Usando muitas vezes armas contrabandeadas, os jagunços
do latifúndio (rebatizados de "empresas de segurança
privada") são, atualmente, a maior ameaça
à paz no campo. Ao tentar proteger os latifúndios
improdutivos do Paraná (terras muitas vezes já
com laudo de improdutividade - como é o caso da Fazenda
Trombini, em Foz do Jordão), essas milícias
colocam em xeque a autoridade constituída e criam clima
de medo e terror no Estado, escondendo-se atrás do
velho argumento de que "os sem terra deram o primeiro
tiro". A UDR anunciou, em março, a abertura de
15 escritórios no Paraná, reiterando a intenção
de impedir novas ocupações de terra.
O pêndulo da violência - A luta
pela terra no
Paraná em 2003
Jelson Oliveira*
Sessenta e dois acampamentos, envolvendo cerca de 15 mil famílias:
os dados da luta pela terra este ano no Paraná, comprovam
a emergência da Reforma Agrária no Estado, a
exemplo do que ocorre em todo o país. Os números
de pretendentes à terra cresceu mais de 100% no Estado
depois de oito anos de repressão sob o governo de Jaime
Lerner, responsável por uma onda de violência
que deixou 16 pessoas assassinadas, 31 vítimas de atentados,
47 ameaçadas de morte, 7 vítimas de tortura,
324 feridas, 488 presas em 134 ações violentas
de despejo que espalharam terror por todo o Paraná.
Lerner foi o exemplo mais paupável do pacto anti-reforma
agrária firmado entre o Poder Executivo e os latifundiários,
associados à União Democrática Ruralista
(UDR) e suas afiliadas.
Condenado
internacionalmente pelas graves violações de
direitos humanos, Lerner interceptou todas as tentativas de
efetivação da Reforma Agrária, tomando
em suas mãos a condução do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) e lançando forte repressão policial
contra trabalhadores/as rurais sem terra. Ideologicamente
treinada para combater os sem terra, a Polícia Militar
do Paraná implementou uma estratégia que pretendia
eliminar os movimentos sociais através da violência,
enquanto outras medidas eram tomadas junto à imprensa
e à sociedade, com o fim de desmobilizar, isolar e
criminalizar os sem terra.
A
mudança de governo no Paraná veio acompanhada
de indicativos de mudança na estratégia de tratamento
da questão agrária, com reiteradas declarações
do novo governador Roberto Requião de que agiria com
responsabilidade, tratando a questão agrária
como problema social e não como caso de polícia.
Somando a isso a eleição do governo Lula, temos
um amplo aumento na expectativa dos trabalhadores em relação
à efetivação da reforma agrária.
A demanda acumulada em tantos anos de repressão e violência
irrompe no aumento do número de famílias dispostas
a lutar pela terra.
A
força organizativa e política dos trabalhadores
rurais aumenta com sua articulação na Via Campesina,
que inclui o Movimento dos Atingidos por Barragens, o Movimento
dos Pequenos Agricultores e a própria CPT. Assim sua
pauta de reivindicações ganha força,
como no caso da oposição aos alimentos transgênicos,
que se manifestou principalmente com a queima e ocupação
da Fazenda experimental da Monsanto no município de
Ponta Grossa, em maio. Outras ações conjuntas
foram organizadas contra as tarifas de pedágio, resultado
da privatização das estradas implementada pelo
governo Lerner em todo o Paraná, como parte de sua
política neoliberal.
Além
do MST, outros grupos e/ou movimentos sociais rurais também
passam a se organizar no Paraná. O número de
acampamentos independentes do MST no Estado chegou a mais
de 20. Eles foram organizados por grupos como o Movimento
Terra Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais (MTR),
o Grupo Xambrê e o Grupo Zumbi dos Palmares, confirmando
assim o aumento da demanda pela terra no Estado. A maioria
das ocupações e acampamentos formados por esses
grupos menores e com menos força política tiveram
vida curta, já que sofreram mais pressão do
Estado.
Este
crescimento da luta pela terra, como era de se esperar, veio
acompanhado de uma reação dos fazendeiros. É
o pêndulo da violência: se a polícia age
contra os sem terra, os fazendeiros se abstêm. Se o
governo não age com violência, as milícias
reaparecem.
Em
março é criado o PCR (Primeiro Comando Rural),
organização liderada pelo fazendeiro Humberto
de Sá, com o intuito de agenciar pistoleiros para agir
contra trabalhadores/as rurais na região Centro do
Estado. Inspirados no PCC (Primeiro Comando da Capital), organização
criminosa que disputa o controle de penitenciárias
em São Paulo e no Paraná, os fazendeiros do
PCR pregaram, abertamente, na imprensa, o uso da força
contra os sem terra, afirmando que iriam "distribuir
armas de grosso calibre a seguranças de pelo menos
50 fazendas do Centro-Oeste, para impedir as ocupações
de terra." A partir de então, a região
Centro vira palco de uma série de episódios
de ameaça, ataque e constrangimento dos sem terra,
tendo seu auge a partir da ocupação da Fazenda
Três Marias, no município de Manoel Ribas, por
cerca de 350 famílias. Os fazendeiros ligados ao PCR
e ao Sindicato Nacional dos Produtores Rurais (SINAPRO) ameaçaram
despejar os sem terra e cercaram a área durante cinco
dias, tendo sido impedidos pela Polícia Militar, com
o intermédio da Comissão Especial de Mediação
das Questões da Terra do Estado. O mesmo SINAPRO tem
se manifestado publicamente contra os sem terra e o governo
do Estado, tendo pedido a prisão do governador pelo
não cumprimento dos mandados de reintegração
de posse.
Além
do PCR e do SINAPRO, a UDR anunciou, em março, a abertura
de 15 escritórios no Paraná, reiterando a intenção
de impedir novas ocupações de terra e a própria
Federação da Agricultura do Estado do Paraná
(FAEP) tem exigido do governo o cumprimento das decisões
de reintegração de posse emitidas pela Justiça
a favor dos fazendeiros e reivindicado "que o governo
do Estado haja com rigor contra o MST para impedir novas ocupações".
Como exemplo disso, no dia 18 de junho, fazendeiros de Ponta
Grossa lançaram um documento e criaram o "Movimento
Reforma Agrária Sem Invasões". Segundo
o documento, a preocupação maior dos fazendeiros
"recai no sentido de que tais acampamentos se constituam
em ponto de apoio, para concentração de integrantes
do MST, para desencadearem uma onda de invasões em
outras áreas rurais. Também nossa preocupação
aumenta quando é notório que o Governo do Estado
não tem tomado as medidas necessárias no sentido
de fazer cumprir as ordens judiciais de reintegração
de posse, o que torna a ocupação prolongada,
fazendo com que se acumulem prejuízos e transtornos
aos proprietários das áreas invadidas".
A
intenção do governo Requião de evitar
o uso da força e empenhar-se na efetivação
da Reforma Agrária não foi suficiente para evitar
a violência contra trabalhadores rurais. Nesse período,
ocorreram dois assassinatos, quatro tentativas de assassinato,
quatro trabalhadores foram feridos, cinco foram presos e várias
lideranças estão com prisão preventiva
decretada.
A
emboscada que deixou dois trabalhadores mortos, além
de outros três feridos, no dia 2 de setembro, em Foz
do Jordão (região Centro do Paraná, tradicionalmente
marcada pela ação de jagunços a serviço
do latifúndio), trouxe à tona a realidade sofrida
pelos trabalhadores rurais no Paraná que são
aterrorizados, intimidados e ameaçados física
e psicologicamente por pistoleiros e jagunços agenciados
pelos fazendeiros para estimular episódios de violência
que emperrem ainda mais o processo de efetivação
da Reforma Agrária.
Usando
muitas vezes armas contrabandeadas, os jagunços do
latifúndio (rebatizados de "empresas de segurança
privada") são, atualmente, a maior ameaça
à paz no campo. Ao tentar proteger os latifúndios
improdutivos do Paraná (terras muitas vezes já
com laudo de improdutividade - como é o caso da Fazenda
Trombini, em Foz do Jordão) essas milícias colocam
em xeque a autoridade constituída e criam clima de
medo e terror no Estado, escondendo-se atrás do velho
argumento de que "os sem terra deram o primeiro tiro".
Os proprietários da Trombini usaram este argumento
mentiroso também no caso de Foz do Jordão, mas
foram imediatamente desmascarados porque a própria
Polícia e a Secretaria de Segurança constataram
que todas as armas apreendidas eram de propriedade dos pistoleiros.
Em seu depoimento à Polícia Civil, os oito pistoleiros
presos em Foz do Jordão confessaram trabalhar com coletes
à prova de bala e portando armas de grosso calibre.
Durante
todo o governo Lerner, estes fazendeiros fortaleceram suas
organizações criminosas, amparadas pela oficialidade
da Secretaria de Segurança Pública e da própria
Polícia Militar. Essa realidade agora deve ser enfrentada
pelo novo governo, de quem se espera uma ação
enérgica para coibir a ação das milícias
privadas.
Somada
à ação das milícias, a falta de
terras disponíveis ainda é um grande obstáculo
para a Reforma Agrária no Estado. Mesmo com o empenho
do INCRA (que vem se esforçando para vistoriar e comprar
áreas) o estoque de terras está zerado, resultado
também da política anti-reforma agrária
de Lerner, que "queimou" os estoques de terra durante
o mandato de José Carlos à frente da Superintendência
Regional do INCRA e não fez nenhuma vistoria ou aquisição
de terra, entregando os estoques vazios ao novo governo.
Por
outro lado, o Poder Judiciário continua servil aos
interesses do latifúndio paranaense, quando emite pareceres
e autoriza a reintegração de posse de áreas
ocupadas, sem nenhuma consulta aos organismos interessados,
como o INCRA e a própria Secretaria de Segurança.
Essas atitudes incoerentes mostram a face conservadora e atrasada
do Judiciário, que constantemente fecha os olhos para
as dores e as demandas dos pobres e excluídos da terra,
garantindo a impunidade nos casos de violência contra
os sem terra (dos 1.282 casos de trabalhadores assassinados,
no Brasil, desde 1985, apenas 121 foram levados a julgamento,
sendo que somente 14 mandantes foram julgados e apenas 7 foram
condenados) .
Este
ano, as mortes de Paulo Sérgio Brasil e Anarolino Vial
elevaram para 46 o número de assassinatos no campo
desde 1980 em nosso Estado. Triste contabilidade essa, que
mostra a irresponsabilidade e a truculência dos fazendeiros
e suas milícias e a falta de vontade política
dos governos em realizar a reforma agrária.
Armados
e violentos, os fazendeiros do Paraná se mantêm
do lado mais obscuro desta sempre triste história de
lutas pela democratização da terra. Cercar as
fazendas com pistoleiros é o ato extremo daqueles que
tentam desesperadamente manter seus privilégios, burlando
a lei e a Constituição, que exige o cumprimento
da função social da terra. Mas mesmo com esta
difícil realidade, os sem terra resistem. Numa conjuntura
tão desfavorável em nível nacional, os/as
trabalhadores/as paranaenses enfrentaram os obstáculos
e permaneceram na maioria das áreas ocupadas, plantando
pequenos pedaços de terra a fim de garantir sua sobrevivência
no curto prazo. E esperam para 2004 as prometidas medidas
que possibilitem a efetivação da Reforma Agrária
e a liberação de recursos para os assentamentos.
*Jelson Oliveira é secretário-executivo da Comissão
Pastoral da Terra - Paraná e membro do Conselho Consultivo
da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
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