PÁGINA PRINCIPAL
Pagina Principal

Relatórios


Com o passar dos primeiros meses de governo, já entendíamos que o Presidente Lula seria menos sensível aos apelos populares do que havia prometido. Se por um lado a nomeação da Senadora Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente pareceu um gesto de reafirmação do compromisso com as causas históricas do movimento de esquerda e do movimento ambientalista, a nomeação de Roberto Rodrigues para o Ministério da Agricultura representava uma sinalização clara de que a política agrícola do Brasil virava-se para a direita. Além de um importante formador de opinião do setor do agronegócio no País, voltado para o modelo neoliberal da agricultura empresarial de larga escala e dirigida à exportação, Rodrigues era também um declarado defensor da introdução das sementes transgênicas no Brasil. E naquele momento já parecia claro que Rodrigues influenciava mais o governo do que Marina Silva.


Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos - um balanço de fins de 2002 a fins de 2003

Flavia Londres*


Em fins de 2002, Lula acabara de ganhar as eleições presidenciais. Vivíamos numa sociedade embebida de esperança quanto à implementação de uma nova política para o País, mais avançada e responsável, em todas as áreas: meio ambiente, economia, saúde, educação, direitos humanos etc.

No caso dos organismos transgênicos, a sociedade estava, verdadeiramente, confiante, pois Lula prometeu, claramente, durante sua campanha eleitoral, que, se eleito, manteria a moratória a estes produtos até que fossem feitos todos os estudos de impacto ainda necessários e enquanto não estivessem esclarecidas todas as dúvidas quanto aos seus riscos para a saúde e para o meio ambiente. Lula mostrava-se, também, ciente das questões econômicas envolvendo o caso e disposto a levá-las em conta ao conduzir sua política. Estas "promessas" aparecem, pelo menos, em seis momentos de seu programa de governo (Caderno "Meio Ambiente e Qualidade de Vida", pp. 12 e 28, Caderno "Vida Digna no Campo", p. 22, e Caderno "Fome Zero", pp. 50, 87 e 92).

Acabávamos de vencer oito anos de uma política de abertura neoliberal que, neste tema, resultou num intenso embate entre o governo federal e a sociedade civil, esta última conseguindo a muito custo impedir a entrada das plantas transgênicas na agricultura brasileira, apesar da insensibilidade do governo - mais ainda, apesar do declarado esforço governamental em abrir as portas do País a estes produtos.

As armas usadas pelo governo FHC foram basicamente três: primeiro, a tentativa de introduzir no País os produtos transgênicos de forma expedita e discreta, através de atos autoritários (e considerados ilegais) da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança / Ministério de Ciência e Tecnologia).

Segundo, após a suspensão, pela Justiça Federal, da liberação da soja transgênica concedida pela CTNBio em 1998, a União, junto com a Monsanto (multinacional que domina o mercado de sementes transgênicas mundialmente e tenta até hoje liberar os transgênicos no Brasil), iniciou a batalha dos recursos na Justiça (note-se que o que a Justiça determinou foi que se fizesse os estudos de impacto antes da liberação e, ao invés de fazer os estudos, o governo e a Monsanto preferiram tentar derrubar a exigência).

E terceiro - o que deixou seqüelas mais nefastas: a omissão em executar qualquer tipo de controle sobre o contrabando de sementes transgênicas, o plantio e o comércio ilegais ou qualquer tipo de atividade para fins de educação e informação da população (tanto agricultores como consumidores).

Lula iniciou o ano de 2003 com uma espécie de "herança maldita" (como acabou sendo chamada), representada, sobretudo, pela safra de soja do Rio Grande do Sul, para ser colhida a partir de março, em grande parte contaminada por grãos transgênicos. Mas faziam parte também da herança maldita um imbróglio jurídico-legal instalado, uma CTNBio completamente corrompida, cuja maioria dos membros possuía mandatos ainda por vencer, e organizações de agricultores no Sul seduzidos pela propaganda da Monsanto e dispostos a enfrentar o governo contra qualquer tentativa de controle que se tentasse impor.

No final de 2002, todas as organizações envolvidas com o tema já estavam cientes do problema que estava por vir com a colheita da safra de soja gaúcha e começaram a tentar, de todas as formas, reunir-se com Lula e seus ministros com o intuito de discutir e propor soluções. Nenhum dos apelos foi atendido.

Com o passar dos primeiros dois meses de governo, já entendíamos que o Presidente Lula seria menos sensível aos apelos populares do que havia prometido. Se por um lado a nomeação da Senadora Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente pareceu um gesto de reafirmação do compromisso com as causas históricas do movimento de esquerda e do movimento ambientalista, a nomeação de Roberto Rodrigues para o Ministério da Agricultura representava uma sinalização clara de que a política agrícola do Brasil virava-se para a direita. Além de um importante formador de opinião do setor do agronegócio no País, voltado para o modelo neoliberal da agricultura empresarial de larga escala e dirigida à exportação, Rodrigues era também um declarado defensor da introdução das sementes transgênicas no Brasil. E naquele momento já parecia claro que Rodrigues influenciava mais o governo do que Marina Silva.

A constatação geral provocou preocupação em diversas organizações da sociedade civil, que procuraram se articular durante o Fórum Social Mundial, em janeiro de 2003.

Reestruturação da Campanha

Até então, a maior parte do que havia sido feito em nome da Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos partia de um pequeno grupo de ONGs de atuação nacional, muito ativas, mas com pouca capilaridade. Várias iniciativas haviam sido tomadas no sentido de ampliar a Campanha e envolver os grandes movimentos populares do País, além de um número maior de organizações sindicais, ONGs, consumidores, professores etc, mas todas com pouco efeito. Outras organizações realizavam também importantes atividades de Campanha contra a liberação dos transgênicos, mas de forma pouco articulada.

Com o intuito de juntar forças, aumentar a representatividade e, conseqüentemente, conseguir voz junto ao novo governo, propôs-se a criação de uma grande coalizão nacional, ampla e plural, reunida em torno da crítica à introdução precipitada dos transgênicos no País e disposta a dialogar, propor soluções e a participar das decisões governamentais sobre o tema. Nessa perspectiva, organizou-se em Brasília, em meados de março, o Seminário Internacional "A Ameaça dos Transgênicos - Propostas da Sociedade Civil".

Nesta época, ainda não havíamos tido a oportunidade de ser recebidos pelos já evidentes representantes do "núcleo duro" do governo federal (que efetivamente decide os rumos da política) e já sabíamos que estava em gestação uma Medida Provisória autorizando a comercialização da safra transgênica 2002/03. Usamos de todos os recursos e possibilidades de influência para mostrar ao governo os riscos em que esta medida implicaria, também sem sucesso.

O Seminário de Brasília reuniu 85 entidades e terminou com um caderno de propostas detalhadas sobre cinco temas - o destino da safra gaúcha; legislação sobre os transgênicos na agricultura; composição e atribuições da CTNBio; propostas de ação para a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária / Ministério da Saúde); e Pesquisa em Biotecnologia. A única ministra de Estado que conseguimos atrair para o encontro para receber as propostas da sociedade civil organizada foi Marina Silva, do Meio Ambiente.

Medidas Provisórias

Poucos dias depois do seminário foi publicada a MP 113, autorizando a comercialização da soja transgênica gaúcha nos mercados interno e externo.

Do ponto de vista da sociedade civil, se por um lado não conseguimos impedir a edição da MP de forma autoritária, não participativa e até mesmo ilegal (violando decisões judiciais em vigor), o esforço da Campanha fez com que o movimento se ampliasse de forma marcante. O nome Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos passou a ser um grande "guarda-chuva", abrigando um enorme número de grupos, ONGs e movimentos sociais, articulados em forma de rede e dispostos a assumir a luta contra os transgênicos como prioridade de ação.

Enfrentamos a tramitação da MP 113 no Congresso com muito mais força do que tínhamos durante os anos FHC. Realizamos grandes reuniões para definição de estratégia de ação e programação de atividades (tanto em nível nacional como regional), fizemos lobby de forma mais organizada e representativa e ocupamos melhor os diversos espaços disponíveis para influência sobre o governo e para informação e conscientização do grande público.

Infelizmente, com o passar dos meses, assistimos a consolidação da forma do governo Lula de fazer política - pouco transparente, autoritária, reduzindo o espaço de tomada de decisões ao famoso "núcleo duro". Pior, altamente sensível às demandas dos setores de direita.

A MP 113 tramitando no Congresso representava um grande risco de criação de uma lei federal abrindo o País aos transgênicos de forma ampla e desregulamentada. E para aprová-la na Câmara dos Deputados sem grandes modificações, o governo fez um acordo com a bancada ruralista (que mantém no Congresso um poder enorme) comprometendo-se a enviar ao Congresso, num curtíssimo prazo, um projeto de lei regulamentando a questão dos transgênicos no Brasil de forma definitiva.

Note-se que o País já possui uma legislação "definitiva" sobre transgênicos, que tem como base a Lei 8.974, a Lei de Biossegurança, sancionada em 1995. E se o caso da liberação dos transgênicos foi parar na Justiça, não foi por falta de lei, mas sim pelo não cumprimento da lei existente.

As entidades da Campanha se articularam, mais do que nunca, para tentar participar das instâncias governamentais designadas a propor a nova legislação. De tudo se fez para que o processo fosse aberto à participação da sociedade. Até o momento em que este artigo é escrito, o projeto de lei não foi apresentado e desconhecemos seu conteúdo. Mas foi mínimo, e diríamos até mesmo decorativo, o espaço aberto pelo governo para a sociedade opinar.

Paralelamente aos trabalhos de elaboração da nova legislação, o governo federal, notadamente o Ministério da Agricultura, omitiu-se em fazer qualquer tipo de controle sobre a comercialização da safra de soja gaúcha. Suas atribuições iam desde o controle da segregação e da fiscalização sobre o cumprimento da rotulagem da parcela transgênica da safra, até atividades de informação aos agricultores e criação de condições para que o próximo plantio fosse livre de sementes transgênicas - garantindo, inclusive, o suprimento de sementes convencionais em quantidade suficiente.

O governo federal, que no início do ano justificara sua MP pela "herança maldita" do governo FHC que não fiscalizou as lavouras nos anos anteriores, assumiu a vergonhosa e inexplicável atitude de repetir a mesma conduta: omitir-se solenemente.

Como o projeto de lei do governo tardava em ser concluído e encaminhado ao Congresso - decerto graças à pressão que as entidades da Campanha e os parlamentares do PT comprometidos com a questão conseguiram exercer -, os agricultores gaúchos determinados a seguir plantando sementes transgênicas (iludidos pelos excelentes resultados da safra 2002/03 devido ao clima favorável, que beneficiou todas as lavouras, transgênicas ou não, e pela diminuição da "penosidade do trabalho") começaram um movimento para a edição de uma nova medida provisória, autorizando o plantio de sementes transgênicas na safra 2003/04.

O que no princípio pareceu altamente improvável, pois seria uma pá de cal sobre todas as esperanças do movimento anti-transgênicos acerca da criação de uma nova legislação séria e responsável, acabou-se por definir da maneira mais chocante possível.

No final de setembro, Lula chamou, sem prévios avisos e atropelando todos os processos e instâncias consolidados pelo próprio governo, o governador do Rio Grande do Sul Germano Rigotto (atual líder dos grupos pró-liberação no estado), o secretário-executivo do Ministério da Agricultura, três parlamentares do PT e um do PMDB, todos favoráveis à liberação dos transgênicos, para, numa tarde, definir e assinar a MP liberando a safra 2003/04. Isso só não se deu nesse dia graças à determinada intervenção da Ministra Marina Silva, que, sabendo da reunião através da imprensa, apressou-se em se intrometer.

Lula viajou para os EUA no dia seguinte, deixando para seu vice, José Alencar, a incumbência de assinar a famigerada MP. Jamais se viu no País tamanha mobilização popular em torno do tema como se viu nessa semana.

Assustado, Alencar titubeou em arcar com a responsabilidade de assinar a medida. Desde que o fato virou público, ele foi alertado por diversos órgãos do sistema judiciário sobre todos os aspectos ilegais e até inconstitucionais da MP. Ao mesmo tempo, fomos ganhando destaque na imprensa (fomos capa dos principais jornais impressos do País e destaque nos noticiários televisivos durante todos os dias), que começou, finalmente, a divulgar mais claramente os motivos pelos quais somos contra a liberação dos transgênicos.

Finalmente, ao cabo de alguns dias, a MP 131 foi assinada por José Alencar, mas com um custo político sobre o qual, que até o presente momento, o governo parece não se dar conta e não saber administrar. Tivemos uma tremenda derrota concreta com a liberação do plantio da safra 2003/04, mas nossas ações ganharam uma dimensão maior do que a que podíamos prever. Ganhamos força política, constrangemos o governo e conseguimos expor melhor ao público em geral os motivos que nos movem.

Neste momento, o governo dá sinais contraditórios para o futuro próximo. Por um lado, apreensivo, Lula prometeu a Marina Silva que o projeto de lei, anunciado para breve, estará de acordo com todas as preocupações ambientais, sociais e de saúde por ela levantadas. Por outro, em atitude até mesmo provocativa, acaba de indicar para relator da MP 131 no Congresso um dos principais porta-vozes do movimento pró-transgênicos no Rio Grande do Sul - o deputado petista Paulo Pimenta.

Este projeto de lei representa, atualmente, a única esperança concreta de definição de uma legislação responsável, garantindo a necessidade da realização das avaliações de riscos dos transgênicos, bem como de sua pertinência social e econômica, previamente a qualquer liberação comercial. Nosso desafio, no curto prazo, será impedir que a MP 131 piore ao tramitar no Congresso ou se transforme numa lei federal de liberação ampla destes produtos, e, paralelamente, garantir que o PL que o governo apresentará corresponda às nossas expectativas e tenha fôlego para tramitar no Congresso sem pioras. Se isto acontecer, a MP 131 terá sido uma derrota provisória, seguida de uma vitória permanente.

Cenários futuros

Mas, o que vem pela frente é difícil de se prever. Contamos, hoje, com um movimento mais forte e organizado do que tínhamos há um ano, e com um governo que, embora tenha frustrado todas as esperanças de seriedade e cautela depositadas nas organizações envolvidas com o tema, começa a dar sinais de perceber que a liberação dos transgênicos de forma precipitada e desregulamentada, como se tenta no momento, poderá custar muito mais do que ele próprio se dispõe a pagar. O preço político será alto. Cabe a nós agora o desafio de ampliar e fortalecer o movimento além do que já conseguimos e brigar para que o governo acorde, antes que seja tarde.


* Flavia Londres é engenheira agrônoma e assessora da AS-PTA - Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa e da Campanha Por um Brasil Livre de Transgênicos