PÁGINA PRINCIPAL
Pagina Principal

Relatórios


Em um ano de funcionamento do SOS – Tortura, a Central Nacional registrou 23.546 ligações, sendo que, desse total, 1.590 foram convertidas em alegações de tortura. O Estado de São Paulo é o maior responsável por recebimento de alegações, com 17,17% do total, seguido de Minas Gerais (11,70%) e Bahia (9,25%). O sistema registrou também que o principal agente agressor é o policial militar, que figura como sujeito do crime em 26,78% dos casos, seguido do policial civil, presente em 25,99% das alegações de tortura.

Breve balanço da Campanha Nacional de Combate
à Tortura – 2001-2002

Rosiana Queiroz*e Marilson Santana*      

O presente artigo pretende fazer um rápido balanço da Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura promovida pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos-MNDH desde o ano de 2001. Antes, limita-se a definir sumariamente tortura a partir do marco jurídico-normativo internacional e nacional, bem como elucidar os contornos políticos envolta dos quais a campanha se produziu. Por fim, mostra os últimos dados produzidos pelo SOS-Tortura e aponta alguns desafios.

Sumariamente, os quatro diplomas internacionais que consagram a proibição da prática de tortura podem ser identificados na Declaração Internacional dos Direitos do Homem (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), na Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis (1984), Desumanos ou Degradantes e na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985). Em linhas gerais, estes instrumentos normativos definiram o crime de tortura, com parâmetros ou recomendações no sentido de que os países signatários produzissem legislação que buscasse prevenção e punição de tal prática.

Em 6 de fevereiro de 1991, o governo brasileiro promulgou a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Finalmente, em abril de 1997, o país promulga a Lei 9.455 que define e tipifica a conduta delituosa da tortura.

Desse modo, tortura se configura como a conduta humana praticada com algumas finalidades específicas. Por isso, diversas são as práticas de tortura. É tortura constranger alguém, utilizando-se de violência e grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa (tortura-prova). Há tortura também quando a conduta provocar uma ação ou omissão de natureza criminosa (tortura com crime-meio) ou através de discriminação racial ou religiosa (tortura racial ou discriminatória) [1]. Por outro lado, prática de quem submete alguém, que está sob sua guarda, poder ou autoridade, a intenso sofrimento físico ou mental como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo é tortura-castigo. A lei aponta ainda uma outra hipótese de prática desse delito, consubstanciado no §1º do art.1º, que diz incorrer na mesma pena aquele que submeter pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. Essa prática pode ser classificada como tortura do encarcerado e pode ser evidenciada em atos como a privação de sol, jogo de luz, solitária, etc.[2] Há crime também quando se verifica omissão por parte de quem deveria apurá-lo e não toma as devidas providências contra a prática .

Diante disso, o Movimento Nacional de Direitos Humanos – MNDH, em seu encontro nacional realizado em 1998, definiu como uma das ações de seu planejamento estratégico a efetivação de uma Campanha Nacional Permanente Contra a Tortura e a Impunidade, tendo em vista que as entidades filiadas que atuam nesta área a apresentaram como uma problemática importante a ser enfrentada. A Campanha, dentre outras coisas, objetivou a necessidade de imprimir eficácia a Lei de Tortura dentro do sistema de justiça e segurança.

Nos anos posteriores à essa definição acima apontada – 1999 e 2000 – foram tomadas várias iniciativas para implementar a Campanha. Entre elas, destacamos a intervenção na esfera internacional, pois considerou-se que no âmbito interno não houve uma prática e uma política que visasse a promoção do combate à tortura a despeito de todo o aparato jurídico acima descrito. E a atuação do Movimento perante as Organizações das Nações Unidas (ONU) acabou por provocar a vinda do Relator Especial contra Tortura, o Sr. Nigel Rodley, que, após visitas a cinco capitais do país, produziu um relatório no qual apontou mais de 300 casos de tortura no país. Suas declarações foram contundentes quanto as práticas desse crime, mormente no que concerne aos estabelecimentos carcerários e delegacias.O relatório teve forte repercussão no Brasil e no exterior. Forçou o Governo brasileiro a apresentar tardiamente um relatório oficial sobre a prática de tortura no Brasil, tendo em vista que, por ter ratificado a convenção sobre tortura em 1989, sua obrigação era apresentar um primeiro relatório em 1990. Ou seja, o Brasil passou 10 anos para fazer um relatório sobre tortura e só o fez pressionado pela atuação da sociedade civil organizada.

Ainda em 2000, precisamente em novembro, após a vinda do Relator Especial, o MNDH participou, com outras organizações de Direitos Humanos, de um Seminário Nacional Contra a Tortura que contou com a efetiva presença dos três poderes: Executivo, Judiciário e Legislativo. Neste evento foi firmado um pacto nacional contra a tortura, mas que só teve desdobramentos depois de quase um ano de sua assinatura.

Em 2001, várias organizações da sociedade civil estiveram em Genebra, na Suíça, e apresentaram um contra-informe ao Comitê Anti-Tortura da ONU – CAT, buscando fazer um contraponto ao relatório oficial. A ocasião era a da reunião anual da Comissão de Direitos Humanos da ONU e o governo brasileiro teve que reconhecer oficialmente perante a comunidade internacional que a existência da prática de tortura no Brasil é uma realidade. Com base nos relatórios, o CAT emitiu suas conclusões e recomendações ao Governo brasileiro. Neste mesmo ano, o Governo Federal convocou o MNDH para discutir a instalação de um “disk tortura”. O Movimento, no entanto, como contraproposta ofertou um programa maior: a Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura, composta de uma central nacional que absorveria o “disk tortura” e de centrais estaduais. Inovou em relação aos outros sistemas do gênero com a proposição de criar Comitês Políticos nos âmbitos nacional e estadual, os que seriam responsáveis por pressionar as instituições públicas no andamento dos casos no âmbito do Sistema de Justiça e Segurança[3]. Este ponto da proposição foi para o MNDH o requisito básico para firmar a parceria, pois construir uma política publica nacional de justiça e segurança pública pautada nos direitos humanos é até hoje o objetivo maior da Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura. Durante a VI Conferência Nacional de Direitos Humanos (2001), o MNDH publicou sua posição política sobre a tortura na qual manifestava claramente uma agenda mínima para enfrentar a questão.

A Campanha Contra Tortura foi aprovada pelo Ministério da Justiça em julho de 2001 e teve início efetivamente em outubro do mesmo ano. Depois de oito meses, realizamos uma avaliação nacional e encaminhamos, com todas as Centrais e Comitês Estaduais, as bases para uma segunda fase em 2002[4].

A Campanha funciona com base nos dados que chegam para a Central Nacional, através do sistema SOS – Tortura, que recebe o relato do autor da alegação através do disque 0800 ou qualquer outro meio. Registra-se o caso e encaminha para a Central Estadual. Com base no Seminário de Avaliação da Campanha acima mencionado, ocorrido em junho de 2002, decidiu-se realizar um processo de retriagem das alegações constantes do sistema. Somente aquelas que contivessem todos os dados das vítimas, bem como tivessem no relato fato típico de tortura, seriam encaminhadas à Central Nacional.

Em um ano de funcionamento do SOS – Tortura, a Central Nacional registrou o número 23.546 ligações, sendo que, desse total, 1.590 foram convertidas em alegações de tortura. Em 54,12 % das ligações o telefone ficou mudo. O pedido de orientação e informação corresponde a 17,53% das alegações, 15,53% são registrados como trotes e 5,21% se convertem em alegações de tortura. Chama a atenção o número de ligações mudas, o que pode configurar no medo de denunciar por parte do autor da alegação.

O Estado de São Paulo é o maior responsável por recebimento de alegações com 17,17% do total, seguido de Minas Gerais (11,70%) e Bahia (9,25%). Os Estados de Sergipe (0,69%), Roraima (0,13%) e Amapá (0,06%) se situam como as Unidades Federativas com menores percentuais de ligações convertidas em alegações de tortura respectivamente.

O sistema registrou também que o principal agente agressor é o policial militar, que figura como sujeito do crime em 26,78% dos casos, seguido do policial civil, presente em 25,99% das alegações de tortura. A Polícia Federal aparece em último lugar, com 0,96% do total das alegações[5].

A principal vítima é adulta, referindo-se a 69,71% das alegações. Do total das 1.590, 875 registram pessoas do sexo masculino e 575 são pessoas do sexo feminino, não sendo informadas as demais. No que se refere a cor da pele, 31,92 % se identificam como de cor parda, 24,22% como de cor branca, 8,25% constam nos relatos como de cor negra, 1,36 % informam ser amarelo, contra 34,24% que não informam a cor.[6]

Vale dizer que a Campanha não tem se limitado ao registro e a formação de bancos de dados sobre o crime de tortura. A Central Nacional tem buscado também se transformar em um espaço de pesquisa e produção de reflexão sobre o fenômeno da tortura. Novos desafios se lançam.

A Campanha Nacional de Combate à Tortura é eficaz por trazer à luz aquilo que se pensou ficar no tempo da escuridão da inquisição, da escravidão e da ditadura.

--------------------------------------------------------------------

* Rosiana Queiroz é Coordenadora da Campanha Nacional Permanente de Combate àTortura e Coodenadora de Organização e Projetos do MNDH

* Marilson Santana é Supervisor da Campanha Nacional Pemanente de Combate à Tortura e cursa mestrado em Direito e Estado na Universidade de Brasília - UnB

[1] Lei 9455/97: art.1º, I, a, b,c d).

[2] Cf. Gomes, Luiz Flávio.Da Tortura : Aspectos Conceituais e normativos..In: Revista CEJ/Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários.n(1)Brasília: CEJ, 1997

[3] Considera-se Sistema de Justiça e Segurança para efeito desse artigo o conjunto de instituições jurídicas e políticas, na órbita do poderes públicos que atuam direta ou indiretamente com a demanda de segurança pública e direitos humanos.

[5] É preciso dizer que a delegacia e a residência são os principais locais de
ocorrência de crime.

[6] Esses dados carecem de uma avaliação qualitativa, mas pode-se afirmar que a assunção da cor parda , bem como a de não informado, pode indicar que a tortura está funcionando como mais um instrumento de discriminação racial, já que “cor parda” escamoteia a possibilidade do sujeito ser considerado negro

Voltar