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Relatórios


A escravidão de hoje, prática vergonhosa, tem algumas semelhanças e diferenças com a antiga, aquela que havia no Brasil até 1888. Uma das diferenças é a legalidade. A daquela época era legal, mesmo que injusta; a de hoje continua injusta e é ilegal. É urgente que surjam novos abolicionistas, novos Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Castro Alves.


Hora de novos abolicionistas

Leonardo Vieira*


Há infelizmente não apenas denúncias de existência de escravidão em grotões distantes e perdidos da Amazônia brasileira, mas ela também tem se manifestado mesmo nos estados mais povoados, ricos e industrializados como o Rio de Janeiro. Os municípios de Campos e Valença foram objeto de longas reportagens, pois neles teria ocorrido a escravidão de trabalhadores pobres, alguns aliciados em Alagoas, outros em Minas Gerais.

A escravidão de hoje, prática vergonhosa, tem algumas semelhanças e diferenças com a antiga, aquela que havia no Brasil até 1888. Uma das diferenças é a legalidade. A daquela época era legal, mesmo que injusta; a de hoje continua injusta e é ilegal. É urgente que surjam novos abolicionistas, novos Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e Castro Alves. Como ator não poderia deixar de me recordar da voz inflamada deste poeta protestando com veemência crescente contra o crime cometido contra a liberdade de nossos irmãos e irmãs de origem africana: ele convidava para que seu leitor e ouvinte descesse às senzalas, mesmo se a roupa ficasse imunda, e visse as cenas das ameaças e do chicote e de mãe que protegia o filho e gritava:

"Senhores! Basta a desgraça
De não ter pátria nem lar,
De ter honra e ser vendida
De ter alma e nunca amar!"

E Castro Alves, podia, diante de tanta infâmia que é a escravidão, gritar aos céus, como em O Navio Negreiro:

"Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus..."

Hoje, a identidade de nossos irmãos escravos não é a cor nem a raça, mas a mesma situação de pobreza e exclusão do direito e da cidadania. E certamente, hoje, nosso poeta voltaria a bradar pelo crime que ainda persiste. Se Castro Alves, nosso jovem poeta, soubesse que no século XXI, um presidente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro havia utilizado mão-de-obra escrava no Mato Grosso ele horrorizado pronunciaria seu nome com todas as letras: Jorge Picciani e se perguntaria, perplexo, porque até mesmo quatro deputados da Comissão dos Direitos Humanos - Alessandro Calazans, Roberto Dinamite, Geraldo Moreira e Paulo Melo - votaram contra uma Audiência Pública em que isso seria desvendado. Um único parlamentar votou a favor. Trata-se do deputado Alessandro Molon. Castro Alves certamente repetiria seus versos:

"E existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a tranformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é essa,
Que impudente na gávea tripudia?..."

Estes quatro parlamentares sujam nossa bandeira e utilizam do mandato de forma vergonhosa e triste. E, seria hora, de Castro Alves novamente convocar:

"Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta de teus mares!"

E, como eles não retornam, é nossa tarefa sermos os que cobram a justiça, tornam real a abolição da escravatura por dívida, e limpam a bandeira desta nódoa. Temos já algumas pessoas que participam dessa grande tarefa, sejam agentes de pastoral da terra, sejam funcionários do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, sejam membros da Procuradoria e da Justiça do Trabalho e Federal. Que esse relatório faça avançar nossa luta pela erradicação do trabalho escravo.

*Pronunciamento feito pelo ator Leonardo Vieira, membro do Movimento Humanos Direitos, por ocasião da abertura do Seminário pela Erradicação do Trabalho Escravo realizado em Campos, no Rio de Janeiro, em 19 de setembro de 2003. O evento foi promovido pela CPT, MST, Universidade Cândido Mendes e por diversas organizações da Sociedade Civil e do Estado.