A luta pelos direitos humanos no Brasil, a partir da era FHC,
não por obra sua, mas por ação forte
da sociedade civil organizada que efetivamente tem lançado
mão dos direitos humanos como instrumento de luta social,
passa a ganhar força política central. E a medida
do avanço da sua efetivação nos próximos
anos será a capacidade de o governo traduzi-los em
ações e políticas públicas efetivas
para o enfrentamento da desigualdade, caminhando, portanto,
para a responsabilidade social.
Os
DhESC na Era FHC: Breve Balanço de Situação
Paulo
César Carbonari[1]
A
tarefa a que estamos nos propondo não é fácil,
por mais breve que seja o balanço da questão
dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais
nos últimos oito anos, nos quais estivemos sob o governo
de FHC. Em razão disso, entendemos que é necessário
selecionar algumas questões significativas e relevantes
que possam ilustrar a situação brasileira. A
complexidade da situação e mesmo as diversas
leituras que são feitas ou que podem ser feitas dela
nos remetem ao reconhecimento de que o que faremos é
não mais do que uma leitura, crítica, deste
momento histórico que vivemos como agentes sociais
mais do que como espectadores.
A
rigor poderíamos classificar preliminarmente a era
FHC em matéria de direitos humanos, particularmente
de DhESC, nos seguintes aspectos: a) o governo qualificou
o lugar dos direitos humanos, contraditoriamente, procurou
leva-los do plano normativo para o político; b) o seguimento
do receituário do Consenso restringiu as condições
para a garantia efetiva do acesso aos direitos; c) Mesmo numa
sociedade democrática, contraditoriamente o governo
tem procurado restringi e até criminalizar a ação
de movimentos sociais. Passaremos em revista rapidamente cada
um dos aspectos.
1.
Direitos Humanos: Tentativa de torná-los políticas
O
Brasil ratificou a maioria dos principais instrumentos globais
e regionais de proteção dos direitos humanos.
A Constituição Brasileira reconhece integralmente
a vigência dos direitos humanos. Boa parte dos direitos
fundamentais (tanto civis e políticos quanto econômicos,
sociais e culturais) conta com normatização
através de legislações específicas.
Exemplos são a garantia do Direito à Saúde[2]
e o Direito à Moradia[3]. Apesar de em alguns casos
específicos haver necessidade de aprimoramento dos
instrumentos legais disponíveis, especialmente no sentido
da complementação com normatizações
operacionais, na imensa maioria das áreas, o Brasil
reconhece, em termos de marco legal, os direitos humanos,
estando, portanto, dotado de recursos fundamentais para a
promoção e proteção dos direitos
humanos.
Nesta
mesma linha, também contamos com diversas instâncias
de proteção e controle social de direitos específicos,
os Conselhos e Comitês compostos por representação
dos órgãos públicos e da sociedade civil
organizada, tanto em nível federal quanto dos Estados
e dos Municípios. Exemplos são o Comitê
Nacional para os Refugiados e os Conselhos de Saúde,
de Criança e Adolescente, de Assistência Social,
para citar alguns. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana em funcionamento há quase 20 anos
é a instância específica de proteção
dos Direitos Humanos. Com capacidade de atuação
restrita, goza de pouca autonomia em relação
ao Poder Executivo. Neste último caso, no entanto,
mesmo havendo um Projeto de Lei que modifica o conselho tramitando
há mais de 10 anos no Congresso Nacional, o governo
não fez qualquer movimento para vê-lo aprovado.
Todos
os recursos que indicamos acima não são obra
de FHC. A sociedade já contava com a maioria deles
antes de sua chegada à Presidência. A novidade
por ele introduzida no assunto direitos humanos, especificamente,
foi a criação da Secretaria de Estado dos Direitos
Humanos (SEDH), vinculada ao Ministério da Justiça
e a publicação, em maio de 1996, do Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O Programa é um
instrumento que tem cumprido a função de direcionar
a intencionalidade do Poder Público em matéria
de Direitos Humanos. A Secretaria é o órgão
encarregado para a execução de políticas
públicas e coordenar a ação governamental
no campo dos direitos humanos em geral. A construção
destes dois instrumentos, apesar de todas as debilidades que
têm, caracteriza uma sinalização clara
da tentativa de elevar os direitos humanos da condição
meramente normativa para a política. Esta medida é
contraditória, pois foi permanentemente tencionada
no governo e não conseguiu avançar em afirmação
e força. Mostras disso é que a SEDH tem pouca
força para fomentar ações articuladas
e coordenadas em sentido a amplo com os diversos órgãos
do governo e mesmo com a sociedade e, ademais, conta com uma
baixa dotação orçamentária (normalmente
vítima de cortes em razão do superávit
primário) e praticamente não dispõe de
mecanismos e instrumentos de monitoramento da execução
das ações previstas. Como esta situação
acaba por afetar diretamente a execução do PNDH,
em grande medida esta acaba por constituir-se numa carta de
intenções.
Na
II Conferência Nacional de Direitos Humanos[4], em 1997,
portanto, um ano após a divulgação do
Programa Nacional de Direitos Humanos, o Movimento Nacional
de Direitos Humanos (MNDH) denunciou a parcialidade do PNDH[5].
Entendeu que o PNDH, recentemente lançado, contemplava
apenas os direitos civis e políticos, ferindo a idéia
da indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos.
Isto levou à proposição de uma série
de medidas para seu aprimoramento e também para a criação
de um instrumento de monitoramento permanente de sua implementação.
O governo acolheu a proposta e criou uma Comissão de
Monitoramento e encaminhou a reformulação do
plano. No entanto, a Comissão só realizou em
todo o período uma única reunião e a
reformulação só foi efetivada cinco anos
depois, em maio de 2002, quando foi lançado o PNDH
II. No processo de reformulação o governo fez
um amplo processo de consulta à sociedade civil. No
entanto, mesmo que o Programa divulgado pelo Governo contemple
a grande maioria das propostas apresentadas pela sociedade
civil, questões estruturais como as questões
que tocam no fim dos cortes na área social, entre outras,
não foram contempladas. A sociedade foi consultada,
mas não teve participação efetiva em
todo o processo de sistematização. O documento
final, mesmo contendo sugestões da sociedade civil,
representa a proposta governamental, sendo, portanto, um programa
mais de governo do que de Estado.
Na
sua reedição, o PNDH foi divulgado com um Plano
de Ação para o ano de 2002. Na ocasião
do seu lançamento, durante a VII Conferência
Nacional de Direitos Humanos (realizada no final de maio de
2002) várias organizações da sociedade
civil saudaram a divulgação de um Plano de Ação,
mas manifestaram profunda preocupação com as
previsões nele contidas, consideradas insuficientes.
Reconhecem o avanço na perspectiva da indivisibilidade
dos direitos, no entanto, entendem que ainda está aquém
de dar um tratamento integral na perspectiva da promoção
da realização dos direitos humanos. Segundo
análise elaborada por entidade da sociedade civil[6],
do total das 518 ações do Plano (PNDH II), 93
referem-se à garantia de direitos junto aos setores
sociais excluídos (18% do total). Os recursos destinados
ao cumprimento destas ações alcançam
o valor de R$ 4,4 milhões do já previsto no
orçamento federal para 2002. Até o início
de outubro de 2002, passados cinco meses do anúncio
do PNDH II e a dois meses do final do exercício fiscal,
a situação da execução orçamentária
dos principais ações nele previstas, em termos
percentuais, encontrava-se na seguinte situação:
1) Atenção à pessoa portadora de deficiência,
25,14%; atenção à criança, 0%
(zero); Combate ao abuso e exploração sexual
de crianças e adolescentes, 95,71%; Etnodesenvolvimento
de sociedades indígenas, 71,07%; Território
e cultura indígenas, 33,75%; Reinserção
social de adolescentes em conflito com a lei, 22,03%; Defesa
dos direitos da criança e do adolescente, 28,68%; Direitos
humanos, direitos de todos (capacitação), 16,33%;
Combate à violência contra a mulher, 48,91%;
Esporte solidário, 0% (zero); Reestruturação
do sistema penitenciário, 14,05%; Assistência
a vítimas e testemunhas ameaçadas, 54,26%; Defesa
dos direitos do consumidor, 41,94%; Assistência jurídica
integral e gratuita 58,9%; Erradicação do trabalho
infantil, 29,80%; Erradicação do trabalho escravo,
54,90%; Assentamentos de trabalhadores rurais, 46,40%. Contrastando,
o mesmo órgão responsável pela execução
destas ações já executou, pagando juros
e amortizações da dívida externa o equivalente
a 70,40% do previsto[7].
Diante
do que dissemos resulta claramente que a era FHC fez um esforço
e manifestou uma disposição concreta, mas contraditoriamente,
ainda deu pouquíssimos passos para que efetivamente
os direitos humanos, além de regra normativa, possam
ser vigentes como políticas públicas, aliás,
o que efetivamente fará com que sejam amplamente realizados.
2.
Responsabilidade Fiscal x Responsabilidade Social: Desigualdade
Nos
últimos anos, a aplicação permanente
da política ditada pelo Consenso de Washington levou
o país a implementar um conjunto de ajustes de política
econômica que o tem levado ao aumento do endividamento
interno e externo e à redução gradativa
dos gastos do governo em investimentos sociais. Estas situações
levam, em conseqüência, a por em risco a garantia
de autodeterminação em termos de modelo de desenvolvimento
e na garantia de avanços na efetivação
dos direitos humanos.
O
total da dívida externa saltou de U$ 148,29 bilhões,
em 1994, para U$ 236,16 bilhões, em 2000. No mesmo
período, o país pagou o montante de U$ 75,89
bilhões em juros e U$ 218,80 bilhões em amortizações,
o que perfaz um total de U$ 294,69 bilhões[8]. Um exercício
matemático elementar mostra que, no período,
o País praticamente pagou em juros e amortizações
quase o equivalente ao que continuava a dever em 2000. No
mesmo período, a dívida cresceu U$ 87,87 bilhões,
em contraste com um pagamento que é mais do que três
vezes este valor. A dívida interna passou de R$ 59,4
bilhões, em 1994, para R$ 555,90 bilhões, em
2000, um crescimento acumulado no período equivalente
a 836%[9]. O saldo da balança de pagamentos saltou,
na última década, de 14,7 para 30,7 bilhões
de dólares e o déficit de contas de transações
correntes passou de 1,7 bilhões para 35,2 bilhões
de dólares nada menos do que 24 vezes mais[10].
O
último acordo com o FMI (em agosto de 2002), feito
com a finalidade de fazer frente ao fluxo de capitais e à
escalada da dívida pública, resultou na disponibilização
de U$ 30 bilhões. Em contrapartida, o País precisa,
já em 2002, garantir um superávit primário
(economia nos gastos públicos) de 3,88% do PIB, e nos
próximos anos de pelo menos 3,75% do PIB. Exige reformas
estruturais consideradas necessárias ao País,
entre as quais está avanço no processo
de alienação dos bancos estaduais federalizados.
Trata-se de uma nova linguagem para falar da privatização
que, desde 1998, já levou à venda do setor de
telecomunicações, parte do setor de energia,
do setor de siderurgia, entre outros, em conseqüência
do acordo realizado naquele ano e que resultou em 12 Emendas
Constitucionais aprovadas de lá para cá com
o intuito objetivo de reduzir a importância econômica
do Estado, acelerando a privatização. Além
disso, este acordo tem uma inovação importante,
introduz uma cláusula que autoriza o FMI a interferir
trimestralmente, podendo sugerir a modificação
da meta de superávit primário prevista[11].
Ora, o que prevê este assunto é a Lei de Diretrizes
Orçamentárias e a Lei Orçamentária,
aprovadas anualmente pelo Congresso Nacional. Com isso, efetivamente
o FMI poderá, se assim achar necessário, condicionar
a aprovação da liberação de novos
recursos já acordados ao cumprimento do que entende
ser meta necessária num ou noutro trimestre ao do ano,
introduzindo possivelmente novas exigências de restrição
na execução orçamentária que,
via de regra, resulta na redução dos gastos
em programas sociais e de investimento.
O
mais grave é que efetivamente este acordo põe
em risco a autonomia do País, tanto em seu processo
de aprovação quanto ao introduzir mecanismos
de incidência direta do FMI na política nacional.
No primeiro caso, o acordo foi feito e aprovado sem passar
pelo Poder Legislativo, o que fere frontalmente a Constituição
Federal, que determina que qualquer financiamento externo
deve ser analisado e autorizado pelo Senado Federal. Esta
situação motivou a apresentação
de uma Representação, assinada por várias
organizações da Sociedade Civil organizada,
pedindo que a Procuradoria Geral da República intervenha,
agindo junto à Justiça, para que os preceitos
constitucionais sejam garantidos[12].
Uma
outra questão que vem preocupando os brasileiros neste
sentido é o processo de implementação
da Área de Livre Comércio das Américas
(ALCA) e a proposta de transferência de controle da
Base de Alcântara[13] ao governo americano. Em plebiscito
popular nacional realizado na primeira semana de setembro
último, mais de 10 milhões de brasileiros (cerca
de 10% do eleitorado) compareceram espontaneamente para votar
e disseram não à ALCA e não à
transferência do controle da Base de Alcântara[14].
Da parte das organizações da sociedade civil
há um posicionamento claro e quase unânime sobre
a repercussão negativa destas medidas, especialmente
no tocante à capacidade de autodeterminação
do País. No campo específico da garantia dos
Direitos Humanos a avaliação também vem
sendo a mesma[15].
O
que também preocupa gravemente a sociedade civil brasileira
é a nova doutrina Bush, enviada no mês de setembro
ao Congresso Americano, na qual fica explícita a posição
belicista, de ameaça preventiva (para nós, para
o governo Bush, segurança preventiva) e de exigência
de alinhamento como condição à ajuda
americana. Esta disposição expressa claramente
a intenção de o governo americano restringir
financiamentos e ajudas a instituições e países
que não se posicionarem a favor da proposta americana[16].
Ademais, não compartilhamos com a perspectiva de impunidade
aos nacionais estadunidenses que possam cometer genocídios,
crimes contra a humanidade ou crimes de guerra, a ser viabilizada
por resoluções do Conselho de Segurança
das Nações Unidas ou mediante acordos bilaterais
entre os Estados Unidos e outros países, no sentido
de evitar a entrega destas pessoas ao Tribunal Penal Internacional
e o exercício da jurisdição universal
ou interna. Nada justifica essa perspectiva de tutela a criminosos
internacionais, sendo contrária ao sistema interamericano
de direitos humanos e ao ordenamento jurídico brasileiro,
ambos a recomendar a igualdade perante a lei e a responsabilidade
penal individual daqueles que atentem contra a consciência
da humanidade.
Este
conjunto de aspectos, somados à crescente dificuldade
de os organismos internacionais de resolução
multilateral de conflitos, especialmente da ONU (Organização
das Nações Unidas), vem indicando o avanço
do unilateralismo e a maior dificuldade, portanto, de cada
País, implementar, por seus próprios meios democráticos
o modelo de desenvolvimento e os instrumentos concretos para
realizá-lo. O contexto de globalização
exige novos posicionamentos e haveria de ensejar o aprimoramento
das relações multilaterais e democráticas
também em nível internacional e, em conseqüência
o fortalecimento dos organismos mundiais e regionais de garantia
de solução pacífica de conflitos e de
proteção dos direitos fundamentais.
Deste
quadro, ao menos resulta evidente o risco que países
como o Brasil correm no sentido de terem condições
de garantia de sua autodeterminação e também
de garantir a efetiva execução de políticas
que possam primar pela garantia dos direitos humanos fundamentais.
Passemos a analisar a repercussão deste quadro no caso
específico dos DhESC.
A
análise do investimento público em programas
sociais indica que houve leve crescimento. Segundo o próprio
governo, os gastos sociais, que eram de 13% do PIB em 1995,
passaram a 14% em 1998 e 1999[17]. Contrastando, porém,
o impacto dos gastos com juros e encargos da dívida
interna e externa aos gastos sociais, fica claro o potencial
que vem sendo simplesmente escoado para tal fim em detrimento
da aplicação na garantia dos direitos sociais
e de investimentos para sua garantia. Em 2002, até
26 de julho, em razão da exigência de superávit
primário, os gastos públicos sociais têm
sido reduzidos[18]. No mesmo período, no entanto, os
compromissos com pagamentos de juros, encargos e amortizações
das dívidas públicas interna e externa, têm
sido mantidos e até ampliados, conforme acordado com
o Fundo Monetário Internacional desde 1998. De janeiro
a 26 de julho 2002, o governo federal gastou, com este item
do orçamento, um total de R$ 57,46 bilhões ou
35,45% da disponibilidade líquida do Poder Executivo.
Para ter um comparativo, em 1995, os pagamentos com os serviços
das dívidas externa e interna representavam 17,15%
da disponibilidade líquida do Poder Executivo[19].
Estes dados mostram claramente o sentido das prioridades.
Podemos afirmar, com toda a certeza: não está
nesta lista a promoção ao máximo dos
direitos.
O
Brasil é um dos países com os maiores índices
de desigualdade do mundo e com um grande contingente de pobreza
e miséria, o que gera um contingente amplo de brasileiros
excluídos do acesso aos direitos fundamentais.
Os
últimos dados[20] sobre a situação no
Brasil indica que o Governo brasileiro conseguiu melhorar
alguns índices[21], mas não o suficiente para
avançar na distribuição de renda: a renda
média do brasileiro caiu 10,3% nos últimos cinco
anos no caso dos mais pobres a queda foi ainda maior,
de 11,6% e dos mais ricos a perda foi menor, de 9,1% (os 10%
mais ricos controlam cerca de 50% da renda e os 50% mais pobres
controlam 10% da renda); o índice de Gini permanece
estável na faixa de 0,575; o desemprego aumentou de
7%, em 1996, para 9,4% da População Economicamente
Ativa, em 2001; a distribuição dos rendimentos
indica que os 10% da população que ganham menos
recebiam, em 2001, um salário equivalente a R$ 61,00
e controlam menos de 1% dos rendimentos, enquanto os 10% que
ganham mais passaram de uma renda de R$ 7,53 mil para R$ 7,92
mil; dos trabalhadores empregados, 63% ganha até três
salários mínimos[22]; o Índice de Desenvolvimento
Humano passou de 0,753, em 1999, para 0,757, em 2000[23].
O
número dos brasileiros que vivem na indigência
e na pobreza[24], segundo dados do Governo, apesar de uma
leve diminuição, ainda é alto: em 1998,
21,4 milhões de brasileiros eram considerados indigentes
(13,9% da população); 50,1 milhões estavam
na pobreza (32,7% da população)[25]. Segundo
um organismo do próprio governo, considerando o nível
de renda per capita que o país atingiu a partir dos
anos 1970, poderíamos ter hoje uma incidência
da pobreza de em torno de 10% (mais de 1/3 a menos do que
a registrada), considerando a média mundial de concentração
de renda[26]. Em suma, poderíamos dizer que o Brasil
é recordista mundial em concentração
de renda; 15,8% da população não têm
acesso às condições mínimas de
higiene, educação e saúde; 11,4% morrem
antes de completar 40 anos; 16% são analfabetos[27].
Se
lermos a questão pelo viés étnico, por
exemplo, teremos uma mostra clara da desigualdade. Um estudo
feito com base no Índice de Desenvolvimento Humano,
de 1999, indica claramente que à época o Brasil
ocupava a 79 posição no ranking dos países.
Porém, considerando-se a população negra,
o Brasil ocuparia a 108 posição, enquanto com
base na população branca ocuparia o 49 lugar[28].
Estudo sobre a pobreza indica que a população
negra no Brasil representa 45,3% do total, no entanto, entre
os pobres 63,6% são negros e dos indigentes 68,8% são
negros[29]. A taxa de analfabetismo é de 19,8% se considerada
a população negra com mais de 15 anos de idade
e de 8,3% se considerarmos a população branca[30].
A taxa de mortalidade infantil, em 1996, considerando a população
branca era de 37,3%; considerando a população
negra era de 62,3%, uma diferença de 25%[31]. Segundo
Cano, No Rio de Janeiro e em São Paulo, a probabilidade
de os negros serem mortos pela polícia é três
vezes maior do que o seu peso na população[32].
Uma
Comissão Mista Especial do Congresso Nacional, criada
no segundo semestre de 1999 para estudar as causas estruturais
e conjunturais da pobreza e das desigualdades sociais e apresentar
soluções concluiu que: Os resultados (das
pesquisas), além de mostrarem um grau de desigualdade
muito alto, revelam que essa desigualdade não tem se
atenuado nos últimos tempos, mantendo, ao contrário,
uma elevada estabilidade, pois o grau de desigualdade hoje
é praticamente o mesmo de vinte anos atrás[33].
O
quadro aqui rapidamente descrito, apesar de não ser
exaustivo, indica claramente que há um amplo contingente
de brasileiros excluídos do acesso às condições
básicas de satisfação de seus direitos
fundamentais. A pobreza no Brasil tem cara: é negra,
mulher.
3.
Luta Social e Criminalização dos Movimentos
O
movimento social brasileiro tem uma tradição
clara de organização forte e de ampla capacidade
de mobilização da sociedade brasileira, além
de vir desenvolvendo capacidade de monitoramento e de controle
social junto aos Conselhos de Direitos (da Saúde, da
Criança e do Adolescente, entre muitos outros). Sem
exagero, pode-se dizer que, em boa medida, as conquistas sociais
configuradas constitucionalmente são fruto da mobilização
social (milhares de assinaturas para propostas de emendas).
Avanços significativos em legislações
ordinárias que vem para a proteção dos
direitos também contaram com ampla participação
popular. Entre os diversos casos, citamos o Estatuto da Criança
e do Adolescente, a Lei Orgânica da Saúde, a
Lei Orgânica da Assistência Social, todas fruto
de ampla mobilização social. Outro exemplo é
o da Lei que torna crime a corrupção eleitoral,
fruto de um Projeto de Lei de iniciativa popular, com mais
de um milhões de assinaturas.
No
entanto, nos últimos anos o país tem assistido
a um processo de perseguição de lideranças
destas organizações. O quadro mais objetivo
é demonstrado pela perseguição a lideranças
da luta pela terra. Segundo dados da Comissão Pastoral
da Terra[34], de janeiro a agosto de 2002, foram registrados
346 conflitos que envolveram 286.095 pessoas; foram registrados
16 assassinatos, 20 tentativas de assassinato, 73 pessoas
estão ameaçadas de morte, 10 foram torturadas,
31 foram agredidas fisicamente, 111 foram presas e 3 foram
feridas[35].
Do
ponto de vista institucional a disposição do
governo no sentido da criminalização dos conflitos
no campo, por exemplo, está manifesto na Medida Provisória
n. 2.183, através da nova redação que
dá especialmente aos parágrafos 6, 7, 8 e 9,
do artigo 2, da Lei 8.629/93, impedindo de vistoria para desapropriação
os imóveis que tenham sido ocupados; impedindo pessoas
participantes de ocupações de receberem terra
e impedindo organizações que patrocinem ocupações
de receber recursos públicos. Estas medidas têm
objetivo claro de inibir o processo organizativo autônomo
das populações despossuídas da terra
e penalizar as pessoas e entidades que agirem ocupando áreas
improdutivas na tentativa de fazer avançar o processo
de reforma agrária no país.
Esta
situação mostra a vigência de uma contradição
estrutural na sociedade brasileira. De um lado, o avanço
da organização e da mobilização
social e a conseqüente ampliação dos espaços
institucionais para sua participação no controle
social do Estado. De outro, a permanência de resquícios
de ação autoritária do Estado no sentido
de inibir a livre manifestação da sociedade
em vista da garantia de seus direitos fundamentais.
A
modo de conclusão
Em
suma podemos dizer que a era FHC pode ser entendida como um
período que contraditoriamente flertou com os direitos
humanos. Falamos flertou porque objetivamente fez movimentos
e tentativas concretas para que do plano normativo estritamente
pudessem ganhar lugar também como políticas
públicas. No entanto, o eixo de ação
das políticas públicas, guiado pelo ajuste estrutural,
acabou por depor contra a garantia efetiva dos direitos fundamentais,
levando ao agravamento da desigualdade e até a tentativa
de criminalização dos movimentos e lideranças
sociais.
Neste
sentido, a luta pelos direitos humanos no Brasil, a partir
da era FHC, não por obra sua, mas por ação
forte da sociedade civil organizada que efetivamente tem lançado
mão dos direitos humanos como instrumento de luta social,
passa a ganhar força política central e a medida
do avanço da sua efetivação nos próximos
anos será a capacidade de o governo traduzi-los em
ações e políticas públicas efetivas
para o enfrentamento da desigualdade, caminhando, portanto,
para a responsabilidade social. À sociedade, por seu
turno, cabe aprimorar os instrumentos e mecanismos de controle
e monitoramento da ação pública e de
garantia dos direitos humanos. O legado da inclusão
dos direitos humanos na pauta política é um
avanço que gera novos compromissos e exigências.
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[1]
Secretário Executivo da Plataforma Brasileira de Direitos
Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Plataforma
DhESC Brasil) e Coordenador Nacional de Formação
do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Para a construção
deste documento utilizou-se como base o Documento Base: A
Situação dos Direitos Humanos no Brasil, elaborado
e apresentado pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos
(MNDH) junto à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH/OEA) no dia 15 de outubro de 2002, na primeira
audiência sobre a situação geral dos direitos
humanos no Brasil ocorrida no sistema OEA. Agradecemos ao
MNDH por disponibilizar o acesso a este documento.
[2]
Artigo 196 a 200 da Constituição Federal e Lei
Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/90 e 8142/91)
[3]
Emenda Constitucional n. 26, de 2000, que modifica o artigo
6 da Constituição Federal garantindo o direito
à moradia como direito fundamental e o Estatuto da
Cidade, Lei n. 10527/01.
[4]
Espaço de debate e de articulação de
organizações da sociedade em vista dos direitos
humanos. Organizada pela Comissão de Direitos Humanos
da Câmara dos Deputados e por várias organizações
da sociedade civil, é realizada anualmente e, em maio
deste ano, ocorreu sua sétima edição.
[5]
Literalmente: O Programa Nacional de Direitos Humanos
(...) priorizou apenas os direitos civis e políticos
(...). Tal priorização fere inteiramente o princípio
da indivisibilidade dos direitos humanos, aprovado com a participação
ativa do Governo brasileiro na Segunda Conferência Mundial
dos Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993 (Cf.
COMISSAO DE DIREITOS HUMANOS. O Programa Nacional de
Direitos Humanos. Relatório da II Conferência
Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Câmara
dos Deputados, 1998, p.35)H
[6]
Cf. INESC. Nota Técnica n. 61. PNDH II: Compromisso
político ou marketing? maio 2002 (www.inesc.org.br).
[7]
Fonte: SIAFI/STN/COFF-CD e PRODASEN. Elaboração:
INESC (especialmente para este documento). Considerada a execução
até 04/10/02. O percentual de execução
é obtido através da divisão entre a despesa
liquidada e a dotação inicial. Representa a
parcela da dotação inicial que foi gasta no
período.
[8]
Fonte: Boletins do Banco Central do Brasil. 1994 e 2001.
[9]
Secretaria do Tesouro Nacional e Banco Central do Brasil (www.stn.gov.br
e www.bacen.gov.br).
[10]
Cf. PIDHDD. Panorama de lãs principales violaciones
a los rerechos econômicos, sociales y culturales (desc)
en América Latina. IN: Cuadernos DESC, n. 3, 2002,
p. 20. Relatório da Audiência sobre la situación
de los derechos económicos, sociales y culturales en
las Américas (114 Período de Sesiones).
[11]
Segundo Fernando Dantas, articulista do Jornal O Estado de
São Paulo: O FMI pode, teoricamente, impor um
aumento do superávit primário anual para 2003
já em dezembro deste ano, na primeira revisão
do acordo fechado em agosto ou em março do próximo
ano, já com o governo eleito governando o país.
O superávit primário acertado para 2003 é
de 3,75% do PIB. Este poder do FMI foi incluído neste
novo acordo por meio de uma cláusula que não
existia nos acordos anteriores e nas suas revisões
trimestrais. (...) tal como está escrito, a cláusula
implica que, se o FMI considerar que não houve entendimento
(e, para isto, basta não se satisfazer com a posição
e argumentos brasileiros), poderá haver um impasse
nas revisões trimestrais e a não liberação
dos recursos previstos no acordo. Em outras palavras, se não
houver entendimento, o FMI poderá suspender a liberação
dos U$ 24 bilhões prometidos para o Brasil em 2003
(Cf. Jornal O Estado de São Paulo de 05/09/02)
[12]
A ação foi coordenada pela REDE BRASIL sobre
Instituições Financeiras Multilaterais e foi
assinada por dezenas de organizações da sociedade
civil, tendo sido entregue ao Ministério Público
Federal no início de setembro.
[13]
A avaliação da sociedade civil é que
a transferência do controle da Base de Alcântara,
nos termos atualmente em discussão pelo Congresso Nacional
significa romper com a soberania nacional e abrir o território
brasileiro para a política de segurança do governo
Bush que inclui o Plano Colômbia como ação
importante. Alcântara não é inofensiva.
Está no centro da nova política americana para
a América Latina.
[14]
O Plebiscito foi coordenado pela Campanha Jubileu Sul/Brasil,
da qual participam, organizações religiosas,
sindicais, populares, ONGs e partidos de esquerda. Segundo
os organizadores, votaram 10.149.542 brasileiros/as. Deste
total 1,12% disseram sim e 98,33% Não à pergunta
se o governo brasileiro deve assinar o tratado da ALCA (0,55%
votaram branco ou anularam o voto). Perguntados se o Brasil
deve continuar nas negociações da ALCA, 3,37%
disseram sim; 95,94% não; e 0;70% votaram branco ou
anularam o voto. No mesmo plebiscito, perguntados sobre se
o governo brasileiro deve entregar parte do território
a Base de Alcântara para controle militar
dos Estados Unidos, os brasileiros responderam: 0,65% sim;
98,59% não, sendo que 0,22% votaram branco ou anularam
o voto. Dados fornecidos pela Coordenação do
Plebiscito e colhidos junto a www.adital.org.br.
[15]
Cf. Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa do Rio Grande do Sul. Dignidade Sim, Alca Não!
Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais e a
Área de Livre Comércio das Américas.
Porto Alegre: Corag, 2002.
[16]
Reportagem da Revista Isto É Dinheiro diz que: Ao
enviar seu projeto de doutrina de segurança nacional
ao Congresso, há dez dias, Bush avisou que vai retirar
o financiamento das instituições que não
atenderem os interesses americanos. O diretor-gerente do Fundo
[FMI] logo demonstrou que está afinado com o discurso
guerreiro de Bush: Se a ação for rápida
e restrita ao Iraque, o impacto econômico será
pequeno e poderá haver, inclusive, efeitos positivos,
porque a situação ficará mais clara,
disse Köhler. O interesse do governo Bush é também
pressionar países como o Brasil e a Argentina a manter
o rumo de liberalização econômica.
(A pressão do Fundo. Revista Isto É Dinheiro.
N. 266, 02/10/02, p. 30).
[17]
Cf. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão. Evolução recente das condições
e das políticas sociais no Brasil. Brasília:
IPEA, 2001, p.21.
[18]
Cf. INESC. Boletim Orçamento. Ano I, n. 1, agosto 2002,
p. 1.
[19]
Cf. INESC. Boletim Orçamento. Ano I, n. 1, agosto 2002,
p. 5.
[20]
Cf. IBGE. PNAD 2001(www.ibge.gov.br).
[21]
É o caso da redução de crianças
fora da escola, de 8,7%, em 1996, para 3,5% em 2001. A faixa
de população que tem 11 anos ou mais de estudo
cresceu de 16,3% para 21,7% no mesmo período. Houve
também redução da incidência do
trabalho infantil (pessoas de 5 a 17 anos ocupadas), que caiu
para 12,7%, sendo que entre 1999 e 2001 recuou 27%. No entanto
ainda são 5,4 milhões de crianças trabalhando,
das quais, 296,7 mil têm idade entre 5 e 9 anos e se
encontra em áreas rurais (81%). (Dados colhidos de
www.ibge.gov.br e trabalhados pelo Jornal Valor Econômico,
de 13, 14 e 15/09/02, p. A12.
[22]
Cf. Jornal Valor Econômico, 13, 14 e 15/09/02, p. A12;
Jornal Gazeta Mercantil, 13/09/02, p. A-6. A pesquisa mostra
ainda que o número de famílias chefiadas por
mulheres passou de 24,2% para 27,3%
[23]
Cf. PNUD. O Brasil no RDH 2002. Relatório de Desenvolvimento
Humano 2002. Brasília: PNUD, 2002 (www.undp.org.br).
[24]
São considerados pobres os brasileiros situados abaixo
da linha de pobreza e são considerados indigentes os
brasileiros que estão situados abaixo da linha de extrema
pobreza. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
(IPEA) usa linhas regionalizadas (mínimo de 68 e máximo
de 126 reais por pessoa/mês para fazer os cálculos).
Cf. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão. Evolução recente das condições
e das políticas sociais no Brasil. Brasília:
IPEA, 2001, p.12.
[25]
Cf. BARROS, R; HENRIQUES, R; MENDONÇA, R. Desigualdade
e pobreza no Brasil: a estabilidade inaceitável. Brasília:
IPEA, 2000. Em 1995, 14,6% dos brasileiros eram indigentes
e 33,9% pobres.
[26]
Cf. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento
e Gestão. Evolução recente das condições
e das políticas sociais no Brasil. Brasília:
IPEA, 2001, p.20.
[27]
Cf. PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 1999.
(www.undp.org.br).
[28]
FASE, apud, ThEMIS. Caminhos para a igualdade nas relações
raciais. Porto Alegre: ThEMIS, 2002, p.21
[29]
IPEA. Texto para Debate, n. 807, julho de 2001, com base nos
dados de IBGE. PNAD 1999.
[30]
Idem. Ibidem.
[31]
HERINGER, Rosana. Desigualdade racial no Brasil. 2000. Fonte:
IBGE. PNAD 1998.
[32]
CANO, Ignácio. Racial Bias in Lethal Police Action
in Brazil. Mimeo, 2000.
[33]
Cf. Congresso Nacional. Relatório Final da Comissão
Mista Especial de Combate à Pobreza. Apud, CARVALHO,
F.; DURÃO, J.E.S.; CORREA, S. Ajuste Econômico
e Desajuste Social. Rio de Janeiro: Social Watch, 2000.
[34]
Fonte: Setor de Documentação da Secretaria Nacional
da Comissão Pastoral da Terra.
Cf.
www.cptnac.com.br/conflitos/index.htm em 07/10/02.
[35]
Segundo a CPT, em 2001, foram registrados 880 conflitos que
envolveram 426.102 pessoas; foram registrados 29 assassinatos,
37 tentativas de assassinato, 132 pessoas foram ameaçadas
de morte, 15 foram torturadas, 33 foram agredidas fisicamente,
254 foram presas e 40 foram feridas. Em 2000, foram registrados
1.024 conflitos que envolveram 555.979 pessoas; foram registrados
30 assassinatos, 12 tentativas de assassinato, 80 pessoas
foram ameaçadas de morte, 8 foram torturadas, 37 foram
agredidas fisicamente, 170 foram presas e 56 sofreram lesões
corporais. Fonte: Setor de Documentação da Secretaria
Nacional da Comissão Pastoral da Terra. Cf.
www.cptnac.com.br/conflitos/index.htm em 07/10/02.
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