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Relatórios


O quadro atual da saúde mental no país revela pouca mudança. Enfrentamos ainda a existência de cerca de 60 mil leitos. Destes, cerca de 80% pertencem a uma rede privada conveniada que consome quase meio bilhão de reais por ano dos recursos do SUS. Deste total, cerca de 20 mil leitos estão ocupados por pacientes-moradores. Este é o retrato mais perverso da psiquiatria. São pessoas completamente abandonadas pela família e pela sociedade, sem nenhuma perspectiva de vida e que representam, individualmente, em termos de custo ao Estado, cerca de R$ 1.000,00 por mês, repassados diretamente para estas instituições asilares.

Uma Luta Histórica : pela Transformação de uma Assistência Psiquiátrica Perversa e Desumana

Conselho Federal de Psicologia         

Historicamente, no Brasil, o tratamento oferecido aos ditos “loucos” teve como único recurso o hospital psiquiátrico. Este se constitui em um lugar de violência, morte, silenciamento, humilhação, segregação, desrespeito aos direitos humanos e exclusão social, correlatos diretos de um modelo que concebe o sofrimento mental como pura negatividade subjetiva e civil.

Num país marcado pela existência de graves injustiças sociais, que a condução política jamais ousa combater, chama a atenção o singular processo representado pela Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Neste processo, a situação injusta e desumana de milhares de portadores de sofrimento mental reclusos em hospitais psiquiátricos vem sendo objeto de um incisivo enfrentamento. Ao longo de mais de 20 anos, em um movimento que já possui lugar na história e firme presença no cenário nacional, conquistas importantes vêm sendo obtidas, no que diz respeito à garantia dos direitos e à oferta de cuidados aos portadores de sofrimento psíquico. Vários serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos (Núcleos de Atenção Psicossocial – NAPS, Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, Residências Terapêuticas, Cooperativas Sociais) em alguns municípios brasileiros já se fazem presentes em oposição à violência do manicômio. Aí tem lugar a experiência do respeito às diferenças, do afeto, da beleza e da criatividade, que resgatam para o portador de sofrimento mental uma melhor
qualidade de vida.

Acrescente-se a isto a intensa produção teórica e cultural nascida destas experiências, a participação dos usuários e familiares na defesa de seus direitos, além da instituição de um conjunto de dispositivos legais referentes à reestruturação psiquiátrica, dentre os quais destacamos a Lei federal nº 10.216, de 6 de abril de 2001, Lei da Reforma Psiquiátrica, que reafirma os direitos humanos e civis do portador de transtorno mental, regula as internações involuntárias e compulsórias e redireciona o modelo de atenção em saúde mental. Este projeto de lei tramitou durante 12 anos no Congresso Nacional e somente foi aprovado por força de um intensa mobilização social que, durante 11 anos, defendeu, de forma clara e objetiva, a substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos por uma rede de serviços articulada e aberta.

Ainda que os avanços se façam notar, não podemos deixar de registrar o quanto resta por fazer.

O quadro atual da saúde mental no país revela pouca mudança. Enfrentamos ainda a existência de cerca de 60 mil leitos. Destes, cerca de 80% pertencem a uma rede privada conveniada que consome quase meio bilhão de reais por ano dos recursos do SUS. Deste total, cerca de 20 mil leitos estão ocupados por pacientes-moradores. Este é o retrato mais perverso da psiquiatria. São pessoas completamente abandonadas pela família e pela sociedade, sem nenhuma perspectiva de vida e que representam, individualmente, em termos de custo ao Estado, cerca de R$ 1.000,00 por mês, repassados diretamente para estas instituições asilares. Esta realidade vem sendo alvo de denúncias sistemáticas e bem documentadas. As constantes violações aos direitos humanos, nas intuições psiquiátricas, vêm chegando ao conhecimento público.

No ano de 2000, a I Caravana Nacional de Direitos Humanos, realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados, em visita às instituições psiquiátricas, em sete estados brasileiros, apresentou uma amostra da realidade manicomial no país. Foram constatadas as mais graves práticas de violação aos direitos humanos dos internos nas instituições visitadas, dentre as quais destacamos pacientes presos e isolados em celas fortes, abandono, maus tratos, descuido, a prática de neurocirurgia (esteotaxia – cirurgia para modificar comportamento) e uso abusivo de eletroconvulsoterapia (eletrochoques). A partir destas constatações, foram encaminhadas ao Ministério da Saúde e às autoridades locais estaduais recomendações quanto à humanização na atenção psiquiátrica brasileira.

O livro “A Instituição Sinistra – mortes violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil”, publicado em 2001 pelo Conselho Federal de Psicologia e elaborado por entidades de direitos humanos ligados à luta antimanicomial, apresenta relatos de crimes ocorridos dentro dos muros dos hospitais psiquiátricos no país.

Ao todo, são sete casos contados por profissionais que convivem com a terrível realidade dessas instituições. São relatos de mortes ocorridas no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre (Rio Grande do Sul), no período de janeiro a junho de 2001. Narra ainda dezenas de mortes, como a de Davi Pereira da Silva, em 8 de agosto de 1999, vítima de um incêndio na Clínica Izabela, em Goiânia, que morreu carbonizado, amarrado, trancado em um quarto da clínica; a de Maria de Fátima Santos Domingues, no dia 24 de março de 2001, que faleceu depois de sofrer queimaduras durante internação no Hospital Municipal de Campo Limpo, capital paulista; de Lourdes Maria Viveiros Inácio, em 14 de abril de 1995, após ter sido submetida a uma eletroconvulsoterapia, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (MG); de Adailton dos Santos Arruda, no dia 25 de novembro de 1997, por asfixia no Hospital Juliano Moreira, em Salvador (Bahia). Um dos casos relata o desaparecimento de João Gomes Pereira, no dia 16 de novembro de 1992, do Centro Comunitário São Marcos, em Mauá, no estado de São Paulo, e outro da morte do usuário Damião Ximenes Lopes, ocorrida em 4 de outubro de 1999, de causa indeterminada, na Casa de Repouso Guararapes, em Sobral (Ceará).

O impacto da morte de Damião repercutiu em todo país, por meio de denúncia pública procedida pela mãe e pela irmã da vítima, senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes. Referindo-se à casa de repouso como uma casa de tortura, a irmã, em um documento intitulado “Clamo por Justiça” e encaminhado a vários órgãos governamentais, não-governamentais e autoridades, relata que, em 1º outubro de 1999, sexta-feira, seu irmão foi internado na Casa de Repouso Guararapes e que, na Segunda-feira, quando a mãe foi visitá-lo, encontrou-o quase morto. Ele havia sido impiedosamente espancado, estava com as roupas sujas e rasgadas, as mãos amarradas para trás e seu corpo coberto de sangue. A mãe pediu que lhe limpassem o sangue. Os atendentes lhe deram um banho, sem sequer desamarrar-lhe as mãos, deixando-o completamente nu. Neste interim, foi procurar o médico da clínica, que até aquele momento não havia lhe dado assistência. Aflita e chorando, fez reclamações ao médico, pedindo que atendesse Damião. Ele, grosseiramente, mandou-a calar a boca. Sem dar importância para os sentimentos da mãe, receitou um medicamento injetável, sem ao menos ver o paciente. A mãe saiu e foi até Damião. Este estava jogado ao lado de uma cama, nu e ainda com as mãos amarradas. Ela queria tocá-lo, porém o enfermeiro disse para não incomodá-lo, pois Damião iria dormir. A mãe voltou para casa, onde foi informada que haviam telefonado do hospital, chamando-a de volta com urgência. Seu filho havia morrido. O laudo emitido dizia que a causa mortis era parada respiratória. Além da morte de Damião, várias outras mortes aconteceram da mesma forma, ou seja, através de espancamentos e maus tratos, atestados em documentos.

Felizmente, foram realizadas auditorias, sindicâncias e várias ações que culminaram com o descredenciamento e fechamento da Casa de Repouso Guararapes, provocando a aplicação, na prática, de uma nova política de saúde mental, com a criação de serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico.

Recentemente, chegou à Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia uma denúncia que fez desencadear uma campanha pelo descredenciamento do SUS e fechamento imediato da Instituição Psiquiátrica denunciada.
Trata-se do Hospital Psiquiátrico Dr. Milton Marinho, localizado em Caicó, no interior do Rio Grande do Norte, mantido por uma Fundação Pública Municipal e credenciado junto ao SUS. Esta instituição, segundo o depoimento de várias testemunhas idôneas, vem sendo, desde a sua criação, em 1990, um antro desumano de horrores, violência e abandono contra os seus usuários, sendo que nos últimos anos ocorreram ali várias mortes violentas. Agora, em 17 de julho de 2002, foi encontrado morto, amarrado e queimado no leito do isolamento de uma cela forte o paciente Sandro Costa Fragoso. Os resultados da perícia realizada são de indícios de incêndio criminoso, apesar da apressada e absurda conclusão dos médicos da entidade, responsáveis pelo atestado de óbito, Drs. Salomão Gurgel e Milson Rabelo, que apontaram como causa mortis queimadura generalizada, asfixia e, pasmem, "suicídio"! Só resta explicar como é que um sujeito, amarrado no leito, sedado, trancado numa cela com portas gradeadas e com cadeado, põe fogo no colchão e fica deitado ali, esperando ser queimado pelas chamas.

Anteriormente, em 2000, nestas mesmas malditas celas fortes, proibidas expressamente pelas regras de credenciamento do SUS, já havia morrido um outro paciente, o Sr. José Martins, igualmente contido no leito, por ter passado oito dias sem hidratação e sem alimentos, de acordo com o depoimento da auxiliar de enfermagem Sra. Neusanete Costa, que, corajosamente, denunciou a negligência médica envolvida no caso e por isto foi demitida do emprego. Segundo ela, o Sr. José Martins foi morto porque era hábito do hospital manter internações desnecessárias apenas para garantir faturamento – essa informação foi confirmada por outros profissionais da casa, sob garantia de sigilo – e ele, ao se rebelar contra isso, foi sedado e amarrado, sem maiores cuidados, até morrer numa cela forte (minúsculo quarto gradeado com uma cama, que a desfaçatez dos responsáveis ousa chamar de apartamento individual). Em 1998, um outro paciente já havia morrido, agredido a pauladas no pátio do mesmo hospital (a família cedeu e autorizou a divulgação das fotos, mas não do seu nome).

Num relatório recente, o psiquiatra coordenador do CAPS local, mantido pela Prefeitura Municipal, Dr. Epitácio Andrade, aponta mais de uma dezena de irregularidades graves no funcionamento deste estabelecimento, com denúncias mais do que suficientes para determinar a interdição, descredenciamento e fechamento do mesmo por parte das autoridades responsáveis.

Inexplicavelmente, este estabelecimento ainda se mantém funcionado, maltratando e matando a sua clientela, pois, apesar de ser uma fundação pública, é “propriedade política” de um grupo de profissionais médicos, vinculados ao ex-deputado federal e atual suplente, o médico Dr. Salomão Gurgel Pinheiro (PDT/RN), que seria, oficiosamente, o responsável pela direção clínica do estabelecimento. O curioso é que, num documento, ele afirma que apenas trabalha no estabelecimento, como voluntário, sem vínculos empregatícios, por 11 anos, ainda que na cidade todos saibam que ele responde pelo serviço de psiquiatria do hospital.

Apesar de já ter sido denunciado oficialmente pelo promotor local, Dr. Juvino Pereira, até o presente momento ninguém foi responsabilizado ou punido criminalmente. Segundo o advogado da família de José Martins, Dr. Canindé de França, o psiquiatra Dr. Salomão Gurgel é réu no inquérito de homicídio culposo que apura responsabilidades neste caso. No entanto, relata que o inquérito ficou paralisado pelo fato do referido médico ter assumido o mandato de deputado federal na vaga de suplente, beneficiando-se da imunidade parlamentar.

Diante da gravidade dos fatos ocorridos nesta sinistra instituição, as Comissões de Direitos Humanos dos Conselhos de Psicologia, após participarem, através de representação, da audiência pública realizada em 21 de agosto naquela localidade, convidados pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte, assumem a "Campanha pela imediata intervenção naquele estabelecimento com vistas ao seu fechamento". Exigem dos gestores federais, estaduais e municipais do SUS que sejam adotadas providências imediatas com o afastamento de todos os envolvidos nas denúncias. Que todos os responsáveis pelas violações dos direitos humanos neste estabelecimento sejam responsabilizados e punidos.

É preciso fazer cessar as condições de produção desta violência institucional, evidenciando para os seus responsáveis que o fato de serem praticadas numa longínqua cidade do sertão nordestino não lhes dará garantia de impunidade.

Vale ressaltar que desde a instituição da Portaria/SNAS nº 224, de 29 de janeiro de 1992, que regulamenta o funcionamento de todos os serviços de saúde mental, e da Portaria/SAS Nº 88, de 21 de julho de 1993, que cria o Grupo de Avaliação Psiquiátrica (GAP), passa-se a realizar vistorias em instituições psiquiátricas que vinham se mantendo impunes.

Recentemente, foi instituída a Portaria/GM nº 251, de 31 de janeiro de 2002, que retoma o processo de avaliação e supervisão da rede hospitalar especializada. Ela institui o Programa de Avaliação dos Serviços hospitalares em Psiquiatria – PNASH. A recente vistoria do PNASH em 252 estabelecimentos hospitalares brasileiros constata, ainda, infelizmente, após mais de 20 anos de lutas e denúncias sistemáticas, as mais flagrantes violações dos direitos humanos e as mais sérias incompetências técnicas, desde de banhos de mangueiras nos pátios até a total inexistência de qualquer projeto terapêutico.

Afinal, fortes interesses econômicos e corporativos encontram-se envolvidos, visando manter a situação vigente, em detrimento da ética da Reforma Psiquiátrica e dos valores do Estado de Direito. Cumpre nomear aqui um deplorável representante destes interesses: a Federação Brasileira de Hospitais (FBH). Deplorável pela posição que representa, inteiramente descomprometida com a dimensão pública, estritamente voltada para interesses privados. Deplorável, ainda, pela forma pela qual se manifesta, manipulando familiares e a opinião pública, impedindo de todas as formas o acesso da sociedade brasileira à terrível realidade dos hospitais psiquiátricos.

Certamente, os passos da Reforma Psiquiátrica são dados em meio a longos debates, conflitos e divergências várias, como convém a um processo democrático e participativo. Nestes debates, a FHB jamais se coloca como um interlocutor atento, mas sempre como um adversário desleal. Não tem propostas a trazer para a Reforma, mas tem sempre uma clara disposição de impedi-la. Não critica ou questiona – desfaz; não propõe ou escuta – boicota; não pondera ou argumenta – impõe. Incapaz de vencer no terreno do debate público e aberto, parte para a querelância jurídica. Sem envergonhar-se, busca respaldo em aspectos estritamente formais de uma justiça cujos princípios e leis ela própria está constantemente a transgredir.

Alguns episódios recentes nos dão o exemplo e a medida deste despudor. Sem enrubescer sequer, a FBH move ação judicial contra o Conselho Federal de Psicologia pela publicação do livro “A Instituição Sinistra - Mortes violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil” e contra o Ministério da Saúde, alegando que as portarias 251/02 e 77/02 não foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde – quando a realização do PNASH evidencia, justamente e mais uma vez, as flagrantes ilegalidades cometidas nos hospitais psiquiátricos.

Em que pese a sustentação jurídica da FBH já ter sido derrotada no Conselho Nacional de Saúde, a justiça ainda não permitiu que os resultados do PNASH fossem divulgados e aplicados, adiando dessa forma o descredenciamento das instituições que violam os direitos humanos dos portadores de sofrimento mental ali internados.

Somente com a incansável luta do vigoroso movimento social pelo fim dos manicômios e com apoio da sociedade será possível vencermos a indústria da loucura e transformarmos esta trágica realidade da assistência prestada aos portadores de sofrimento psíquico.

Bibliografia

1 – Boletim Eletrônico do Sistema Conselhos de Psicologia – Direitos Humanos - Campanha pelo Descredenciamento do SUS e Fechamento Imediato do Hospital Psiquiátrico Dr. Milton Marinho Caicó/RN. Brasília, 2002.
2 – Câmara dos Deputados, Comissão de Direitos Humanos – Relatório da I Caravana Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 2000.
3 – Conselho Federal de Psicologia, Folder – Saúde Mental -Política de Saúde Mental para Gestores Locais de Saúde – CFP.
4 – Manifesto em Defesa da Reforma Psiquiátrica Brasileira: Pelo Fim da Indústria da Loucura – 2002
5– Ministério da Saúde – Legislação em Saúde Mental – Brasília – 2002.
6 – Vinicius, M. (organizador). A Instituição Sinistra – Mortes violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil, CFP, Brasília, 2001.

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