A agricultura brasileira sofreu um radical processo de concentração
da riqueza no período FHC. A concentração
da produção em mãos dessas poucas empresas
foi correlata de uma concentração incrementada
da propriedade fundiária, subindo de 112 para 124 milhões
a área titulada pelas propriedades com mais de 2 mil
hectares. Na banda mais pobre e desfavorecida, contabilizaram-se
dois milhões de trabalhadores agrícolas desempregados
e a extinção de 960 mil estabelecimentos com
área inferior a 100 hectares. Viu-se no governo Lula
o Ministério do Desenvolvimento Agrário praticamente
ineficiente no que se referiu à efetivação
do programa de reforma agrária apresentado historicamente
pelo partido do Presidente.
Reforma
agrária: os dilemas de sempre
Aton Fon Filho*
Iniciado
com um novo governo em esfera federal, e novas recomposições
de forças em todos os âmbitos, o ano de 2003
se afigurava, para os trabalhadores rurais brasileiros, um
ano cheio de perspectivas e desafios intrigantes.
A
agricultura brasileira sofreu um radical processo de concentração
da riqueza no período FHC, com um açambarcamento
de setores chave por grandes empresas multinacionais. Assim
foi que o setor de laticínios se viu controlado pelos
trusts Danone, Parmalt e Nestlé, controladores de 90%
do mercado. Assim foi que Monsanto, Cargill, Bunge e Dupont
assumiram o controle do comércio de grãos, em
especial soja, trigo e milho.
A
concentração da produção em mãos
dessas poucas empresas foi correlata de uma concentração
incrementada da propriedade fundiária, subindo de 112
para 124 milhões a área titulada pelas propriedades
com mais de 2 mil hectares.
Na
banda mais pobre e desfavorecida, contabilizaram-se dois milhões
de trabalhadores agrícolas desempregados e a extinção
de 960 mil estabelecimentos com área inferior a 100
hectares.
A
partir desse quadro, o início do governo Lula assistiu,
de um lado, às expectativas dos movimentos sociais
do campo, fruto da demanda de reforma agrária reprimida
durante os anos de governo neo-liberal de Fernando Henrique
Cardoso; de outro, os temores do latifúndio e a busca
de novas alianças para enfrentar o que se anunciava
como um novo avanço nas relações sociais
no campo, com um projeto ambicioso e decidido de assentamentos
em massa.
Se
se frustraram as expectativas dos primeiros, as intervenções
dos segundos mostraram-se vigorosas e suficientes para alargar
o âmbito de suas ações contra o processo
de reforma agrária, particularmente pela composição
de medidas como o acantonamento do governo numa posição
de dependência das forças mais retrógradas,
a incorporação da mídia no combate à
democratização da propriedade agrícola
e a criminalização dos movimentos sociais rurais.
Viu-se
no governo Lula o Ministério do Desenvolvimento Agrário
praticamente ineficiente no que se referiu à efetivação
do programa de reforma agrária apresentado historicamente
pelo partido do Presidente. Fruto, aqui, das dificuldades
de um orçamento herdado do governo anterior e adequado
apenas para a continuidade da política de esmagamento
do movimento camponês, que se imaginava seria possibilitado
pela eleição do candidato de FHC. Ali, em decorrência
da subordinação aos interesses dos setores políticos
mais retrógrados, no altar das negociações
para a aprovação das reformas previdenciária
e tributária; acolá, pela manutenção
de uma política econômica que respaldava os acordos
firmados com o Fundo Monetário Internacional e determinava
o incremento do superávit primário e a redução
do volume de recursos destinados aos programas sociais. Finalmente,
como resultado de desentendimentos e ciúmes no interior
do Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2003
revelou ao fim uma absoluta inexistência de programa
de reforma agrária.
Mais
ainda, do ponto de vista dos direitos ao trabalho, à
alimentação e à moradia, ínsitos
na proposta de reforma agrária, significou um profundo
retrocesso a perda de defensores tão destacados e historicamente
comprometidos como o professor Carlos Eduardo Marés,
durante algum tempo chefe da Procuradoria do Incra e demissionário
com o superintendente Marcelo Rezende.
Isso que denominamos acantonamento das autoridades governamentais
responsáveis pelo processo de reforma agrária
decorreu e foi acrescido de uma intensa campanha midiática
visando vender as idéias de que um crescimento da violência
no campo teria sido decorrente de um acréscimo do número
de ocupações de terras, ou mesmo de práticas
mais radicais.
Os
números, porém, parecem indicar a inviabilidade
dessa interpretação. Relatório sobre
a violência no campo divulgado em agosto apontava que,
entre janeiro e agosto de 2003, a Comissão Pastoral
da Terra registrou 44 assassinatos de trabalhadores rurais
e no início de novembro a mesma entidade já
apontava um número de 61 camponeses mortos quando em
todo o período de 2002 aconteceram 43 homcídios
vitimando trabalhadores rurais . Tanto num ano como no outro
não se teve notícia de fazendeiros que tivessem
sido vítimas.
Essa
campanha midiática teve como pontos relevantes a participação
do jornal Zero Hora e publicações da mesma empresa,
em particular no que ficou conhecido como episódio
de Cangussu, onde se pretendeu atribuir a um dirigente do
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, João
Pedro Stédile, a prática de crimes em decorrência
de pronunciamento feito aos trabalhadores daquela cidade.
Neste destacava-se o fato de estar a propriedade da terra
concentrada em mãos de poucos e serem muitos os deserdados,
conclamando à luta pelo fim do latifúndio.
O
Rio Grande do Sul mereceu também seu destaque pela
violência dos latifundiários, que, por ocasião
do episódio da Southall - São Gabriel, chegaram
a lançar de avião panfletos conclamando ao extermínio
físico dos trabalhadores rurais sem terra, por fogo
ou por bala.
Embora
a agressividade criminosa, o Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul - o mesmo que se arvorou perseguir
João Pedro Stédile - não foi capaz de
apurar os autores da incitação ao crime, ficando
mais uma vez consagrada a impunidade.
A
convivência da impunidade dos crimes do latifúndio
com a virulência da perseguição e criminalizaçào
dos movimentos sociais foi o terceiro elemento a merecer destaque
na ofensiva do latifúndio contra o que se supunha seria
um posicionamento mais decidido do governo Lula favorável
à reforma agrária.
Das
primeiras medidas intentadas pela nova administração
federal, o projeto de reforma da previdência opôs
de imediato a magistratura ao Executivo, temerosa aquela de
ver atingidos o que era apontado por muitos como privilégios
e por ela era defendido como conquistas e prerrogativas do
Judiciário.
As
tentativas do Governo Federal de estabelecer um limite às
pensões e aposentadorias dos magistrados desencadearam
conflitos que ainda hoje perduram, evidentes e reconhecidos
quando se trata das relações entre o Presidente
da República e o ministro Maurício Correa, Presidente
do Supremo Tribunal Federal, mas sutis, quando se refere às
observações ácidas postas em diversas
decisões judiciais ou mesmo à possibilidade
de motivarem, no fundo, essas mesmas decisões.
O
caso mais evidente dessa irresignação com a
política governamental foram as decisões do
juiz Átis de Araújo Oliveira, da comarca de
Teodoro Sampaio, em São Paulo. Mas se esse magistrado
pôde ser tornar conhecido pela ousadia de suas decisões
não significa que outros magistrados não tenham
também externado sua inconformidade com as políticas
do novo governo. O Tribunal de Justiça do Estado da
Paraíba, em julgamento a que foi submetido o deputado
estadual Frei Anastácio, integrante da Comissão
Pastoral da Terra, lamentou explicitamente, em decorrência
da atuação dos movimentos sociais e do novo
governo, uma inapetência dos militares para interferir
na vida política brasileira.
Essa
articulação entre a inação governamental,
a violência direta do latifúndio, a integração
da mídia e o concurso do Judiciário deram a
tônica à avaliação de estagnação
dos direitos humanos no que se refere à reforma agrária.
Afinal
de contas, seis dezenas de trabalhadores mortos e outras tantas
de trabalhadores presos até recentemente encontraram
da parte dos sem terra um esforço para aguardar uma
definição governamental que ainda vem de se
manifestar.
Com
efeito, as fotos do Presidente da República coberto
com o boné do MST que desencadearam tanta ira na imprensa
e nas entidades de latifundiários não resultaram
em compromissos efetivados com a reforma agrária, lamentando-se
o governo, até há pouco, da inexistência
de um plano nacional para a questão.
Os
lamentos externados, contudo, não implicaram pronta
ação quando, por encomenda do próprio
governo, o Dr. Plínio de Arruda Sampaio, especialista
e consultor da ONU para o assunto, e uma comissão por
ele constituída elaboraram e entregaram o resultado
de seu trabalho, um Plano Nacional de Reforma Agrária.
Do
que contém tal plano tudo são especulações,
posto que o Ministro do Desenvolvimento Agrário até
o instante em que este é escrito não lhe deu
publicidade.
Mas
essa mesma atitude parece, por fim, ter levado as massas camponesas
a iniciar uma marcha a Brasília para reivindicar do
Presidente Lula uma especificação da política
para o setor.
Se
essa explicitação e essa assunção
de lado se vier somar-se às atividades de desarmamento
no campo que a Polícia Federal recém iniciou
e a uma redução da intensidade do enfrentamento
entre o Poder Judiciário e o Executivo, que também
se anuncia, as esperanças irrealizadas em 2003 poderão
sofrer um revigoramento em 2004. Caso contrário, momentos
graves poderão esperar-nos, com um acréscimo
das violações dos direitos humanos, seja dos
direitos civis e políticos, com o perdurar da impunidade
dos assassinos de trabalhadores, seja dos direitos ao trabalho,
alimentação e moradia, em suma, do direito à
vida, decorrente da desobrigação das autoridades
com o futuro de tantos trabalhadores expulsos da terra ou
sem acesso a ela.
* Aton Fon Filho é advogado, diretor da Rede Social
de Justiça e Direitos Humanos, diretor do Departamento
de Direitos Humanos da Federação Nacional dos
Advogados e membro da Comissão de Direitos Humanos
da OAB/SP
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