A vitória da organização das mulheres
negras e das demais organizações talvez tenha
sido maior sobre o Estado brasileiro durante a Era FHC do
que sobre o restante da sociedade civil, especialmente os
operadores de direitos humanos e das causas sociais e ambientais.
O Dia Seguinte A Conferência Mundial
contra
o Racismo e suas conseqüências
Jurema
Werneck[1]
Este
artigo vai tratar de fazer uma breve avaliação
do processo um ano após a III Conferência Mundial
contra o Racismo e seu impacto, a partir da perspectiva das
mulheres negras.
Aproveitando
o momento que marca o final da Era FHC, buscarei analisar
também alguns aspectos de seu período de governo
e o impacto de suas políticas e ações
sobre as mulheres negras.
Ao
final, buscarei traçar questionamentos e propostas
que possam ser incorporadas e ampliadas pela
sociedade e pelo(s) novo(s) governos.
1-
A III Conferência Mundial
Eu
não tenho dúvidas de que você sabe do
que eu estou falando, uma vez que se você lê este
artigo é porque, de algum modo, os direitos humanos
são seu tema de reflexão e ação.
De qualquer maneira, peço licença para repetir
o conhecido.
A
III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia
e Intolerâncias Correlatas, aconteceu sob os auspícios
da Organização das Nações Unidas
(ONU), marcando a finalização do chamado ciclo
social de conferências, em Durban, África do
Sul, no ano de 2001. Foi dividida em dois momentos relacionados:
a Conferência da Sociedade Civil (entre os dias 28 de
julho e 1º de setembro) e a Conferência de Estados
(de 1º a 8 de setembro). Os dois momentos foram vividos
com intensa participação de afrodescendentes
dos diversos continentes, onde cabe destacar a intensa participação
de mulheres.
Seu
processo preparatório envolveu intensas disputas. Apesar
do interesses de países e organizações
da sociedade civil, especialmente da Europa, em focar os debates
principalmente sobre o tema da xenofobia, esvaziando a importância
do racismo como tema, nós, afrodescendentes, garantimos
o destaque necessário ao tema do racismo, seu histórico
e suas conseqüências. Por trás desta nossa
posição, estavam a busca do reconhecimento da
vigência do racismo em nossos países, bem como
sua presença e importância na constituição
da xenofobia e da intolerância.
Neste
processo, nós, mulheres negras reunidas na Articulação
de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras,
utilizando toda a reflexão e acúmulo produzidos
pelas organizações negras do Brasil, das Américas
e do Caribe, nos constituímos num dos principais grupos
de pressão.
Na
raiz desta realização estava nosso histórico
envolvimento nas elaborações dos movimentos
sociais, bem como a execução bem sucedida de
um processo preparatório interno, entre as organizações
de mulheres negras, de busca de informações,
reflexões, estabelecimento de alianças (principalmente
com africanas e afrodescendentes de outros países),
além de definição de propostas dentro
da própria Articulação que possibilitassem
o rápido aprendizado das técnicas de negociação
dentro do espaço das Nações Unidas e
a ação coordenada na busca de execução
de nossos objetivos).
Com
este propósito, a Articulação participou
da Conferência das Américas; da II e III PrepCom
em Genebra e, principalmente (e com todas as organizações
integrantes), nos dois momentos da Conferência de Durban.
Aqui,
um ganho inestimável. Não custa nada citar novamente
o grau de visibilidade que nós, mulheres negras, alcançamos
em todo o processo, que pode ser simbolizado pela declaração
da Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Mary
Robinson, ao final da Conferência das Américas,
ao dizer que as mulheres negras fizeram a diferença.
Ou já em Durban, com a escolha de Edna Roland, presidente
de Fala Preta, uma das integrantes da Articulação,
para o papel de Relatora da Conferência, o que se somou
ao fato da presidência da Conferência estar a
cargo da Ministra das Relações Exteriores da
África do Sul, Sr.ª Dlama Zuma. Esta que, numa
homenagem, encerrou a Conferência com a frase, em português,
a luta continua!. Tais momentos falam principalmente
de dois fatos:
§
Primeiro, o protagonismo alcançado pelas mulheres negras,
uma novidade num processo da ONU. Esta novidade
informa da invisibilidade anterior, da nossa ausência
como grupo político importante no processo de decisão
tanto na ONU quanto fora deles.
§
Segundo, fala também da ação bem sucedida
em potencializar recursos, superar limites e se fazer presente.
§
Terceiro, fala de um ciclo social de Conferências da
ONU, tanto de parte da sociedade civil como dos Estados, em
que a participação das mulheres negras foi insuficiente
e que, aparentemente, poucos ou talvez ninguém,
além de nós mesmas, tenha se dado conta da gravidade
do fato. Assinale-se que o ciclo social incluiu conferências
de direitos humanos, direitos das mulheres, meio ambiente
e desenvolvimento, por exemplo, tópicos cruciais a
serem tratados desde nossa perspectiva e sobre os quais nós,
mulheres negras, detemos décadas de reflexões
e experiências acumuladas. No entanto, a conjunção,
ou, melhor dizendo, a interseccionalidade de racismo e sexismo
atuantes, afastou nossas falas dos ouvidos daqueles
sociedade civil e estados detentores dos discursos
competentes nas áreas. E não irei falar
aqui de outros interesses que ajudaram a nos manter afastadas
enquanto grupo político. Entre eles, talvez não
devesse falar aqui do acesso às vultosas quantias de
financiamento que os processos do ciclo social da ONU possibilitaram.
Necessitamos
ainda ler com cautela todos os significados implícitos
no protagonismo das mulheres negras durante a Conferência
de Racismo, considerando também seus poucos recursos;
o grau de interesse do tema para o restante dos operadores
de direitos humanos e das causas sociais e ambientais. Ao
lado do grau de eficiência que nós, mulheres
negras, adquirimos com a experiência acumulada de anos,
anos e anos (que se tornaram séculos) de enfrentamento
em todos os campos, tanto da sociedade civil quanto dos Estados.
2.
A Era FHC:
Bem
sabem os operadores de direitos humanos e das causas sociais
e ambientais o grau de atraso democrático que marcou
esta era a era das medidas provisórias; do ajuste
estrutural segundo regras de interesse do mercado; da apropriação
das propostas das ongs e a busca de aparelhamento da sociedade
civil, buscando a terceirização dos deveres
do estado, apropriando-se ardilosamente do sentido de solidariedade
social.
Sabemos
também do recrudescimento de práticas assistencialistas,
redutoras da cidadania, como a proliferação
de cheques em troca da ausência de uma política
pública efetiva.
Mas
poucos se deram conta de que foi na Era FHC que o Brasil assumiu
pública e internacionalmente a vigência do racismo
em nosso território, bem como de sua força em
estruturar as relações sociais no país.
Poucos
se deram conta também que foi na Era FHC que a atuação
das mulheres negras como sujeitos políticos importantes
foi reconhecida pelo Estado brasileiro e assinalada no relatório
governamental enviado à ONU.
O
que se quer dizer? Que a vitória da organização
das mulheres negras e das demais organizações
talvez tenha sido maior sobre o Estado brasileiro neste período
do que sobre o restante da sociedade civil, especialmente
os operadores de direitos humanos e das causas sociais e ambientais.
Também
é na Era FHC que o Estado brasileiro busca implantar
as primeiras políticas de ação afirmativa
voltadas para a inclusão social de afrodescendentes,
mais de um século após o fim da escravidão.
Por força da conjunção do racismo, os
diversos setores da sociedade que foram defensores ou convencidos
a aceitar e vivenciar a existência de tais políticas
voltadas para a inclusão de mulheres e de portadores
de deficiência apresentaram uma reação
desmesurada na presença de proposta direcionada para
negros. Matéria, diga-se de passagem, presente na Constituição
Brasileira.
Cabe
assinalar que a Era FHC incorporou muito pouco, ou quase nada,
das propostas que as organizações de mulheres
negras e as demais organizações negras vêm
defendendo há muito tempo. O Congresso Nacional, sensível
a movimentação de diferentes grupos de pressão,
também elaborou mais de uma centena de projetos de
lei. O mesmo pôde ser visto nos estados e municípios.
Em muito, trata-se de discussões e proposições
sobre cotas de participação proposta
de grande importância para a melhoria de nossas condições
de existência, mas não suficientes.
Neste
processo, chamou (e ainda chama) atenção o enorme
silêncio da chamada sociedade civil organizada, para
além de afrodescendentes propostas, expertises,
pressões, atos públicos. Muito pouco tem sido
colocado como ferramenta para superação da barreira
racial.
A
Era FHC, como todas as outras antes dele, não cumpriu
sua obrigação política e moral de reparar
a expropriação continuada que atinge mais de
80 milhões de seres humanos no Brasil, sem falar nas
mais de 36 milhões de mulheres negras brasileiras.
E aqui não se trata somente de seu governo ou do Estado
brasileiro. Falo também de muita gente como eu e você,
que lutamos contra as iniqüidades, mas que, diferentemente
do pensamento dos afrodescendentes, recusam-se a romper com
a naturalização do racismo através de
gestos, ações, propostas. Fincados no cotidiano
do face a face onde realiza-se a ética
e debruçando-se sobre desejos de futuro.
3.
Alguns desafios
Estes
são de diversas ordens. Mas que vão requerer,
todos, a ampliação das alianças na sociedade
brasileira para o enfrentamento do racismo e sua conjunção
com o sexismo.
A
Era FHC está se encerrando. O Brasil optou pela esperança
e elegeu Lula como seu futuro presidente e o projeto político
que ele representa como o norte, o eixo dos próximos
anos. Nesta escolha, uma das principais mensagens é
a do salto de qualidade, rompendo com a ditadura dos números
e das regras da economia de mercado. O que quer dizer a volta
dos valores humanos ao centro das escolhas, como medida, como
principal destinatário reconhecendo-se, em todos
os brasileiros, e não somente a uma pequena parte,
o direito de ser reconhecido como humano e, portanto, portador
de direitos.
Porque
o momento é pleno desta alegria, devemos refletir sobre
esta decisão da sociedade, desde a perspectiva dos
interesses das mulheres negras.
Uma
pergunta se impõe. O que quis dizer a sociedade ao
escolher, por maioria esmagadora de votos, um presidente que,
durante a campanha eleitoral, foi incapaz de manifestar um
discurso ou proposta coerentes que significassem avanços
à superação do racismo? Quando indagado
num debate na televisão, o presidente eleito Lula trouxe
uma resposta infeliz a busca de critérios
científicos na definição de quem
é negro ou não no Brasil. Tal afirmativa assemelha-se
aos discursos dos eugenistas do século XIX, que deram
origem às esterilizações em massa dos
inferiores e dos incapazes, previstas
em lei nos Estados Unidos já em 1907, e, pior, que
inspiraram políticas estatais do calibre das implementadas
por Hitler na Alemanha nazista.
Estamos
diante de um profundo despreparo de um grupo e não
apenas do presidente eleito que agora chega ao poder,
pois me recuso a acreditar que se trata de puro e simples
alinhamento político-ideológico. A história
pessoal e política de Lula e seu grupo nos ajuda a
reconhecer seu profundo compromisso com os direitos humanos,
com a melhoria das condições de vida de indivíduos
e grupos. E mais que tudo: com tudo que pode significar mudança
nas relações sociais perversas no Brasil.
Então,
é o que? Estamos diante do racismo exposto na sua profundidade
e imensidão e ele precisa ser combatido. Ele
precisa ser enfrentado no dia-a-dia, como o dependente químico
enfrenta sua doença e constrói mecanismos de
viver sem ser dominado por ela.
Trata-se
de uma sociedade que não considerou tal declaração
terrível relevante para a definição de
sua escolha. Nem mesmo os opositores mais ferrenhos à
Lula consideram o tema importante.
E
mais: de que modo o futuro governo, os operadores de direitos
humanos e das causas sociais e ambientais, a Articulação
de Ongs de Mulheres Negras e as demais organizações
negras podem impedir que os efeitos de tal declaração
pública se transformem em um retrocesso sem precedentes?
Por
certo, não silenciando, buscando ampliar alianças,
dando visibilidade às propostas já elaboradas,
mas que o grupo político do futuro governo, e a sociedade
como um todo, não se interessaram em ouvir.
Nos
colocamos, as integrantes da Articulação de
ONGs de Mulheres Negras Brasileiras, como aliadas, como críticas,
como parceiras (no profundo sentido da palavra) do que se
quer construir no Brasil. O que quer dizer que nos colocamos
no mesmo lugar onde sempre estivemos, agora muito mais experientes
e muito mais esperançosas.
Papéis
já foram escritos, outros o serão, contendo
nossas propostas. Pois nossas necessidades você já
sabe quais são, e se referem a todos os campos da existência
em sociedade. Tais propostas querem dizer reparação
dos danos do racismo, tanto para negros quanto para brancos.
Pois nem eu, nem você, nem ninguém, podemos ser
plenamente humanos num mundo, num país que mutila,
que mata, que inferioriza negras e negros, indígenas,
ciganos e homossexuais.
A
virada na condução do governo do Brasil quer
dizer uma virada pelo fim das desigualdades e não
é possível que nós, mulheres e homens
negros, tenhamos que ficar de fora por conta do silêncio
de muitos.
Abra
sua voz. A Articulação de ONGs de Mulheres Negras
estará do seu lado.
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[1]
Médica, secretária executiva da Articulação
de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras. Coordenadora de Criola
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