Atualmente, em São Paulo, dois milhões de pessoas
vivem em condições absolutamente precárias,
como em favelas. No centro da cidade existem centenas de cortiços,
como vemos particularmente nos bairros de Bela Vista e Brás.
O Movimento Nacional de Luta pela Moradia estima que são
30 mil famílias morando em imóveis ocupados,
somente na capital paulista. O Movimento de Moradia do Centro,
que congrega as pessoas que lutam pela moradia digna no centro
de São Paulo, reúne por volta de 3.000 pessoas
cadastradas, número que aumenta continuamente.
Dos
segregados, uma força humanizante
Frei
Helton Barbosa Damiani
Megalópole
planetária, São Paulo tornou-se um centro de
referência nacional. Pólo econômico, cultural,
industrial e de serviços, esta cidade concentra uma
importante parcela da população brasileira,
10% do total da população nacional. Apesar de
seu desenvolvimento, concentra também grandes problemas,
dentre os quais a má divisão de bens, gerando
um grande contingente de excluídos. A falta de moradia
é um dos frutos gerados pela concentração
do capital.
A
falta de moradia para tantos cidadãos paulistanos não
é um problema de nossos dias, mas possui suas raízes
num longo passado histórico. Raquel Rolnik[1] defende
a tese de que o problema urbano vivido por este centro é
fruto não da ausência de políticas públicas,
mas de uma política que esteve voltada para os interesses
da elite dominante. Tal política desenvolvia áreas
que eram de seu interesse e excluía dos bens mínimos
as classes menos favorecidas. Dessa forma, coexistem em nossos
dias bairros luxuosos e miseráveis, cuja semelhança
se dá nos nomes e no dado fundamental: em ambos moram
seres humanos. Entretanto, na sociedade onde o ter
vale mais que o ser, na deterioração
dos valores fundamentais, dentre esses a vida, em muitos bairros
é possível perguntar: esses habitantes não
são seres humanos?
Um
olhar sobre a história
Em 1920, São Paulo crescia a partir da industrialização.
Morando próximo às fábricas cuja produção
era escoada por meio do transporte ferroviário, os
bairros populares se formavam nas baixadas e várzeas
da cidade, por onde circulavam os trens. Dentre estes figuram
os bairros Lapa, Bom Retiro, Brás, Pari, Belém,
Mooca e Ipiranga[2]. Os bairros onde viviam os proprietários
eram aqueles situados na parte alta da cidade, como Higienópolis
e Avenida Paulista.[3]
Nascendo
sob a égide de diferenças sócio-econômicas,
não é de se admirar que o tratamento dado aos
seus moradores era distinto. A preocupação com
uma política de bem-estar estava reservada aos bairros
mais nobres. Estes, por força da influência de
seus proprietários, iam se consolidando como bairros
de qualidade de vida superior. Tinham uma melhor infra-estrutura
urbana, com saneamento básico, meios de transporte
mais eficientes e, enfim, um planejamento de construção.
Notemos que, em 1894, Joaquim Eugênio de Lima obtém
a aprovação de uma lei exclusiva para a Paulista,
obrigando as futuras construções a obedecer
a um afastamento de dez metros em relação à
rua, bem como dois metros de cada lado, a serem ocupados por
jardins e arvoredos[4]. Entretanto, os bairros
populares continuavam deixados aos cuidados da própria
população, que ia construindo suas casas conforme
lhe era possível.
Há
de se notar ainda que um grande projeto fora desenvolvido
para a região central, formando a chamada cidade
triângulo, composta por São Bento, rua
Direita e 15 de Novembro, bem como, posteriormente, o entorno
da Praça da República[5].
Enquanto
isso, se nos bairros a população, por sua livre
iniciativa, empreendia a construção de suas
casas segundo as possibilidades econômicas de cada habitante,
no centro formavam-se os cortiços e a partir deles
podemos detectar o quanto é pérfido o sistema
de exclusão da moradia. Com a promulgação
de uma lei de caráter sanitário, em 1886, os
cortiços ficaram proibidos no centro da cidade; sem
embargo, enquanto forma de moradia, eles não foram
questionados. Em conseqüência de leis e planejamentos,
São Paulo viveu muito mais um processo de formação
de uma periferia do que, verdadeiramente, uma melhoria na
condição de vida humana. Os resultados dessa
política do início do século 20 permanecem
ainda hoje.
Com a explosão populacional ocorrida ao longo do século
20 e mesmo com a grande virada dos anos 80 e 90, apesar da
redução da taxa de natalidade e o desenvolvimento
de outros centros produtivos no interior do estado, o problema
aqui discutido não mudou, pelo contrário, se
agravou. Atualmente, pode-se dizer que 2 milhões de
pessoas vivem em condições absolutamente precárias,
como em favelas[6]. No centro da cidade existem centenas de
cortiços, como vemos particularmente nos bairros de
Bela Vista e Brás. Ainda se conta uma vasta população
cujo teto são as estrelas do firmamento e cuja cama
ainda são tiras de papelão jogadas na calçadas,
em baixo de alguma sacada. Nesta casa, como dizia a inocente
poesia, casa que não tinha teto, não tinha parede,
não tinha nada, vivem homens e mulheres de todas as
idades.
Força
humanizante
Nas trevas deste caminhar, onde passamos pelas vielas da segregação,
surge uma força capaz de trazer uma esperança:
são os movimentos de moradia. Por meio deles, muitos
sonhos deixam de ser apenas sonhos fluidos, fluindo
à fina flor não dos fenos,
mas dos ventos, parafraseando a poesia simbolista de Eugênio
de Castro.
Agrupados
em organizações maiores, muitos são os
movimentos que surgem do meio do povo, guiados por corajosos
líderes que são capazes de não somente
sonhar, mas dedicarem-se na luta de transformação
social. Pessoas que não têm onde morar, sem-tetos,
acampados em algum ponto da grande megalópole, filiam-se
aos movimentos de moradia. Com este princípio, os movimentos
de moradia reúnem-se em torno de organizações
como a Central de Movimentos Populares (CMP), União
dos Movimentos de Moradia (UMM), Movimento Nacional de Luta
pela Moradia, Federação Nacional de Associação
de Moradores (CONAM), Federação das Associações
Comunitárias do Estado de São Paulo (FACESP),
Pastoral da Moradia, dentre outras associações.
Cada organismo aglutina, e respeitosamente mantém,
a identidade de seus afiliados, permitindo sua autonomia e
integrando suas lutas.O mesmo fazem aquelas pessoas que vivem
em cortiços, favelas ou cuja renda mensal se esvai
no pagamento de aluguéis. O Movimento Nacional de Luta
pela Moradia estima que são 30 mil famílias
morando em imóveis ocupados, somente na cidade de São
Paulo.
Um
caso típico de ocupação para moradia
vive o Movimento de Moradia do Centro (MMC). Este movimento
ocupou um prédio desativado da Secretaria Estadual
da Cultura, localizado na Rua do Ouvidor. Tentadas as negociações
que possibilitariam uma reforma no prédio e tiraria
dezenas de famílias das ruas do centro de São
Paulo, ainda não houve uma solução definitiva,
porque não houve o repasse do imóvel da dita
secretaria para a Secretaria da Habitação.
Responder
qual o número exato de movimentos seria uma tarefa
quase impossível. Igualmente seria contabilizar o número
de pessoas envolvidas. Entretanto, estima-se que milhares
de pessoas atuam em diferentes frentes de luta, cujo referencial
é a melhoria da condição de habitação.
Ligadas à UMM, na zona oeste, estima-se por volta de
3.500 famílias. O MMC, que congrega as pessoas que
lutam pela moradia digna no centro de São Paulo, reúne
por volta de 3.000 pessoas cadastradas, número que
aumenta continuamente. É interessante destacarmos que
a grande percentagem dos excluídos da moradia são
nordestinos vindos para São Paulo, retrato da política
sistêmica geradora de pobreza e desigualdades sociais.
Tendo cada grupo, na sua particularidade, seus desafios em
vista da obtenção do teto, direito de todos,
assegurado pela Constituição da República
Federativa do Brasil, artigo 5, onde se lê: Todos
são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade...,
complementando-se ainda com o inciso XXIII que assegura a
função social da propriedade, estes grupos se
unem para a defesa de direitos universais, não somente
em relação à obtenção do
teto, mas em prol de políticas públicas mais
eficazes e menos discriminatórias.
Dentre
os interesses que convergem para o bem de todos os cidadãos,
estes movimentos buscam discutir e implementar uma plataforma
política habitacional que permita uma reforma urbana.
Política habitacional discutida, a fim de que se alcance
uma cidade melhor, a dita cidade que queremos, cidade
de todos e para todos, e moradia como direito fundamental,
são palavras dos representantes destes movimentos,
figuras emblemáticas como Gegê (Luís
Gonzaga da Silva), coordenador do MMC, e de Antônio
José, coordenador do Movimento Nacional de Luta pela
Moradia. Assim, muitos movimentos têm se engajado na
discussão e aprovação do Sistema Nacional
de Habitação. Trata-se de um projeto de lei
que tramita há dez anos no legislativo federal. Este
visa criar fundos de recursos gerenciados pelo poder público
e pela sociedade civil e entidades. Cria, então, o
Conselho Nacional de Habitação, que vai discutir
políticas públicas para a habitação
e garantir subsídios necessários a cada família
contemplada no projeto.
Outra
forma de ação dos movimentos de moradia é
a cidadania participativa, fazendo-se presente no estudo e
implementação do estatuto da cidade. Uma das
conquistas desta frente foi o recente veto a determinadas
emendas no plano diretor de São Paulo. Emendas que
eram consideradas nocivas aos menos favorecidos, e obtiveram,
agora, em 2002, a aprovação do Conselho Municipal
de Habitação. A última conquista que
está sendo festejada é o término do Condomínio
Escala, para cujas quitinetes serão relocadas muitas
pessoas de diversos movimentos.
Enfim,
com muito esforço, os movimentos têm alcançado
êxito em sua luta cotidiana, embora muitas vezes o poder
público se coloque como empecilho ao invés de
ser um aliado. Barrados na burocracia, muitas negociações
seguem lentamente, apesar de existirem parcerias nos casos
de mutirões. Sem embargo, há de destacar que
existem muitos interesses políticos que condicionam
a efetivação das conquistas populares que, infelizmente,
são constantes em nossa história[7]. Os
melhores parceiros ainda são os governos populares,
afirmam os dirigentes.
Junto
a estes movimentos ainda perdura a presença de militantes
anônimos que, nas associações de moradores,
dedicam suas vidas à busca de moradia digna. Afinal,
não basta o teto, é preciso fazer do teto um
lar. E movidos por esta causa, dia e noite, mais pessoas colocam
sua mão na massa. Massa literalmente compreendida nos
mutirões que existem espalhados pelos cantos da cidade.
Mãos na massa humana, figurativa, formada de pessoas
em busca da aplicação efetiva dos direitos humanos.
Talvez a maior tarefa seja exatamente esta, mostrar aos outros,
à sociedade civil, que há pessoas excluídas
das necessidades básicas para a existência.
Reunidos
em torno de um ideal comum, defendemos a dignidade de vida
e cidadania. Eis um lado educativo que precisa ser destacado
nos movimentos de moradia. Pessoas que estariam sem esperança
a retomam, encontram um novo meio social onde vão revigorando
suas potencialidades. Aprendem a participar da vida pública,
a formar opinião. Na Escola da Vida, como
postula Paulo Freire, as pessoas aprendem. Isso ocorreu no
caso do plebiscito relativo à Área de Livre
Comércio das Américas (Alca), tema de debate
e militância no qual muitos movimentos estiveram engajados
na semana do dia 7 de setembro, e por ocasião da lavagem
da escadaria da Assembléia Legislativa, ocorrida em
outubro de 2002.
Urgência
de uma nova consciência
O confronto cruel com facetas da sociedade mostram quão
profundas são suas chagas. Excluídos dos seus
direitos, enviados para lugares cada vez mais distantes das
áreas de possibilidade de emprego, educação
e trabalho, os cidadãos empobrecidos perdem a vez e
a voz. Por isso, uma das possibilidades de estabelecerem o
diálogo é através das ocupações.
No dia 10 de maio de 2002, foram realizadas dez ocupações,
somente na cidade de São Paulo, apesar de, ao menos
uma, ter sido abortada pela Polícia Militar. Embora
ocupem prédios públicos vazios, ou outros meios
de protesto, como é o caso das ocupações
temporárias a prédios do governo e de protestos
frente às grandes instituições, estas
pessoas, militantes da sobrevivência, são consideradas
desordeiras e invasoras.
Em
São Paulo são aproximadamente 400 prédios
vagos. Dentre estes, um está localizado em plena Avenida
Paulista. E a polícia age com violência e arrogância,
além da opressão psicológica, no modo
com o qual abordam os cidadãos. Tais fatos mostram
como o homem pode ser lobo do homem, como expressa
Hobbes no Leviatã. É assim que se vivencia o
desdém de oficiais, representantes do Estado, que,
ao invés de proteger e proporcionar a igualdade entre
os cidadãos, referem-se a eles como pessoas de uma
segunda espécie.
Não
somente lutar por casa, mas por uma cidade de todos
e para todos. Eis um ideal capaz de fomentar a transformação
social em São Paulo. É assim que os movimentos
de moradia são capazes de colocar na pauta do dia a
problemática da ética. Ética do reconhecimento.
O cidadão se reconhece como tal a partir da defesa
dos direitos e deveres do outro. Colocam em pauta a construção
de um habitat do ser humano como um ser social e não
como um habitante de uma savana de concreto. Com isso, são
capazes, no mínimo, de mostrar que é preciso
desenvolver nas cidades brasileiras uma ética mínima
de sobrevivência. Precisamos combater o caos que vai
transformando nossas cidades, com a depauperação
do meio ambiente e da qualidade de vida, com nossas águas
contaminadas, nosso ar poluído e nosso solo tornando-se
infértil, e a violência e a criminalidade aumentando
por falta de perspectiva de vida. O não planejamento
urbano é fator crucial para essa tragédia ecológica
e humana. Afinal, o cosmo é uno. Nele convivem os seres
humanos, os animais e as plantas em equilíbrio no eco-sistema.
Por isso, a defesa da dignidade humana, manifestada no acesso
à moradia digna, não deveria ser uma luta de
movimentos, mas uma luta da sociedade. Sociedade que seja
capaz de se auto gerenciar e mostrar que um novo mundo
é possível.
Porém,
enquanto isso, fica nos ares o imperativo: As aves têm
ninhos e habitam os céus, mas vejam onde moram os filhos
de Deus.
Frei
Helton Barbosa Damiani, religioso dominicano, militante da
Central de Movimentos Populares de São Paulo.
--------------------------------------------------------------------
[1]
ROLNIK, Raquel São Paulo. São Paulo,
Publifolha, 2001.
[2]Ibidem,
pg. 16.
[3]
Ibidem, pg. 19.
[4]
Ibidem, pg. 19.
[5]
Ibidem, pg. 17.
[6]
Ibidem, pg. 67.
[7]
Cf. ROLINK, Raquel, op. cit. pg. 37.
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