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Relatórios


A luta pelos direitos humanos no Brasil, a partir da era FHC, não por obra sua, mas por ação forte da sociedade civil organizada que efetivamente tem lançado mão dos direitos humanos como instrumento de luta social, passa a ganhar força política central. E a medida do avanço da sua efetivação nos próximos anos será a capacidade de o governo traduzi-los em ações e políticas públicas efetivas para o enfrentamento da desigualdade, caminhando, portanto, para a responsabilidade social.

Os DhESC na Era FHC: Breve Balanço de Situação

Paulo César Carbonari[1]        

A tarefa a que estamos nos propondo não é fácil, por mais breve que seja o balanço da questão dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais nos últimos oito anos, nos quais estivemos sob o governo de FHC. Em razão disso, entendemos que é necessário selecionar algumas questões significativas e relevantes que possam ilustrar a situação brasileira. A complexidade da situação e mesmo as diversas leituras que são feitas ou que podem ser feitas dela nos remetem ao reconhecimento de que o que faremos é não mais do que uma leitura, crítica, deste momento histórico que vivemos como agentes sociais mais do que como espectadores.

A rigor poderíamos classificar preliminarmente a era FHC em matéria de direitos humanos, particularmente de DhESC, nos seguintes aspectos: a) o governo qualificou o lugar dos direitos humanos, contraditoriamente, procurou leva-los do plano normativo para o político; b) o seguimento do receituário do Consenso restringiu as condições para a garantia efetiva do acesso aos direitos; c) Mesmo numa sociedade democrática, contraditoriamente o governo tem procurado restringi e até criminalizar a ação de movimentos sociais. Passaremos em revista rapidamente cada um dos aspectos.

1. Direitos Humanos: Tentativa de torná-los políticas

O Brasil ratificou a maioria dos principais instrumentos globais e regionais de proteção dos direitos humanos. A Constituição Brasileira reconhece integralmente a vigência dos direitos humanos. Boa parte dos direitos fundamentais (tanto civis e políticos quanto econômicos, sociais e culturais) conta com normatização através de legislações específicas. Exemplos são a garantia do Direito à Saúde[2] e o Direito à Moradia[3]. Apesar de em alguns casos específicos haver necessidade de aprimoramento dos instrumentos legais disponíveis, especialmente no sentido da complementação com normatizações operacionais, na imensa maioria das áreas, o Brasil reconhece, em termos de marco legal, os direitos humanos, estando, portanto, dotado de recursos fundamentais para a promoção e proteção dos direitos humanos.

Nesta mesma linha, também contamos com diversas instâncias de proteção e controle social de direitos específicos, os Conselhos e Comitês compostos por representação dos órgãos públicos e da sociedade civil organizada, tanto em nível federal quanto dos Estados e dos Municípios. Exemplos são o Comitê Nacional para os Refugiados e os Conselhos de Saúde, de Criança e Adolescente, de Assistência Social, para citar alguns. O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – em funcionamento há quase 20 anos – é a instância específica de proteção dos Direitos Humanos. Com capacidade de atuação restrita, goza de pouca autonomia em relação ao Poder Executivo. Neste último caso, no entanto, mesmo havendo um Projeto de Lei que modifica o conselho tramitando há mais de 10 anos no Congresso Nacional, o governo não fez qualquer movimento para vê-lo aprovado.

Todos os recursos que indicamos acima não são obra de FHC. A sociedade já contava com a maioria deles antes de sua chegada à Presidência. A novidade por ele introduzida no assunto direitos humanos, especificamente, foi a criação da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos (SEDH), vinculada ao Ministério da Justiça e a publicação, em maio de 1996, do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O Programa é um instrumento que tem cumprido a função de direcionar a intencionalidade do Poder Público em matéria de Direitos Humanos. A Secretaria é o órgão encarregado para a execução de políticas públicas e coordenar a ação governamental no campo dos direitos humanos em geral. A construção destes dois instrumentos, apesar de todas as debilidades que têm, caracteriza uma sinalização clara da tentativa de elevar os direitos humanos da condição meramente normativa para a política. Esta medida é contraditória, pois foi permanentemente tencionada no governo e não conseguiu avançar em afirmação e força. Mostras disso é que a SEDH tem pouca força para fomentar ações articuladas e coordenadas em sentido a amplo com os diversos órgãos do governo e mesmo com a sociedade e, ademais, conta com uma baixa dotação orçamentária (normalmente vítima de cortes em razão do superávit primário) e praticamente não dispõe de mecanismos e instrumentos de monitoramento da execução das ações previstas. Como esta situação acaba por afetar diretamente a execução do PNDH, em grande medida esta acaba por constituir-se numa carta de intenções.

Na II Conferência Nacional de Direitos Humanos[4], em 1997, portanto, um ano após a divulgação do Programa Nacional de Direitos Humanos, o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) denunciou a parcialidade do PNDH[5]. Entendeu que o PNDH, recentemente lançado, contemplava apenas os direitos civis e políticos, ferindo a idéia da indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos. Isto levou à proposição de uma série de medidas para seu aprimoramento e também para a criação de um instrumento de monitoramento permanente de sua implementação. O governo acolheu a proposta e criou uma Comissão de Monitoramento e encaminhou a reformulação do plano. No entanto, a Comissão só realizou em todo o período uma única reunião e a reformulação só foi efetivada cinco anos depois, em maio de 2002, quando foi lançado o PNDH II. No processo de reformulação o governo fez um amplo processo de consulta à sociedade civil. No entanto, mesmo que o Programa divulgado pelo Governo contemple a grande maioria das propostas apresentadas pela sociedade civil, questões estruturais como as questões que tocam no fim dos cortes na área social, entre outras, não foram contempladas. A sociedade foi consultada, mas não teve participação efetiva em todo o processo de sistematização. O documento final, mesmo contendo sugestões da sociedade civil, representa a proposta governamental, sendo, portanto, um programa mais de governo do que de Estado.

Na sua reedição, o PNDH foi divulgado com um Plano de Ação para o ano de 2002. Na ocasião do seu lançamento, durante a VII Conferência Nacional de Direitos Humanos (realizada no final de maio de 2002) várias organizações da sociedade civil saudaram a divulgação de um Plano de Ação, mas manifestaram profunda preocupação com as previsões nele contidas, consideradas insuficientes. Reconhecem o avanço na perspectiva da indivisibilidade dos direitos, no entanto, entendem que ainda está aquém de dar um tratamento integral na perspectiva da promoção da realização dos direitos humanos. Segundo análise elaborada por entidade da sociedade civil[6], do total das 518 ações do Plano (PNDH II), 93 referem-se à garantia de direitos junto aos setores sociais excluídos (18% do total). Os recursos destinados ao cumprimento destas ações alcançam o valor de R$ 4,4 milhões do já previsto no orçamento federal para 2002. Até o início de outubro de 2002, passados cinco meses do anúncio do PNDH II e a dois meses do final do exercício fiscal, a situação da execução orçamentária dos principais ações nele previstas, em termos percentuais, encontrava-se na seguinte situação: 1) Atenção à pessoa portadora de deficiência, 25,14%; atenção à criança, 0% (zero); Combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, 95,71%; Etnodesenvolvimento de sociedades indígenas, 71,07%; Território e cultura indígenas, 33,75%; Reinserção social de adolescentes em conflito com a lei, 22,03%; Defesa dos direitos da criança e do adolescente, 28,68%; Direitos humanos, direitos de todos (capacitação), 16,33%; Combate à violência contra a mulher, 48,91%; Esporte solidário, 0% (zero); Reestruturação do sistema penitenciário, 14,05%; Assistência a vítimas e testemunhas ameaçadas, 54,26%; Defesa dos direitos do consumidor, 41,94%; Assistência jurídica integral e gratuita 58,9%; Erradicação do trabalho infantil, 29,80%; Erradicação do trabalho escravo, 54,90%; Assentamentos de trabalhadores rurais, 46,40%. Contrastando, o mesmo órgão responsável pela execução destas ações já executou, pagando juros e amortizações da dívida externa o equivalente a 70,40% do previsto[7].

Diante do que dissemos resulta claramente que a era FHC fez um esforço e manifestou uma disposição concreta, mas contraditoriamente, ainda deu pouquíssimos passos para que efetivamente os direitos humanos, além de regra normativa, possam ser vigentes como políticas públicas, aliás, o que efetivamente fará com que sejam amplamente realizados.

2. Responsabilidade Fiscal x Responsabilidade Social: Desigualdade

Nos últimos anos, a aplicação permanente da política ditada pelo Consenso de Washington levou o país a implementar um conjunto de ajustes de política econômica que o tem levado ao aumento do endividamento interno e externo e à redução gradativa dos gastos do governo em investimentos sociais. Estas situações levam, em conseqüência, a por em risco a garantia de autodeterminação em termos de modelo de desenvolvimento e na garantia de avanços na efetivação dos direitos humanos.

O total da dívida externa saltou de U$ 148,29 bilhões, em 1994, para U$ 236,16 bilhões, em 2000. No mesmo período, o país pagou o montante de U$ 75,89 bilhões em juros e U$ 218,80 bilhões em amortizações, o que perfaz um total de U$ 294,69 bilhões[8]. Um exercício matemático elementar mostra que, no período, o País praticamente pagou em juros e amortizações quase o equivalente ao que continuava a dever em 2000. No mesmo período, a dívida cresceu U$ 87,87 bilhões, em contraste com um pagamento que é mais do que três vezes este valor. A dívida interna passou de R$ 59,4 bilhões, em 1994, para R$ 555,90 bilhões, em 2000, um crescimento acumulado no período equivalente a 836%[9]. O saldo da balança de pagamentos saltou, na última década, de 14,7 para 30,7 bilhões de dólares e o déficit de contas de transações correntes passou de 1,7 bilhões para 35,2 bilhões de dólares – nada menos do que 24 vezes mais[10].

O último acordo com o FMI (em agosto de 2002), feito com a finalidade de fazer frente ao fluxo de capitais e à escalada da dívida pública, resultou na disponibilização de U$ 30 bilhões. Em contrapartida, o País precisa, já em 2002, garantir um superávit primário (economia nos gastos públicos) de 3,88% do PIB, e nos próximos anos de pelo menos 3,75% do PIB. Exige “reformas estruturais” consideradas necessárias ao País, entre as quais está “avanço no processo de alienação dos bancos estaduais federalizados”. Trata-se de uma nova linguagem para falar da privatização que, desde 1998, já levou à venda do setor de telecomunicações, parte do setor de energia, do setor de siderurgia, entre outros, em conseqüência do acordo realizado naquele ano e que resultou em 12 Emendas Constitucionais aprovadas de lá para cá com o intuito objetivo de reduzir a importância econômica do Estado, acelerando a privatização. Além disso, este acordo tem uma inovação importante, introduz uma cláusula que autoriza o FMI a interferir trimestralmente, podendo sugerir a modificação da meta de superávit primário prevista[11]. Ora, o que prevê este assunto é a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária, aprovadas anualmente pelo Congresso Nacional. Com isso, efetivamente o FMI poderá, se assim achar necessário, condicionar a aprovação da liberação de novos recursos já acordados ao cumprimento do que entende ser meta necessária num ou noutro trimestre ao do ano, introduzindo possivelmente novas exigências de restrição na execução orçamentária que, via de regra, resulta na redução dos gastos em programas sociais e de investimento.

O mais grave é que efetivamente este acordo põe em risco a autonomia do País, tanto em seu processo de aprovação quanto ao introduzir mecanismos de incidência direta do FMI na política nacional. No primeiro caso, o acordo foi feito e aprovado sem passar pelo Poder Legislativo, o que fere frontalmente a Constituição Federal, que determina que qualquer financiamento externo deve ser analisado e autorizado pelo Senado Federal. Esta situação motivou a apresentação de uma Representação, assinada por várias organizações da Sociedade Civil organizada, pedindo que a Procuradoria Geral da República intervenha, agindo junto à Justiça, para que os preceitos constitucionais sejam garantidos[12].

Uma outra questão que vem preocupando os brasileiros neste sentido é o processo de implementação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e a proposta de transferência de controle da Base de Alcântara[13] ao governo americano. Em plebiscito popular nacional realizado na primeira semana de setembro último, mais de 10 milhões de brasileiros (cerca de 10% do eleitorado) compareceram espontaneamente para votar e disseram não à ALCA e não à transferência do controle da Base de Alcântara[14]. Da parte das organizações da sociedade civil há um posicionamento claro e quase unânime sobre a repercussão negativa destas medidas, especialmente no tocante à capacidade de autodeterminação do País. No campo específico da garantia dos Direitos Humanos a avaliação também vem sendo a mesma[15].

O que também preocupa gravemente a sociedade civil brasileira é a nova doutrina Bush, enviada no mês de setembro ao Congresso Americano, na qual fica explícita a posição belicista, de ameaça preventiva (para nós, para o governo Bush, segurança preventiva) e de exigência de alinhamento como condição à ajuda americana. Esta disposição expressa claramente a intenção de o governo americano restringir financiamentos e ajudas a instituições e países que não se posicionarem a favor da proposta americana[16]. Ademais, não compartilhamos com a perspectiva de impunidade aos nacionais estadunidenses que possam cometer genocídios, crimes contra a humanidade ou crimes de guerra, a ser viabilizada por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas ou mediante acordos bilaterais entre os Estados Unidos e outros países, no sentido de evitar a entrega destas pessoas ao Tribunal Penal Internacional e o exercício da jurisdição universal ou interna. Nada justifica essa perspectiva de tutela a criminosos internacionais, sendo contrária ao sistema interamericano de direitos humanos e ao ordenamento jurídico brasileiro, ambos a recomendar a igualdade perante a lei e a responsabilidade penal individual daqueles que atentem contra a consciência da humanidade.

Este conjunto de aspectos, somados à crescente dificuldade de os organismos internacionais de resolução multilateral de conflitos, especialmente da ONU (Organização das Nações Unidas), vem indicando o avanço do unilateralismo e a maior dificuldade, portanto, de cada País, implementar, por seus próprios meios democráticos o modelo de desenvolvimento e os instrumentos concretos para realizá-lo. O contexto de globalização exige novos posicionamentos e haveria de ensejar o aprimoramento das relações multilaterais e democráticas também em nível internacional e, em conseqüência o fortalecimento dos organismos mundiais e regionais de garantia de solução pacífica de conflitos e de proteção dos direitos fundamentais.

Deste quadro, ao menos resulta evidente o risco que países como o Brasil correm no sentido de terem condições de garantia de sua autodeterminação e também de garantir a efetiva execução de políticas que possam primar pela garantia dos direitos humanos fundamentais. Passemos a analisar a repercussão deste quadro no caso específico dos DhESC.

A análise do investimento público em programas sociais indica que houve leve crescimento. Segundo o próprio governo, os gastos sociais, que eram de 13% do PIB em 1995, passaram a 14% em 1998 e 1999[17]. Contrastando, porém, o impacto dos gastos com juros e encargos da dívida interna e externa aos gastos sociais, fica claro o potencial que vem sendo simplesmente escoado para tal fim em detrimento da aplicação na garantia dos direitos sociais e de investimentos para sua garantia. Em 2002, até 26 de julho, em razão da exigência de superávit primário, os gastos públicos sociais têm sido reduzidos[18]. No mesmo período, no entanto, os compromissos com pagamentos de juros, encargos e amortizações das dívidas públicas interna e externa, têm sido mantidos e até ampliados, conforme acordado com o Fundo Monetário Internacional desde 1998. De janeiro a 26 de julho 2002, o governo federal gastou, com este item do orçamento, um total de R$ 57,46 bilhões ou 35,45% da disponibilidade líquida do Poder Executivo. Para ter um comparativo, em 1995, os pagamentos com os serviços das dívidas externa e interna representavam 17,15% da disponibilidade líquida do Poder Executivo[19]. Estes dados mostram claramente o sentido das prioridades. Podemos afirmar, com toda a certeza: não está nesta lista a promoção ao máximo dos direitos.

O Brasil é um dos países com os maiores índices de desigualdade do mundo e com um grande contingente de pobreza e miséria, o que gera um contingente amplo de brasileiros excluídos do acesso aos direitos fundamentais.

Os últimos dados[20] sobre a situação no Brasil indica que o Governo brasileiro conseguiu melhorar alguns índices[21], mas não o suficiente para avançar na distribuição de renda: a renda média do brasileiro caiu 10,3% nos últimos cinco anos – no caso dos mais pobres a queda foi ainda maior, de 11,6% e dos mais ricos a perda foi menor, de 9,1% (os 10% mais ricos controlam cerca de 50% da renda e os 50% mais pobres controlam 10% da renda); o índice de Gini permanece estável na faixa de 0,575; o desemprego aumentou de 7%, em 1996, para 9,4% da População Economicamente Ativa, em 2001; a distribuição dos rendimentos indica que os 10% da população que ganham menos recebiam, em 2001, um salário equivalente a R$ 61,00 e controlam menos de 1% dos rendimentos, enquanto os 10% que ganham mais passaram de uma renda de R$ 7,53 mil para R$ 7,92 mil; dos trabalhadores empregados, 63% ganha até três salários mínimos[22]; o Índice de Desenvolvimento Humano passou de 0,753, em 1999, para 0,757, em 2000[23].

O número dos brasileiros que vivem na indigência e na pobreza[24], segundo dados do Governo, apesar de uma leve diminuição, ainda é alto: em 1998, 21,4 milhões de brasileiros eram considerados indigentes (13,9% da população); 50,1 milhões estavam na pobreza (32,7% da população)[25]. Segundo um organismo do próprio governo, considerando o nível de renda per capita que o país atingiu a partir dos anos 1970, poderíamos ter hoje uma incidência da pobreza de em torno de 10% (mais de 1/3 a menos do que a registrada), considerando a média mundial de concentração de renda[26]. Em suma, poderíamos dizer que o Brasil é recordista mundial em concentração de renda; 15,8% da população não têm acesso às condições mínimas de higiene, educação e saúde; 11,4% morrem antes de completar 40 anos; 16% são analfabetos[27].

Se lermos a questão pelo viés étnico, por exemplo, teremos uma mostra clara da desigualdade. Um estudo feito com base no Índice de Desenvolvimento Humano, de 1999, indica claramente que à época o Brasil ocupava a 79 posição no ranking dos países. Porém, considerando-se a população negra, o Brasil ocuparia a 108 posição, enquanto com base na população branca ocuparia o 49 lugar[28]. Estudo sobre a pobreza indica que a população negra no Brasil representa 45,3% do total, no entanto, entre os pobres 63,6% são negros e dos indigentes 68,8% são negros[29]. A taxa de analfabetismo é de 19,8% se considerada a população negra com mais de 15 anos de idade e de 8,3% se considerarmos a população branca[30]. A taxa de mortalidade infantil, em 1996, considerando a população branca era de 37,3%; considerando a população negra era de 62,3%, uma diferença de 25%[31]. Segundo Cano, “No Rio de Janeiro e em São Paulo, a probabilidade de os negros serem mortos pela polícia é três vezes maior do que o seu peso na população”[32].

Uma Comissão Mista Especial do Congresso Nacional, criada no segundo semestre de 1999 para estudar as causas estruturais e conjunturais da pobreza e das desigualdades sociais e apresentar soluções concluiu que: “Os resultados (das pesquisas), além de mostrarem um grau de desigualdade muito alto, revelam que essa desigualdade não tem se atenuado nos últimos tempos, mantendo, ao contrário, uma elevada estabilidade, pois o grau de desigualdade hoje é praticamente o mesmo de vinte anos atrás”[33].

O quadro aqui rapidamente descrito, apesar de não ser exaustivo, indica claramente que há um amplo contingente de brasileiros excluídos do acesso às condições básicas de satisfação de seus direitos fundamentais. A pobreza no Brasil tem cara: é negra, mulher.

3. Luta Social e Criminalização dos Movimentos

O movimento social brasileiro tem uma tradição clara de organização forte e de ampla capacidade de mobilização da sociedade brasileira, além de vir desenvolvendo capacidade de monitoramento e de controle social junto aos Conselhos de Direitos (da Saúde, da Criança e do Adolescente, entre muitos outros). Sem exagero, pode-se dizer que, em boa medida, as conquistas sociais configuradas constitucionalmente são fruto da mobilização social (milhares de assinaturas para propostas de emendas). Avanços significativos em legislações ordinárias que vem para a proteção dos direitos também contaram com ampla participação popular. Entre os diversos casos, citamos o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Orgânica da Saúde, a Lei Orgânica da Assistência Social, todas fruto de ampla mobilização social. Outro exemplo é o da Lei que torna crime a corrupção eleitoral, fruto de um Projeto de Lei de iniciativa popular, com mais de um milhões de assinaturas.

No entanto, nos últimos anos o país tem assistido a um processo de perseguição de lideranças destas organizações. O quadro mais objetivo é demonstrado pela perseguição a lideranças da luta pela terra. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra[34], de janeiro a agosto de 2002, foram registrados 346 conflitos que envolveram 286.095 pessoas; foram registrados 16 assassinatos, 20 tentativas de assassinato, 73 pessoas estão ameaçadas de morte, 10 foram torturadas, 31 foram agredidas fisicamente, 111 foram presas e 3 foram feridas[35].

Do ponto de vista institucional a disposição do governo no sentido da criminalização dos conflitos no campo, por exemplo, está manifesto na Medida Provisória n. 2.183, através da nova redação que dá especialmente aos parágrafos 6, 7, 8 e 9, do artigo 2, da Lei 8.629/93, impedindo de vistoria para desapropriação os imóveis que tenham sido ocupados; impedindo pessoas participantes de ocupações de receberem terra e impedindo organizações que patrocinem ocupações de receber recursos públicos. Estas medidas têm objetivo claro de inibir o processo organizativo autônomo das populações despossuídas da terra e penalizar as pessoas e entidades que agirem ocupando áreas improdutivas na tentativa de fazer avançar o processo de reforma agrária no país.

Esta situação mostra a vigência de uma contradição estrutural na sociedade brasileira. De um lado, o avanço da organização e da mobilização social e a conseqüente ampliação dos espaços institucionais para sua participação no controle social do Estado. De outro, a permanência de resquícios de ação autoritária do Estado no sentido de inibir a livre manifestação da sociedade em vista da garantia de seus direitos fundamentais.

A modo de conclusão

Em suma podemos dizer que a era FHC pode ser entendida como um período que contraditoriamente flertou com os direitos humanos. Falamos flertou porque objetivamente fez movimentos e tentativas concretas para que do plano normativo estritamente pudessem ganhar lugar também como políticas públicas. No entanto, o eixo de ação das políticas públicas, guiado pelo ajuste estrutural, acabou por depor contra a garantia efetiva dos direitos fundamentais, levando ao agravamento da desigualdade e até a tentativa de criminalização dos movimentos e lideranças sociais.

Neste sentido, a luta pelos direitos humanos no Brasil, a partir da era FHC, não por obra sua, mas por ação forte da sociedade civil organizada que efetivamente tem lançado mão dos direitos humanos como instrumento de luta social, passa a ganhar força política central e a medida do avanço da sua efetivação nos próximos anos será a capacidade de o governo traduzi-los em ações e políticas públicas efetivas para o enfrentamento da desigualdade, caminhando, portanto, para a responsabilidade social. À sociedade, por seu turno, cabe aprimorar os instrumentos e mecanismos de controle e monitoramento da ação pública e de garantia dos direitos humanos. O legado da inclusão dos direitos humanos na pauta política é um avanço que gera novos compromissos e exigências.

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[1] Secretário Executivo da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Plataforma DhESC Brasil) e Coordenador Nacional de Formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Para a construção deste documento utilizou-se como base o Documento Base: A Situação dos Direitos Humanos no Brasil, elaborado e apresentado pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) no dia 15 de outubro de 2002, na primeira audiência sobre a situação geral dos direitos humanos no Brasil ocorrida no sistema OEA. Agradecemos ao MNDH por disponibilizar o acesso a este documento.

[2] Artigo 196 a 200 da Constituição Federal e Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/90 e 8142/91)

[3] Emenda Constitucional n. 26, de 2000, que modifica o artigo 6 da Constituição Federal garantindo o direito à moradia como direito fundamental e o Estatuto da Cidade, Lei n. 10527/01.

[4] Espaço de debate e de articulação de organizações da sociedade em vista dos direitos humanos. Organizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e por várias organizações da sociedade civil, é realizada anualmente e, em maio deste ano, ocorreu sua sétima edição.

[5] Literalmente: “O Programa Nacional de Direitos Humanos (...) priorizou apenas os direitos civis e políticos (...). Tal priorização fere inteiramente o princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, aprovado com a participação ativa do Governo brasileiro na Segunda Conferência Mundial dos Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993” (Cf. COMISSAO DE DIREITOS HUMANOS. “O Programa Nacional de Direitos Humanos. Relatório da II Conferência Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Câmara dos Deputados, 1998, p.35)H

[6] Cf. INESC. Nota Técnica n. 61. PNDH II: Compromisso político ou marketing? maio 2002 (www.inesc.org.br).

[7] Fonte: SIAFI/STN/COFF-CD e PRODASEN. Elaboração: INESC (especialmente para este documento). Considerada a execução até 04/10/02. O percentual de execução é obtido através da divisão entre a despesa liquidada e a dotação inicial. Representa a parcela da dotação inicial que foi gasta no período.

[8] Fonte: Boletins do Banco Central do Brasil. 1994 e 2001.

[9] Secretaria do Tesouro Nacional e Banco Central do Brasil (www.stn.gov.br e www.bacen.gov.br).

[10] Cf. PIDHDD. Panorama de lãs principales violaciones a los rerechos econômicos, sociales y culturales (desc) en América Latina. IN: Cuadernos DESC, n. 3, 2002, p. 20. Relatório da Audiência sobre la situación de los derechos económicos, sociales y culturales en las Américas (114 Período de Sesiones).

[11] Segundo Fernando Dantas, articulista do Jornal O Estado de São Paulo: “O FMI pode, teoricamente, impor um aumento do superávit primário anual para 2003 já em dezembro deste ano, na primeira revisão do acordo fechado em agosto ou em março do próximo ano, já com o governo eleito governando o país. O superávit primário acertado para 2003 é de 3,75% do PIB. Este poder do FMI foi incluído neste novo acordo por meio de uma cláusula que não existia nos acordos anteriores e nas suas revisões trimestrais. (...) tal como está escrito, a cláusula implica que, se o FMI considerar que não houve entendimento (e, para isto, basta não se satisfazer com a posição e argumentos brasileiros), poderá haver um impasse nas revisões trimestrais e a não liberação dos recursos previstos no acordo. Em outras palavras, se não houver entendimento, o FMI poderá suspender a liberação dos U$ 24 bilhões prometidos para o Brasil em 2003” (Cf. Jornal O Estado de São Paulo de 05/09/02)

[12] A ação foi coordenada pela REDE BRASIL sobre Instituições Financeiras Multilaterais e foi assinada por dezenas de organizações da sociedade civil, tendo sido entregue ao Ministério Público Federal no início de setembro.

[13] A avaliação da sociedade civil é que a transferência do controle da Base de Alcântara, nos termos atualmente em discussão pelo Congresso Nacional significa romper com a soberania nacional e abrir o território brasileiro para a política de segurança do governo Bush que inclui o Plano Colômbia como ação importante. Alcântara não é inofensiva. Está no centro da nova política americana para a América Latina.

[14] O Plebiscito foi coordenado pela Campanha Jubileu Sul/Brasil, da qual participam, organizações religiosas, sindicais, populares, ONGs e partidos de esquerda. Segundo os organizadores, votaram 10.149.542 brasileiros/as. Deste total 1,12% disseram sim e 98,33% Não à pergunta se o governo brasileiro deve assinar o tratado da ALCA (0,55% votaram branco ou anularam o voto). Perguntados se o Brasil deve continuar nas negociações da ALCA, 3,37% disseram sim; 95,94% não; e 0;70% votaram branco ou anularam o voto. No mesmo plebiscito, perguntados sobre se o governo brasileiro deve entregar parte do território – a Base de Alcântara – para controle militar dos Estados Unidos, os brasileiros responderam: 0,65% sim; 98,59% não, sendo que 0,22% votaram branco ou anularam o voto. Dados fornecidos pela Coordenação do Plebiscito e colhidos junto a www.adital.org.br.

[15] Cf. Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Dignidade Sim, Alca Não! Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais e a Área de Livre Comércio das Américas. Porto Alegre: Corag, 2002.

[16] Reportagem da Revista Isto É Dinheiro diz que: “Ao enviar seu projeto de doutrina de segurança nacional ao Congresso, há dez dias, Bush avisou que vai retirar o financiamento das instituições que não atenderem os interesses americanos. O diretor-gerente do Fundo [FMI] logo demonstrou que está afinado com o discurso guerreiro de Bush: ‘Se a ação for rápida e restrita ao Iraque, o impacto econômico será pequeno e poderá haver, inclusive, efeitos positivos, porque a situação ficará mais clara’, disse Köhler. O interesse do governo Bush é também pressionar países como o Brasil e a Argentina a manter o rumo de liberalização econômica”. (A pressão do Fundo. Revista Isto É Dinheiro. N. 266, 02/10/02, p. 30).

[17] Cf. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Evolução recente das condições e das políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2001, p.21.

[18] Cf. INESC. Boletim Orçamento. Ano I, n. 1, agosto 2002, p. 1.

[19] Cf. INESC. Boletim Orçamento. Ano I, n. 1, agosto 2002, p. 5.

[20] Cf. IBGE. PNAD 2001(www.ibge.gov.br).

[21] É o caso da redução de crianças fora da escola, de 8,7%, em 1996, para 3,5% em 2001. A faixa de população que tem 11 anos ou mais de estudo cresceu de 16,3% para 21,7% no mesmo período. Houve também redução da incidência do trabalho infantil (pessoas de 5 a 17 anos ocupadas), que caiu para 12,7%, sendo que entre 1999 e 2001 recuou 27%. No entanto ainda são 5,4 milhões de crianças trabalhando, das quais, 296,7 mil têm idade entre 5 e 9 anos e se encontra em áreas rurais (81%). (Dados colhidos de www.ibge.gov.br e trabalhados pelo Jornal Valor Econômico, de 13, 14 e 15/09/02, p. A12.

[22] Cf. Jornal Valor Econômico, 13, 14 e 15/09/02, p. A12; Jornal Gazeta Mercantil, 13/09/02, p. A-6. A pesquisa mostra ainda que o número de famílias chefiadas por mulheres passou de 24,2% para 27,3%

[23] Cf. PNUD. O Brasil no RDH 2002. Relatório de Desenvolvimento Humano 2002. Brasília: PNUD, 2002 (www.undp.org.br).

[24] São considerados pobres os brasileiros situados abaixo da linha de pobreza e são considerados indigentes os brasileiros que estão situados abaixo da linha de extrema pobreza. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) usa linhas regionalizadas (mínimo de 68 e máximo de 126 reais por pessoa/mês para fazer os cálculos). Cf. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Evolução recente das condições e das políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2001, p.12.

[25] Cf. BARROS, R; HENRIQUES, R; MENDONÇA, R. Desigualdade e pobreza no Brasil: a estabilidade inaceitável. Brasília: IPEA, 2000. Em 1995, 14,6% dos brasileiros eram indigentes e 33,9% pobres.

[26] Cf. BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Evolução recente das condições e das políticas sociais no Brasil. Brasília: IPEA, 2001, p.20.

[27] Cf. PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 1999. (www.undp.org.br).

[28] FASE, apud, ThEMIS. Caminhos para a igualdade nas relações raciais. Porto Alegre: ThEMIS, 2002, p.21

[29] IPEA. Texto para Debate, n. 807, julho de 2001, com base nos dados de IBGE. PNAD 1999.

[30] Idem. Ibidem.

[31] HERINGER, Rosana. Desigualdade racial no Brasil. 2000. Fonte: IBGE. PNAD 1998.

[32] CANO, Ignácio. Racial Bias in Lethal Police Action in Brazil. Mimeo, 2000.

[33] Cf. Congresso Nacional. Relatório Final da Comissão Mista Especial de Combate à Pobreza. Apud, CARVALHO, F.; DURÃO, J.E.S.; CORREA, S. Ajuste Econômico e Desajuste Social. Rio de Janeiro: Social Watch, 2000.

[34] Fonte: Setor de Documentação da Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra.

Cf. www.cptnac.com.br/conflitos/index.htm em 07/10/02.

[35] Segundo a CPT, em 2001, foram registrados 880 conflitos que envolveram 426.102 pessoas; foram registrados 29 assassinatos, 37 tentativas de assassinato, 132 pessoas foram ameaçadas de morte, 15 foram torturadas, 33 foram agredidas fisicamente, 254 foram presas e 40 foram feridas. Em 2000, foram registrados 1.024 conflitos que envolveram 555.979 pessoas; foram registrados 30 assassinatos, 12 tentativas de assassinato, 80 pessoas foram ameaçadas de morte, 8 foram torturadas, 37 foram agredidas fisicamente, 170 foram presas e 56 sofreram lesões corporais. Fonte: Setor de Documentação da Secretaria Nacional da Comissão Pastoral da Terra. Cf. www.cptnac.com.br/conflitos/index.htm em 07/10/02.

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