslaved workers, but has not led
to the conviction and punishment of those responsible.
Os
expertos sugerem que o Governo estude a possibilidade de unificar
a legislação, para que sanções
civis e penais possam ser pronunciadas com agilidade, e que
tais ações possam ser de iniciativa do MPT.
Ao lembrar as solicitações de informações
sobre ações penais em curso e condenações
pronunciadas, o Comitê nota que o Governo, no relatório
enviado à OIT, menciona um só processo atualmente
em andamento sob o artigo 149. E conclui: as informações
fornecidas pelo Governo não comprovam sua conformidade
com o disposto pelo Art.25 da Convenção 29,
ou seja, que a prática ilegal do trabalho forçado
será punida como delito penal. Espera, enfim,
que o Governo enviará em breve a cópia dos julgamentos
a ser pronunciados nos casos de Brasil Verde, Edionnes Bannach
e Forkilha.
2.
A fiscalização não dá conta
Os
números de casos denunciados crescem, mas não
a punição de quem for que seja. Em conseqüência,
o uso do trabalho escravo vem crescendo, por retro-alimentação.
Pior ainda: como neste exato momento a fiscalização
demonstra sinais de impotência, quer por falta de recurso
material e humano, quer por falta de apoio, quer por esgotamento,
cresce assustadoramente o número de denúncias
deixadas sem apuração, gerando dois tipos de
conseqüências:
Entre
os infratores, uma ousadia cada vez maior nas táticas
de enfrentamento à legalidade, utilizando-se de todos
os artifícios possíveis para dissimular o real
caráter da relação de trabalho. Por exemplo,
prendem carteiras sem assiná-las, salvo intrusão
da fiscalização. Largam trabalhadores no olho
da rua, negando-lhes qualquer direito. O sentimento que prevalece
entre eles é que o Estado é fraco, sua lei irreal,
seus fiscais impotentes. Multiplicam-se os casos de desafio
e até rebelião a fiscal, de intimidação
e até de perseguição judicial. Isso é
gravíssimo para a credibilidade da própria ação
pública.
Entre
as vítimas, um sentimento de abandono, de promessa
não assumida, de perda do compromisso: como poderia
ser diferente quando você, agente da CPT por suposto,
deve explicar ao mesmo fugitivo, a cada semana, durante quase
três meses seguidos, que o GM está chegando dentro
de poucos dias, que desta vez não deu, mas na próxima...
um sentimento de estarem sendo iludidos. Isso é gravíssimo
para a credibilidade do próprio Estado de direito.
Neste
momento (setembro de 2002), existe algo como 1.700 trabalhadores
em situação denunciada como de escravidão,
em cerca de 40 fazendas do Pará, aguardando fiscalização.
Em sua maioria, em casos denunciados há meses (média
atual de espera: em torno de 60 dias, ou seja, um prazo que
quase garante a perda das evidências inicialmente apontadas).
É tolerável? Não.
É
preciso não só manter como reforçar as
verbas atribuídas à fiscalização
móvel, descartando explicitamente a aplicação
do contingenciamento orçamentário a esse programa,
e revertendo o surpreendente parecer do Ministério
das Relações Exteriores (ABC), recusando as
ofertas do programa OIT-Brasil destinadas a reforçar
as ações do GM com verbas para diárias,
viagens, inclusive aluguel de helicóptero, e equipamentos
eletrônicos.
3.
Sem ação integrada, nenhuma repressão
eficaz
Como
já dito, a ação integrada é a
condição do sucesso. Há de se assustar
que seja tão difícil garantir essa integração,
enquanto, do lado do ilícito, todas as condições
são reunidas para justificá-la: raro é
o caso onde o crime de aliciamento e de redução
análoga à de escravo ande sozinho, desvinculado
de uma variedade impressionante de outros ilícitos,
como crime ambiental, homicídio, corrupção
e falsidade ideológica, tráfico de entorpecentes,
além das costumeiras transgressões trabalhistas
e previdenciárias. Não dá para entender
como continuam possíveis ações totalmente
isoladas onde um dia vai o IBAMA botar para correr o empreiteiro,
outro dia vai a Polícia Civil, Militar ou mesmo Federal
despejando na margem do rio dezenas de trabalhadores sem nem
onde ir como ocorreu um tempo atrás em São Félix
do Xingu (fazenda Cachoeirinha).
Não
é sempre, com razão, que o MPF tem se queixado
da precariedade das provas colhidas pela PF para sustentar
as denúncias; mesmo que o seja, por que não
tomaria a boa decisão de acompanhar fisicamente a fiscalização,
e assim contribuir in loco à produção
da verdade?
Há
meses e anos que ouvimos a mesma cantilena quanto à
disponibilização dos helicópteros tanto
do IBAMA quanto da Polícia Rodoviária Federal.
E hoje, ao se aproximarem as primeiras chuvas, e por falta
dos mesmos, corremos o risco de entrar num terceiro ano sem
fiscalização na pesada região do Iriri.
Ação integrada. A Comissão Especial que
nasceu no início de 2002 no âmbito do CDDPH preencheu
um certo buraco ao favorecer uma abordagem claramente interinstitucional
e resultou em avanços inegáveis, porém
ainda virtuais. Era de imaginar que nesse período o
GERTRAF fosse continuar seu trabalho. Ora, o mesmo não
mais se reuniu desde julho.
4.
Penas radicais e agilidade na punição: já!
O
resultado da Oficina de aperfeiçoamento legislativo,
promovida em junho passado pela OIT e Ministério da
Justiça, passou das expectativas ao produzir um conjunto
de propostas embasadas num amplo consenso e visando elementos
decisivos de uma política penal apropriada ao combate
ao trabalho escravo: competência federal, conceituação
ampla do trabalho escravo, pena de confisco de terra, essencialmente.
Por sua natureza, essas medidas terão seu ritmo de
senador até incorporar-se à legislação
vigente. Medidas de emergência, também consensuadas
nessa oportunidade, portanto, são indispensáveis
na presente conjuntura. Algumas delas são de fácil
acesso, se existir a vontade política: elevação
imediata das multas trabalhistas, sanções financeiras,
como cortes de financiamentos ou mesmo confisco de terra,
nem que seja a título conservatório.
Em
regime de urgência também é possível
como o apontou no final de 2002 a movimentação
perceptível no âmbito do TST melhorar
as condições de acesso da Justiça ao
local do crime e ao criminoso bem como das vítimas
à Justiça. Também deverão ser
definidas formas de garantir o sustento das vítimas
em espera de fiscalização ou de acerto: até
hoje, fora algumas iniciativas isoladas, como no caso recente
de uma Carvoaria em Mato Grosso do Sul (cestas básicas
do Estado, por solicitação do MPT presente na
ação fiscal) ou a disponibilidade de alguns
STR ou da própria CPT, não há nada previsto
pelo Poder público.
Consideramos
de grande interesse as iniciativas já assumidas pelo
MPT e/ou a Justiça trabalhista para facilitar o acesso
das vítimas à Justiça: Ação
Civil Pública e Ação Civil por Dano Moral
Coletivo, deslocamento da Vara até o justiciável,
ou para agilizar sua atuação (Coordenadoria
Nacional de Combate ao TE e Grupo Móvel do MPT).
Pena
que tenha sido necessário chegar à públicas
advertências e/ou condenações na mídia
internacional, na assembléia da Organização
Internacional do Trabalho, na Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (casos José P. e Quagliato); pena
que tenha sido necessário o Brasil incorrer em possíveis
retaliações comerciais não sempre
tão morais quanto se apresentam; pena que tenha sido
necessário pregar anos a fio sem retorno aparente,
como o fez a tempo e a contratempo a Comissão Pastoral
da Terra[viii], para ver hoje os três poderes abordarem
o problema com, aparentemente, mais preocupação.
Comissão Especial, Grupo de estudo, Seminários,
Propostas de Lei, discursos e promessas florescem.
Um
século e meio depois de fingir a mais absoluta determinação,
face aos primeiros ataques da pérfida Albião
contra os escravocratas brasileiros, de novo, será
só para inglês ver?
A
nossa expectativa está na altura da muralha que nos
resta derrubar: uma dívida social que vem se acumulando
há tempo demais, milhares de vidas roubadas que a comunidade
nacional e internacional hoje nos cobra com rigor e razão:
todos os direitos para todos!
Fr.
Xavier Plassat, op, é Coordenador da Campanha da CPT
contra o Trabalho Escravo
DESAFIOS
INADIÁVEIS DA LUTA CONTRA O TRABALHO ESCRAVO
1.
Garantir e ampliar drasticamente a ação do Grupo
Móvel. Contratar novos agentes fiscais (nenhum concurso
desde 1994). Proteger o GM de qualquer corte orçamentário.
2.
Integrar efetivamente seus componentes nas operações:
MPF e MPT, PF, Ibama etc.
3.
Levar efetivamente os culpados a julgamento e facilitar o
acesso à Justiça às vítimas, pondo
fim à total impunidade atual.
4.
Além das penas criminais, aplicar sanções
econômicas radicais e imediatas: corte de financiamentos
e confisco da terra. Aumentar imediatamente as multas trabalhistas
para R$2500,00 por infração.
5.
Determinar a competência federal para os casos de trabalho
escravo, com rito acelerado.
Anexo:
Gráficos
Casos
de trabalho escravos denunciados no Pará e casos fiscalizados
no Brasil
Ações
de fiscalização realizadas pelo Grupo Móvel
--------------------------------------------------------------------
[i]
Este é o título do livro publicado em 09/2002
sobre a escravidõ moderna na Amazônia.
Autora: Binka Le Breton Editora: Loyola/CPT.
[ii]
O exemplo, às vezes, vem de cima: o ex-ministro do
trabalho, Francisco Dornelles presidiu à promoção
de acordos de boa conduta com fazendeiros reincidentes (2000),
à tentativa afinal frustrada - de rebaixar as
multas trabalhistas aplicáveis na zona rural (2001),
ao discrédito jogado sobre seus subordinados no cumprimento
exemplar de sua perigosa missão de fiscais da lei,
no caso da fazenda do Deputado Inocêncio Oliveira, PFL-PE,
flagrada pelo GM com 50 escravos (2002).
[iii]
Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio
e a marginalização social, Prelazia de São
Félix do Araguaia, MT, outubro de 1971.
[iv]
Fonte: Secretaria de Inspeção do Trabalho, Ministério
do Trabalho e do Emprego. O número provisório
publicado é 1433; o provável, informado pela
SIT, é para lá de 1600.
[v]
Respectivamente: Ministério Público Federal
e Ministério Público Estadual.
[vi]
Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado
[vii]
autor de um livro de referência sobre o trabalho escravo
no mundo de hoje: Disposable People [povo descartável],
California University Press, 1999.
[viii]
Principal fonte das denúncias que possibilitam os resgates
registrados, a CPT é uma das poucas organizações
empenhadas no combate ao trabalho escravo. Há 5 anos
anima uma Campanha permanente contra o trabalho escravo, envolvendo
vários regionais, oferecendo informação
e orientação nas regiões de aliciamento
e apoio aos fugitivos bem como capacitação de
parceiros nas regiões de escravização.
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