PÁGINA PRINCIPAL
Pagina Principal

Relatórios


"Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada seja maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. Estes ratos precisam ser exterminados. Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos; sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se tu, gabrielense amigo, possuis uma arma de caça calibre 22 atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1.200 metros de distância." Um panfleto com estes dizeres foi distribuído por fazendeiros de São Gabriel, no Rio Grande do Sul. É assim que os latifundiários têm tratado os trabalhadores rurais no Brasil.


O latifúndio e suas trincheiras

Antonio Canuto*
Dom Tomás Balduino **

A situação agrária brasileira é sobejamente conhecida por sua extrema desigualdade. A terra sempre esteve concentrada em poucas mãos, enquanto a grande maioria dos trabalhadores e trabalhadoras da terra ficaram excluídos do acesso à propriedade da terra, e ao pleno usufruto do seu trabalho.

Um novo cenário
A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, como presidente da República, desenhou um novo cenário para o campo brasileiro. Apesar de, nove meses depois de ser eleito, não ter realizado nenhuma ação significativa que indique a vontade política de atacar de frente a estrutura fundiária deste país, como os movimentos sociais criticam, só seu passado, sua história, e a história do PT criaram expectativas e apreensões que são as responsáveis pelo embate declarado entre latifúndio e trabalhadores, sobretudo os sem-terra, que se vive hoje no campo.
Para os trabalhadores, a eleição de Lula significava o resgate da dívida histórica de realizar a Reforma Agrária, sempre defendida e proclamada, mas nunca realizada. Esta expectativa se concretizou no aumento considerável das ocupações e acampamentos . Segundo os dados parciais registrados pela CPT, até final de agosto deste ano houve 259 ocupações e 149 acampamentos, envolvendo, respectivamente, 54.726 famílias nas ocupações e 32.779 nos acampamentos. Durante todo o ano de 2002, foram registradas 184 ocupações com 26.958 famílias e 64 acampamentos com 10.750 famílias. Estes números confirmam o que diversas lideranças dos movimentos do campo têm afirmado: de que nunca foi tão fácil organizar acampamentos e ocupações quanto hoje. Se no ano passado era necessário um grande trabalho de convencimento, hoje o simples boato de que um novo acampamento vai se formar atrai um número crescente de famílias. Mesmo com constantes despejos, o ânimo destas famílias se mantém. Despejadas de um lugar, voltam a acampar e ocupar em outro.
Ao lado da pressão exercida pelos sem-terra, que se manteve constante, alguns elementos novos se incorporam no desenho deste cenário.
O primeiro foi a retirada das páginas da Internet do nome daquelas famílias que teriam sido cortadas de qualquer programa de reforma agrária caso participassem de ocupações, de acordo com o determinado pela MP 2183. O segundo, a não condenação explícita por parte do Incra, do Ministro do Desenvolvimento Agrário e do próprio presidente Lula, das ações desenvolvidas pelos sem-terra.
A isso somaram-se dois fatos significativos. Lula recebeu cordialmente os sem-terra no Palácio do Planalto e usou o boné que lhe ofereceram. O ministro Rossetto foi ao Pontal do Paranapanema (SP) e declarou que a prioridade para o assentamento era das famílias acampadas.

O contra-ataque do latifúndio
O latifúndio vislumbrou que estavam dados os elementos para uma nova correlação de forças, desta vez mais favorável para os trabalhadores. Isto foi mais que suficiente para que colocasse em campo sua tropa de choque.

Novas articulações
Para fazer frente à organização dos movimentos sociais dos trabalhadores, os auto-denominados "produtores rurais" criaram uma série de novas organizações e entidades com o objetivo declarado de se contrapor às ações dos sem-terra, inclusive com o uso da força. Esta reação começou ainda no ano de 2002, diante da simples perspectiva de Lula vencer as eleições. Depois de anunciada a vitória de Lula, foi criado o Conselho Superior de Agricultura e Pecuária do Brasil - Rural Brasil, congregando várias entidades que elaboraram um documento apresentado ao presidente eleito. Entre as reivindicações estava a manutenção da MP 2.183, que vedava a desapropriação de áreas ocupadas. A articulação dos latifundiários tem sido constante. O fato mais recente ocorreu no dia 28 de setembro, no Pontal do Paranapanema. Catorze grandes entidades dos ruralistas participaram de um leilão de gado promovido pela União Democrática Ruralista (UDR) regional, onde se discutiu a formação de uma articulação entre elas, uma "super-UDR" para lhes dar mais unidade e maior combatividade.

Novas formas de manifestação
Além da articulação de suas organizações, o latifúndio lançou mão de outras formas de pressão, comuns aos trabalhadores, como manifestações e marchas, para conseguir impedir o crescimento da força dos trabalhadores.
Quando o MST do Rio Grande do Sul organizou uma grande marcha passando por vários municípios no intuito de chegar a São Gabriel, onde a desapropriação da fazenda Southall, decretada pelo presidente Lula, fora suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, os latifundiários gaúchos organizaram uma contra-marcha para impedir e interromper a caminhada dos sem-terra. Foi preciso a intervenção da Justiça para garantir o direito dos sem-terra se manifestarem.
No Mato Grosso do Sul, 1.500 fazendeiros organizaram manifestações e bloquearam a rodovia estadual que liga Itaporã e Itaí, na região de Dourados, depois que o MST ocupou a fazenda Coimbra. Durante esta manifestação, oficializaram a estratégia de montar cerco às fazendas ocupadas. Voltaram a usar a mesma estratégia quando os índios ocuparam diversas fazendas reivindicando domínio sobre as mesmas.
No Pará, no mês de setembro, os latifundiários bloquearam a rodovia PA 275, no município de Curionópolis, com dez mil bois, caminhões e máquinas agrícolas, com o objetivo de exigir do governo a execução de 62 liminares de reintegração de posse.

Violências físicas e morais
Nesta disputa por espaço, o latifúndio tem usado como sempre a agressão física e moral contra os trabalhadores. Os sem-terra são taxados de criminosos, de vagabundos, como aconteceu num encontro no Pontal do Paranapanema. O presidente do Movimento Nacional dos Produtores - MNP, João Bosco Leal, disse: "O setor é desrespeitado quando (o governo) permite que o presidente da Câmara (João Paulo Cunha, PT/SP) visite bandidos na cadeia usando um avião oficial. Não há diferença entre um José Rainha e um Fernandinho Beira-Mar." Já o presidente da UDR do Pontal, Luiz Antonio Nabhan Garcia, afirmou que os militantes sem-terra são "um bando de vagaundos"
Em São Gabriel, foram distribuídos panfletos, atacando os sem-terra, taxando-os de escória humana e de ratos e sugerindo aos fazendeiros envenenarem a água que os sem-terra bebessem e usarem aviões para despejar gasolina sobre o acampamento dos sem terra. Uma lamparina acesa faria o restante.
A arma mais poderosa do latifúndio, a eliminação física, tem sido usada com espantosa freqüência neste ano. A contratação de milícias privadas tem sido noticiada com freqüência. De janeiro a final de setembro, segundo os dados da CPT, 60 trabalhadores foram assassinados, alguns com requintes de crueldade. Isso representa 100% a mais do que no mesmo período de 2002 e 39% a mais do que em todo o ano de 2002, quando se registraram 43 assassinatos, cifra não atingida desde 1990. Nem mesmo em 1996, ano do massacre de Eldorado de Carajás, chegou-se a tantos assassinatos.

As trincheiras do latifúndio
No embate com os trabalhadores, o latifúndio tem sabido utilizar, com invejável competência, trincheiras bem posicionadas e fortificadas. As trincheiras do judiciário e dos meios de comunicação. Nestas, o latifúndio tem habilmente se defendido e delas tem atacado com inusitada virulência.

Judiciário
A trincheira do judiciário tem servido historicamente ao latifúndio como defesa. Os crimes cometidos contra os trabalhadores se mantém, com monótona persistência, impunes. A prova da impunidade está no fato de que dos 1.280 assassinatos, apenas 121 foram levados a julgamento. Dos mandantes dos crimes, 14 foram a julgamento, sendo oito condenados. Foram levados a julgamento quatro intermediários, sendo dois condenados. E entre os 96 executores julgados, 58 foram condenados.
Nesta trincheira, o latifúndio tem defendido também seus interesses e privilégios. Contra ocupações de áreas improdutivas e mesmo de áreas griladas, com impressionante facilidade, são emitidos mandados de reintegração de posse, mesmo que estejam em jogo a vida e a sobrevivência de centenas de famílias. O mesmo procedimento acontece em áreas ocupadas por posseiros, há 20, 30, 50 ou mais anos. O princípio constitucional que exige que a propriedade cumpra sua função social é ainda desconhecido da maior parte dos nossos magistrados. Permanece o direito à propriedade, como um direito intocável. Só no Pará 62 liminares de reintegração de posse estavam sendo executadas, quando um acordo entre governo estadual, MST, Fetragri e CPT conseguiu suspender as execuções em curso até que o Incra encontrasse áreas para assentar as 3 mil famílias envolvidas. A defesa do latifúndio se dá ainda pelo embargo, sustação e anulação de decretos de desapropriação emanados do poder executivo.
Dois casos, neste ano, são paradigmáticos do que afirmamos. O primeiro é o do Engenho do Prado, em Tracunhaém (PE). Uma área ocupada há seis anos por 300 famílias de sem-terra, declarada improdutiva por vistoria realizada pelo Incra, foi desapropriada em 1999. Essa desapropriação foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal diante da apresentação de um falso projeto de plantação de bambus que nunca aconteceu. O grupo João Santos, proprietário deste Engenho e de outros 42, além de ser o segundo maior produtor de cimento do país e de ter a concessão de meios de comunicação, é um dos grandes devedores do erário público. Só ao INSS deve R$ 54 milhões, sem contar com outros débitos pendentes em ações trabalhistas que ao todo somam cerca de R$ 250 milhões (dívidas a que o governo concede o direito de refinanciar através do Refis). Apesar disso, o grupo conseguiu mandado judicial para despejar as 300 famílias da área, o que foi feito ao arrepio da lei, altas horas da madrugada, e sem a presença do Ministério Público, que deveria acompanhar despejos quando envolvessem crianças e adolescentes. As casas das famílias, onde residiam 380 crianças, foram destruídas, como também foram destruídas três escolas, sete igrejas e centro comunitário. Quando o estrago já estava feito é que chegou liminar do Tribunal de Justiça do Estado sustando a ordem judicial. Uma nova vistoria do Incra caracterizou o Engenho do Prado, mais uma vez, como latifúndio improdutivo. Mesmo assim, o Tribunal de Justiça do Estado no julgamento do mérito manteve a ordem de despejo emitida pelo juiz de Nazaré da Mata, reconhecidamente a favor dos latifúndios da região.
O segundo caso se deu no Rio Grande do Sul, com a desapropriação do maior latifúndio gaúcho, a Fazenda Southall, em São Gabriel. Sob a alegação de falhas técnicas no processo de desapropriação, o Supremo Tribunal Federal, através de liminar da ministra Dra. Ellen Gracie Nortflleeth, sustou a desapropriação, assinada pelo presidente Lula. O pleno do Supremo, por oito votos a dois, acabou confirmando a liminar e acatando as argumentações da relatora, a mesma Dra. Ellen, anulando a desapropriação. Depois soube-se que a ministra é ligada aos proprietários do latifúndio por grau de parentesco. É casada com um primo-irmão da esposa do proprietário, com quem tem uma filha. A Fazenda Southall deve ao erário público mais de 37 milhões de reais.

Da trincheira do judiciário, o latifúndio não só se defende, mas ataca os trabalhadores, com processos que vão de esbulho possessório, passando por dano, furto qualificado, chegando ao crime de formação de quadrilha.
Neste ano, o número de prisões, de janeiro ao final de agosto, é 44% maior do que em todo o ano passado: 223 prisões, contra 158 em 2002. Processos estão sendo desengavetados para punir "exemplarmente" os trabalhadores que se atrevem a exigir os direitos fundamentais da pessoa, garantidos pela Constituição. Apesar de já haver jurisprudência que afirma que a ação de ocupação de terras não pode ser caracterizada como crime de formação de quadrilha, muitos juízes, com destaque para o magistrado Átis de Araújo Oliveira, da Comarca de Teodoro Sampaio, Pontal do Paranapanema, continuam condenando à prisão muitos trabalhadores por este crime.
Na Paraíba, oito trabalhadores estão presos, há mais de um ano, acusados de homicídio. Apesar de todos os argumentos da defesa provando sua inocência, nunca a Justiça emitiu qualquer despacho favorável aos mesmos. A acusação foi baseada em depoimento de um policial acusado de torturas e mortes e de estar a serviço do latifúndio. Os trabalhadores foram presos por motivação política, sem base em fatos concretos.

Mídia
Outra trincheira fortificada do latifúndio é a dos meios de comunicação. Os ataques vão em diversas direções.

a) Contra o governo. A mídia, secundando a posição das lideranças das organizações dos ruralistas, dirigiu críticas duras e severas à escolha do ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto (foi qualificada como um retrocesso), do presidente e dos superintendentes regionais do Incra. Eles foram apresentados como braços operacionais dos movimentos sociais do campo, especificamente do MST, e em alguns casos da própria CPT.
O fato de Lula ter recebido os sem-terra com cordialidade e de ter usado seu boné serviu, durante muito tempo, como prova cabal do perigoso desvio por onde Lula e seu governo começavam a andar, diziam as matérias da imprensa.
Outra grita geral se fez ouvir quando o ministro Rossetto e Marcelo Rezende, ex-presidente do Incra, em visita ao Pontal do Paranapanema, afirmaram que os acampados teriam prioridade na hora dos assentamentos. A mídia interpretou essas declarações como um estímulo às ocupações que estavam se multiplicando. Constantemente o governo é cobrado por não agir severamente contra os sem-terra que continuam a fazer ocupações e acampamentos.

b) Ataques às lideranças dos movimentos sociais do campo.
Uma declaração de João Pedro Stédile em um encontro de trabalhadores no Rio Grande do Sul, sobre a força numérica dos trabalhadores rurais em relação ao latifúndio foi retirada do seu contexto. A fala do coordenador do MST foi interpretada pela mídia como uma declaração de guerra contra os fazendeiros. Esta fala mereceu manchetes, editoriais, comentários e artigos em muitos meios de comunicação durante vários dias.
Poucos dias depois, num seminário organizado pelo CIMI em Brasília, a frase de João Paulo Rodrigues, da Direção Nacional do MST - "Para vencer o latifúndio não é preciso armas, conseguiremos vencê-lo no tapa" - foi interpretada e se espalhou como uma nova declaração de violência contra o latifúndio.

c) A mídia tem tentado passar a idéia de que o clima no campo é tenso e que de uma hora para outra pode eclodir uma situação incontrolável de violência. As ações dos trabalhadores, sobretudo as ocupações e acampamentos, são noticiadas diariamente, buscando atribuir a elas a responsabilidade pela tensão crescente no campo. Cria-se, assim, uma falsa versão da realidade. Mesmo tendo crescido muito em 2003, as ocupações (259 até final de agosto) ficam muito longe dos números registrados em anos anteriores. Em 1998 foram 599; em 1999, 593; no ano 2000, 463. Naqueles anos não se fazia o alarde que hoje se faz.

d) Outra forma de desqualificar os trabalhadores e suas lideranças é apresentá-los como bandidos. Além disso, existe uma tentativa de questionar a aplicação de recursos nos assentamentos. E se exploram as divergências internas e os conflitos nos assentamentos e acampamentos, comuns a todos os grupos humanos, que são mostrados como graves problemas que podem afetar toda a sociedade.

Guerra ideológica

O latifúndio utiliza a mídia para travar uma guerra ideológica que objetiva basicamente três coisas.

1ª) Afastar os trabalhadores não organizados do caminho da organização. O latifúndio sabe que o único caminho viável para os trabalhadores conseguirem a reforma agrária é o da organização. Por isso, tentar bloquear ideologicamente este caminho é uma estratégia importante.

2ª) Criar forte pressão sobre o governo, para que adote medidas punitivas contra os trabalhadores. Por isso, qualquer manifestação favorável à retirada das Medidas Provisórias emanadas do governo FHC é bombardeada duramente.

3ª) Criar na sociedade brasileira um clima de desconfiança contra os movimentos do campo e suas lideranças, apresentando-os como fora da lei e propugnadores da violência. Eles estariam provocando uma situação de instabilidade política.

Conclusão

Nota lançada pela Coordenação Nacional da CPT, no dia 28 de julho de 2003, sobre a repercussão do discurso de João Pedro Stédile já afirmava o que constatamos acima. Assim dizia:
"As elites latifundiárias de nosso país, organizadas em suas entidades de classe e apoiadas por setores da imprensa nacional, diante do crescimento das organizações sociais do campo e de suas mobilizações, buscam de toda forma criar um clima de instabilidade social e influenciar a opinião pública, para que o governo adote medidas punitivas e coercitivas contra os movimentos dos trabalhadores e para impedir que a reforma agrária se concretize. Para isso aproveitam-se de qualquer pretexto e pinçam frases descontextualizadas do restante do discurso para colocar lenha na fogueira e fazer delas um cavalo de batalha.
Quem historicamente tem se oposto à democracia são sobretudo as elites do campo, que sempre usaram dos seus recursos econômicos para manter seus privilégios e suas posições na sociedade. Sempre tiveram o respaldo do executivo, conseguiram impor sua vontade e seus interesses ao legislativo e contam, na maioria das vezes, com a cobertura do poder judiciário. Não bastasse isso apelam para o uso da força bruta. Hoje, quem prega a violência, quem cria grupos armados não são os trabalhadores, são os latifundiários."

Realmente, latifúndio e violência são as duas faces da mesma moeda. O latifúndio só consegue se manter através da utilização das diversas formas de violência, a legal, a moral e a física. Quebrar a espinha dorsal do latifúndio, limitando sua propriedade, será uma das maneiras mais eficazes de combater a violência no campo.