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Relatórios


Apesar de muitos trabalhadores não saberem sequer a sua idade, é possível observar que estes são jovens. Em geral, não têm mais de 40 anos. Grande parte deles tem histórico de trabalho infantil, alguns junto com pais que também foram escravos. Muitos não têm documento. Aqueles que possuem carteira de trabalho, geralmente, tiveram o documento retido pelo proprietário. Os trabalhadores escravos, muitas vezes, não sabem sequer aonde irão ficar. Em vários depoimentos é possível observar que, ao serem contatados pelos gatos, são informados que trabalharão em um estado e acabam sendo levados para outro. Isso faz com que o contato com as famílias se perca. A presença de vigilantes armados nas fazendas, em grande parte dos casos, é outra característica do regime de escravidão. Pouquíssimos são os empregados que se arriscam a fugir, até porque são vários os casos de pessoas assassinadas ou gravemente feridas em tentativas de fuga das fazendas.


O perfil do trabalhador escravo no Brasil


Evanize Sydow*


As dezenas de relatórios distribuídos pelos armários da sala onde trabalha a equipe do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, em Brasília, desvendam um cenário ignorado pela maioria de nós. Ali estão, anotados em detalhes, com números, depoimentos e fotos, as histórias de milhares de brasileiros que trabalham 12, 14, 16 horas todo dia por um prato de arroz e farinha e um barraco de lona para poder dormir. A maioria deles não vê uma nota de um real há muito tempo. Pior ainda: muitos não sabem sua idade, nome completo, nomes dos pais. São analfabetos em sua maioria. Muitos deixaram sua terra natal - cidades do Maranhão, Piauí, Pará, Minas Gerais, Mato Grosso - para realizar sonhos: poder comprar um radinho de pilha, uma bicicleta ou mandar dinheiro para garantir a sobrevivência de suas famílias.

Os dados presentes nos documentos do Grupo Móvel mostram que os trabalhadores que estão em situação de escravidão nas fazendas de estados como Pará, Maranhão e Mato Grosso vêm, entre outras, de cidades como Cumaru do Norte, Redenção, Conceição do Araguaia, Nova Marabá, Paragominas, Marabá e Sapucaia - todas no Pará -, Peixoto de Azevedo, Alta Floresta, Torixoreu, Tomucharel, Nova Guarita, Barra do Bugre, Poconé, Jucimeira, Rondonópolis e Cuiabá - no Mato Grosso -, Colina de Maranhão, Piquiá, Barra do Corda, Açailândia, São Luís, Buriticupu, Grajaú, Igarapé Grande, Centenário, Santa Quitéria, Imperatriz, Vitória do Mearim, Porto Franco, Caxias, Campestre, Zedoca, Vitorino Freire, Bacabau, Grajaú, São Mateus, Coroatá, Barra do Corda, Alzilândia, Alto Alegre, Santa Maria, Timbiras, Bom Jardim, Codó, Eugênio Barros, Santa Rosa e Bom Jesus da Selva - no Maranhão -, Buritis do Tocantins, Palmas e Ananás - Tocantins -, Parnaíba, Campo Maior, Barras, União e Regeneração - localizadas no Piauí, apontado como o estado que mais exporta trabalhadores escravos no Brasil -, Uruaçu, Catalão, Cristalina, Goiânia, Barro Alto, Pilar de Goiás, Anápolis, Santo Antonio do Rio Verde - em Goiás -, Mirabela, Coromandel, Diamantina, São João Del Rei, Porto Firme, Patrocínio, Guarda-Mor, Patos de Minas, Sabará, Brumadinho, Juiz de Fora, João Monlevade - Minas Gerais.

O aliciamento da mão-de-obra inicia-se já na descida do ônibus na rodoviária de cada cidade, onde o trabalhador é convidado a se hospedar em uma das pensões locais. Dali até o local onde trabalharão, geralmente, as pessoas são levadas em caminhão que transporta gado, lotado, sem alimentação ou com tratamento precário.

Cerceamento do direito de ir e vir dos trabalhadores, obrigações trabalhistas não cumpridas, omissões de socorro aos trabalhadores que adoecem, aliciamento com promessas enganosas, sujeitando o trabalhador à prática do barracão, cobrando preços abusivos - cerca de 30% mais do que o comércio em geral - pela alimentação, ferramentas de trabalho, combustíveis e peças de manutenção e reposição das motoserras, equipamentos de proteção individual e até pela lona que os mesmos têm que comprar para poder cobrir o barraco onde são obrigados a dormir. Esses são alguns dos elementos que encontramos nesses documentos. Em um caso, a fazenda da empresa Sementes Boi Gordo, em Água Clara, Mato Grosso do Sul, por exemplo, foi encontrado, além de trabalhadores doentes, um índio Caarapó e uma criança de três meses que, havia três dias, só se alimentava de caldo ralo de feijão.

As jornadas diárias de trabalho variam de 12 a 16 horas, de domingo a domingo, sem descanso semanal, na maioria das vezes.

As condições de alojamento e higiene também são péssimas. A água consumida em geral é retirada de poços cavados pelos próprios trabalhadores, a céu aberto e armazenada em vasilhames improvisados, sem qualquer condição de consumo. O alojamento é feito em barracos de palha e lona plástica, sem paredes laterais e piso de terra batida, sem conforto e higiene, sem mesas ou assentos, sem instalações sanitárias; os trabalhadores são obrigados a fazer suas necessidades fisiológicas no mato. Muitas vezes, com acesso precário dos alojamentos até a sede das fazendas - e sem fornecimento de transporte para que os empregados possam comprar alimentos - eles são obrigados a adquirir produtos nas cantinas mantidas pelos gatos (como são chamados os intermediários de mão-de-obra), que não costumam informar a estas pessoas os preços dos produtos adquiridos e nem quanto será cobrado depois. Constam dos relatórios do Grupo Móvel cópias dos cadernos onde são anotadas as dívidas que fazem com que os empregados se tornem escravos dos proprietários das fazendas nas quais trabalham.

Na Fazenda Guapirama, da empresa Maeda S/A Agroindustrial e localizada em Diamantino, Mato Grosso, a fiscalização ocorrida de 29 de março a 9 de abril de 2000 encontrou os trabalhadores alojados em um galpão de cerca de 300 metros quadrados destinados ao armazenamento de grãos, sem condições de higiene, sem piso, sem iluminação e janelas, com presença de ratos, baratas e cobras. Os empregados dormiam no chão (aqueles que trouxeram colchão); não havia camas ou redes; várias dessas pessoas tinham ferimentos e não contaram com primeiros socorros. Faziam suas refeições sentadas no chão.

Em outra fazenda, a Monte Cristo, localizada em Bom Jesus da Selva, no Maranhão, 12 trabalhadores, entre homens, mulheres e menores, dividiam o mesmo barracão, com cerca de 3X6 metros. Alimentos estavam espalhados pelo chão. Não havia instalações sanitárias. O banho era feito em uma cacimba próxima ao Rio Pindaré, a cerca de 500 metros dos alojamentos. A água para consumo era retirada de uma manilha de concreto destinada ao gado, abastecida através de um encanamento vindo de uma fazenda vizinha. Os trabalhadores cercaram uma parte da manilha com madeiras para se servirem da água, separando, assim, da água do gado. A operação foi realizada de 26 de fevereiro a 12 de março de 2002.

Na fazenda Campo Grande, em Açailândia, Maranhão, um dos trabalhadores, conhecido como Pintinho, adoeceu e foi necessário que os outros empregados autorizassem o gato a anotar no caderno de dívidas R$ 1,00 para descontar dos demais empregados com a finalidade de pagar a dívida no barracão do rapaz doente. Do contrário, mesmo debilitado, ele não poderia sair da fazenda.

O relatório que descreve a operação realizada na Fazenda Caraíbas, à época de propriedade do deputado federal Inocêncio Oliveira, mostra que no local 15 pessoas, entre elas um menor, estavam em condições análogas às de escravo. A fazenda fica em Gonçalves Dias, no Maranhão, e a fiscalização aconteceu de 19 a 27 de março de 2002. A origem dos trabalhadores que ali estavam era União, no Piauí, que fica a mais de 200 quilômetros do local. Sete nomes de aliciadores de mão-de-obra foram identificados: Antonio Dias Madeira, João Ferreira, Luiz Gonzaga de Souza, José Luís ("Magro Velho"), Vicente da Silva Sousa, Joaquim Hipólito da Cruz e Deusanildo Vieira Silva. O relatório do Grupo Móvel assim descreve a situação na Fazenda Caraíbas:

Alojamentos precários, sem piso e sem qualquer iluminação, sem instalações sanitárias. Água fornecida era retirada de uma cacimba suja, sem qualquer tratamento. Botas e ferramentas de trabalho descontadas do salário. Comida: apenas arroz e feijão e descontada no salário (o gato informou aos trabalhadores que só poderiam deixar o serviço após a quitação da dívida). Alojamento em barracos, alguns de madeira e outros de taipa, cobertos de palha, de chão batido, sem proteção lateral, sem instalações sanitárias, precárias condições de higiene; não fornecimento de equipamentos de proteção individuais; alojamentos de difícil acesso, trabalhadores sem meio de transporte (barco ou animais) para sair do local; quando precisavam sair, tinham que nadar até a outra margem do rio; não recebiam salário. Em barracos de 6X4 metros (24 metros quadrados) ficavam alojados cerca de 30 trabalhadores; faziam refeições sentados no chão. Apreendidos cinco cadernos com anotações de dívidas referentes a gêneros alimentícios, compras diversas e produção. Segundo Fábio de Assis F. Fernandes, Procurador do Trabalho da 16ª Região, havia na fazenda "forte indício da prática de redução à condição análoga à de escravo"

Os trabalhadores escravos, muitas vezes, não sabem sequer aonde irão ficar. Em vários depoimentos é possível observar que, ao serem contatados pelos gatos, são informados que trabalharão em um estado e acabam sendo levados para outro. Isso faz com que o contato com as famílias se perca. A presença de vigilantes armados nas fazendas, em grande parte dos casos, é outra característica do regime de escravidão. Pouquíssimos são os empregados que se arriscam a fugir, até porque são vários os casos de pessoas assassinadas ou gravemente feridas em tentativas de fuga das fazendas.

Apesar de muitos trabalhadores não saberem sequer a sua idade, é possível observar que este são jovens. Em geral, não têm mais de 40 anos. Grande parte deles tem histórico de trabalho infantil, alguns junto com pais que também foram escravos. Muitos não têm documento. Aqueles que possuem carteira de trabalho, geralmente, tiveram o documento retido pelo proprietário.

Em alguns dos relatórios de operações realizadas pelo Grupo Móvel destaca-se o fato de as propriedades terem financiamento público. É o caso da fazenda Minas Gerais II, em Presidente Kennedy, Tocantins, que tem uma placa em sua entrada indicando ter financiamento do Banco da Amazônia. Pelo menos quatro de seus trabalhadores denunciaram ter sido ameaçados de morte pelo gato José Trajano. Esses homens foram a pé até a BR 152 e, de lá, pegaram carona até a cidade de Balsas, onde a maioria deles foi aliciada. Trabalhavam das 6h às 18h. A operação foi realizada de 14 de novembro a 17 de dezembro de 2001.

Outro caso é o das Fazendas Indiaporã e Diamante, da Agropecuária Vale Bonito S/A, em Sapucaia. Uma placa na entrada da fazenda mostra que o imóvel tem financiamento do Banco da Amazônia. Diz:

Ministério do Planejamento e orçamento - Secretaria Especial de Políticas Regionais - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - Sudam
Projeto: bovinocultura para produção de novilhas e novilhos precoces (financiado pela Sudam)
Valor: R$ 11.417.100.00
Prazo: 3 anos
Banco da Amazônia S.A

Numa fiscalização realizada de 25 de fevereiro a 4 de março de 2000 no local, o Grupo Móvel libertou 69 trabalhadores do local, sendo 66 homens, 2 mulheres e 1 menor.

Em seminário sobre trabalho escravo e degradante realizado durante o Fórum Social Brasileiro - e organizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra, Organização Internacional do Trabalho, entre outras entidades - o ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, anunciou que o governo divulgará em breve uma lista com os nomes de empresas e fazendeiros que utilizam mão-de-obra escrava. O objetivo é que estes não tenham acesso a crédito de órgãos públicos, como Caixa Econômica Federal, BNDES e Banco do Brasil.


* Evanize Sydow é jornalista da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e participou como pesquisadora do levantamento feito pela Organização Internacional do Trabalho para a composição de um banco de dados sobre o trabalho escravo no Brasil