Estamos vivendo numa pseudodemocracia política que
coloca em risco o elemento essencial da democracia, ou seja,
o respeito à diversidade. Não existe democracia
de fato sem o respeito às diferenças que nos
marcam e que são ricas na construção
da identidade do país. O julgamento de Edson Neris
inaugurou um novo espaço na defesa de nossa orientação
sexual e traz no seu bojo uma perspectiva de que a justiça
está sendo feita, apesar de tamanha atrocidade.
O
Julgamento de Edson Neris, uma questão de justiça
Beto
de Jesus
Na
madrugada do dia 6 de fevereiro de 2000, a cidade de São
Paulo, mais precisamente a Praça da República,
foi palco de um dos crimes de ódio mais bárbaros
envolvendo um homossexual. Edson Neris foi morto a socos e
pontapés por um grupo de skinheads pelo simples fato
de ser homossexual.
A manifestação de carinho com seu companheiro
foi o código que revelou sua orientação
sexual e causou esse triste fim. Eles não estavam fazendo
sexo ou algo que perturbasse os transeuntes do local. Estavam
simplesmente de mãos dadas, caminhando pelas alamedas
da praça.
Toda
vez que penso nisso, não consigo deixar de imaginar
cenas que me causam raiva e ímpeto de me colocar à
frente para mudá-las. Cenas que me causam esse mal-estar
são das crianças vendendo balas nos faróis
ao invés de estarem na escola e tendo seu direito de
brincar assegurado; de idosos que dormem nas ruas depois de
terem dado a vida construindo nosso país; da horda
de desempregados sem saúde, sem moradia, sem escola.
De fato, Caetano Veloso tem razão quando canta alguma
coisa está fora da nova ordem mundial.
Estamos
vivendo numa pseudodemocracia política com ingredientes
de um fascismo social que coloca em risco o elemento essencial
da democracia, ou seja, o respeito à diversidade. Não
existe democracia de fato sem o respeito às diferenças
que nos marcam e que são ricas na construção
da identidade do país. Somos um país miscigenado,
um caldeirão de culturas, tendo um tecido social composto
por etnias, orientações, desejos, gostos.
Numa
ação quase que exemplar, que na verdade deveria
ser o modus operandi da polícia, os assassinos foram
presos algumas horas depois bebendo despreocupadamente em
um bar que reunia skinheads na cidade. Os policiais chegaram
até o seu paradeiro a partir do depoimento de um homossexual
que vive nas ruas. Triste sina desses rapazes, pois ao analisarmos
com mais atenção o perfil dos mesmos percebemos
que na sua maioria são pessoas tão discriminadas
como os homossexuais. São na sua maioria de origem
muito humilde, com subemprego, baixa escolaridade, nordestinos
e afrodescendentes. É o refinamento do fascismo social.
Quando excluídos matam excluídos.
Com
a prisão dos mesmos, os grupos de militância
homossexual iniciaram uma saga para que esse caso emblemático
fosse referencial e exemplar em sua punição,
agindo de forma pedagógica para que outros não
aconteçam. Iniciamos um trabalho muito intenso junto
à mídia em geral, fornecendo informações
para os jornais, revistas, televisões, rádios
e internet. Construímos um site para divulgar as informações
sobre o caso, bem como manter a memória de crime bárbaro
como sinal de um marco contra a homofobia e a intolerância.
Estabelecemos
uma relação bem próxima à família
do Edson, pois além da dor da perda, a orientação
sexual dele foi desnudada e foi preciso um trabalho intenso
para que sua família tivesse o entendimento de que
ele tinha o direito à livre orientação
do seu desejo. Muitas situações novas ficaram
afloradas e novamente percebemos o quanto é difícil
ainda, apesar do drama da perda, a família assimilar
a homossexualidade do filho, como se isso fosse algo que o
desmerecesse ou que o tornasse inferior a um heterossexual.
Essa
conclusão reforçou em nós a tenacidade
da necessidade de interferência nos processos educativos
nos mais variados âmbitos (escolas, igrejas, locais
de trabalho, famílias etc.) para que nós, homossexuais,
não passássemos de vítimas da violência
para causadores da mesma, por assumirmos nossa orientação.
No
primeiro julgamento, fizemos um trabalho muito intenso de
advocacy, com pressão junto à população
e com apoio da imprensa, que foi exemplar nesse caso, pois
divulgou sempre a situação bizarra dessa morte.
Ocupamos a frente do Fórum e sabíamos que, se
não nos mobilizássemos e trouxéssemos
para as pautas do dia o tão esperado julgamento, correríamos
o risco de ver atenuado esse crime. Foi um momento muito marcante
em nossa militância, pois conseguimos uma grande mobilização
e trouxemos, após mais de um ano, esse crime para as
páginas dos jornais, editoriais, internet, TV etc.
Segundo
o Promotor Dr. Marcelo Milani, o caso trouxe muita reflexão
sobre a situação que vivem os homossexuais na
sociedade brasileira. Dr. Milani usou como objeto de sua acusação
o fato de terem cometido um hate crime (crime de ódio
tipologia que ainda não existe em nossa legislação
e que é aplicada em outros países, quando a
causa do crime está relacionada com ódio em
relação ao gênero, etnia, religião,
nacionalidade/naturalidade, etc.) pelo fato de Edson Neris
ser homossexual. Essa sua linha foi muito proativa, já
que se trabalhou o tempo todo com o direito da livre orientação
sexual, o que abre um precedente interessante, pois se analisarmos
algumas peças de outros julgamentos onde homossexuais
foram assassinados, encontramos pérolas do tipo ele
procurou tal situação, pois não sucumbia
a seus desejos obscenos ou devido a sua conduta
irregular, colocou-se frente ao perigo.
Esse
julgamento inaugurou um novo espaço na defesa de nossa
orientação sexual e traz no seu bojo uma perspectiva
de que a justiça está sendo feita, apesar de
tamanha atrocidade. Durante o primeiro julgamento, onde foram
julgados dois acusados, o clima foi um tanto tenso, pois alguns
amigos dos acusados e skinheads estavam presentes e, de forma
dissimulada, ameaçavam nossa militância, mostrando
tatuagens e cabeças raspadas. Foram horas de denúncia
e defesa e, ao final, os dois, de forma inédita, foram
condenados a quase 20 anos de reclusão em regime fechado.
A sentença do juiz foi muito importante, pois consta
nos autos que, da mesma forma que os skinheads têm o
direito de andar com suas roupas exóticas, nós,
homossexuais, temos o direito de expressar nossa afetividade
em público, sem correr risco por essa iniciativa.
O
caso envolveu muitas pessoas e nove foram para julgamento,
ao todo quatro foram condenados a penas semelhantes, uma mulher
foi absolvida por falta de provas e um outro que, por ter
colaborado nas investigações, teve sua pena
abrandada. Ainda restam mais pessoas a serem julgadas e esperamos
que a justiça continue sendo feita.
Toda
as vezes que vou ao Tribunal do Júri para mais um julgamento,
vejo os algozes de Edson algemados e olho para suas famílias
com os rostos extremamente sofridos. Não paro de pensar
onde é que tudo aquilo começou na vida deles.
Em que momento a intolerância se acentuou e virou raiva,
que virou ódio, que virou morte.
Sou
educador e fico avaliando em que momento o preconceito tomou
conta deles e quais os motivos desse preconceito. Ninguém
nasce com preconceito, pois o mesmo é um produto sócio-cultural
de uma sociedade que está doente. O preconceito é
repassado através da escola, das igrejas, das próprias
famílias, do ambiente de trabalho etc. Como educador,
fico pensando que de nada adianta um aluno sair da escola
sabendo tudo de matemática, de português, de
ciências ou história se ele, em suas reflexões,
achar que homossexuais, nordestinos e negros são cidadãos
de segunda categoria. Com certeza a escola terá falhado
sobremaneira com ele, pois os conteúdos de cidadania
e direitos humanos não permearam sua formação.
Estamos
grávidos de esperança na mudança das
relações que se estabelecem com os homossexuais,
e acreditamos que o trabalho de visibilidade que estamos realizando
em todo país e as parcerias estabelecidas com os outros
segmentos estigmatizados de nossa sociedade é o caminho
dessa mudança, pois esse sonho é coletivo e
por esse motivo pode e vai se transformar em realidade.
Beto
de Jesus, Educador, Militante do Movimento Homossexual e Consultor
em Diversidade Sexual.
betojesus@uol.com.br
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