Nas ruas da periferia e cidades vizinhas de São Luís,no
Maranhão, a preocupação com a segurança
das crianças se esconde um pouco, disfarçada
pelo dia-a-dia que a vai abafando, mas não é
capaz de extingui-la. E nem poderia, somente um dia depois
do outro, fazer esquecer os 22 meninos assassinados e cruelmente
privados dos órgãos genitais em 11 anos. Um
ano depois da denúncia do primeiro caso perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, 2002 foi tragicamente
lembrado de que a miséria, a violência e a impunidade
são ainda objeto do mesmo desinteresse por parte das
autoridades encarregadas de zelar pela segurança dos
meninos do Maranhão.
O
passo do medo no Maranhão
Aton
Fon Filho[1]
Os
meninos do Maranhão não têm medo quando
atravessam as ruas correndo, parando, correndo entre os carros,
toureando uma riqueza que lhes vem de encontro, mas não
vem ao encontro, sem saber ao certo se querem correr dela
ou correr para ela. Os meninos não têm medo quando
saem para brincar, subir nos paus para colher as frutas e,
lá de cima, mangando, jogar as cascas das mangas no
destino que ficou lá em baixo.
Os
meninos não têm medo da cara feia de quantos
se julgam importunados por seu afã de trabalhar vendendo
cuscuz, mingau ou frutas para garantir o leite e o remédio
dos irmãos.
Os
pais dos meninos de Paço do Lumiar têm medo.
Têm medo do desemprego; de não conseguirem, com
o biscate de hoje, o dinheiro para o feijão e arroz
de amanhã; têm medo de que seus filhos não
no tenham na hora em que o devam ter.
Nas
ruas da periferia e cidades vizinhas de São Luís,
a preocupação com a segurança das crianças
se esconde um pouco, disfarçada pelo dia-a-dia que
a vai abafando, mas não é capaz de extingui-la.
E nem poderia, somente um dia depois do outro, fazer esquecer
os 22 meninos assassinados e cruelmente privados dos órgãos
genitais em 11 anos.
Um
ano depois da denúncia do primeiro caso perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, 2002 foi tragicamente
lembrado de que a miséria, a violência e a impunidade
são ainda objeto do mesmo desinteresse por parte das
autoridades encarregadas de zelar pela segurança dos
meninos do Maranhão.
Onze
anos depois da morte e emasculamento de Ranier Silva Cruz,
os pés e mãos da morte ainda encontram caminho
na poeira dos municípios de Paço do Lumiar,
São José do Ribamar e nos bairros Maiobão,
Batata, Horto Florestal do Ibama, Cidade Operária,
Vila São José e Vila Fé em Deus, na periferia
de São Luís, e encontraram o caminho de Edvan
Pinto Lobato, de doze anos de idade, no dia 15 de fevereiro
de 2002.
Edvan
foi visto com vida pela última vez por volta das três
horas da tarde. A longa seqüência de crimes contra
a infância na região pôs seus familiares
imediatamente em alerta, e a busca começou.
Infrutífera,
inicialmente, a procura teve final trágico quando por
volta das nove horas da noite, num casarão abandonado,
o corpo emasculado da criança foi encontrado semi-encoberto
por tijolos.
Seja
como resultado da imperícia dos agentes públicos,
seja por efeito de ação negligente, o local
onde o corpo foi encontrado não foi preservado nem
convenientemente periciado, e sua imediata liberação
permitiu que a multidão o desfigurasse e ateasse fogo
nas imediações prejudicando permanentemente
a colheita de possíveis elementos de prova. Como seqüência
imediata, já às três horas da manhã
os restos mortais foram liberados para que a família
os trasladasse para o interior do Estado, onde ganharam sepultura.
Não
importa quais as respostas para indagações mínimas
que se poderia fazer oportunamente, como quem encontrou
o corpo?, em que condições?,
por que lhe ocorreu procurar naquele local?, quem
deu início ao incêndio do local? e outras
semelhantes. Isso porque em diversos episódios anteriores
a igual despreocupação ou imperícia excluiu
a possibilidade de serem colhidos elementos como, por exemplo,
as características dos cortes ou mesmo dos instrumentos
utilizados para as ablações.
Ora,
tratando-se de hipótese em que se suspeita ou admite
que uma mesma pessoa pudesse ser responsável por mais
de um dos crimes, as características dos cortes e dos
instrumentos poderia confirmar ou afastar a possibilidade.
De outra parte, maior ou menor destreza na produção
das lesões, como maior ou menor conhecimento anatômico,
poderiam ser também elementos para identificação
dos possíveis autores.
O
Diretor do Instituto de Criminalística da Polícia
Civil do Estado do Maranhão ICRIM, José
Ribamar Ribeiro, declarou que uma das principais dificuldades
da polícia para concluir os laudos de local é
que, quando a maioria dos corpos das vítimas é
encontrada, já passou muito tempo do óbito e
os corpos já estão em estado de putrefação.[2]
Arriscando,
porém, uma outra avaliação, a mesma autoridade
apontava uma desmotivação do corpo de peritos,
todos com cursos superiores, em razão dos salários
percebidos, algumas vezes, segundo ele, inferiores ao de outros
servidores com escolaridade média.
Nem
uma nem outra explicação, porém, são
suficientes para justificar essa ausência de elementos
técnico-investigativos que pudessem trazer uma segurança
de que se caminha no rumo do esclarecimento dos crimes e da
cessação de seu cometimento.
Os
meninos não têm medo. Os meninos são audazes
guerreiros que enfrentam dragões armados de espadas
de pau e libertam as princesas encarceradas pelos malvados
nas torres dos castelos. Mas os pais do Maranhão estão
se vendo obrigados a ensinar a seus meninos que o mal nem
sempre se esconde nos castelos, mas também caminha
desapercebido nas ruas, protegido pela burocracia dos gabinetes.
E o ensino do medo corresponde à morte da infância.
Que no Maranhão não é apenas figura de
retórica.
-------------------------------------------------------------
[1]
Aton Fon Filho, advogado, diretor da Rede Social de Justiça
e Direitos Humanos, Diretor do departamento de direitos humanos
da Federação Nacional dos Advogados, Membro
da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Diretor
do Sindicato dos Advogados de São Paulo e Diretor da
Federação dos Advogados de São Paulo
[2]
O Imparcial, 24 de fevereiro de 2002
Voltar
|