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Relatórios


Os bolivianos costumam trabalhar das 6h às 23h ou das 7h às 24h e ganham entre R$ 200,00 e R$ 400,00 - valor difícil de ser alcançado - por mês. Moram num cubículo, no próprio local de trabalho. São quartinhos de 2,00m x 1,50m que abrigam o trabalhador, sua família, a máquina de costura e mais um espaço para colocar a roupa que é produzida (em alguns, o quarto e a oficina ficam em ambientes diferentes). Os colchões são enrolados durante o dia e à noite, quando vão dormir, se transformam em cama. As roupas prontas são normalmente entregues a coreanos que têm lojas de roupas baratas.

Bolivianos escravizados em São Paulo


Evanize Sydow*


A sala de espera do Centro Pastoral dos Latino-Americanos, em São Paulo, está sempre cheia. De segunda a sexta-feira. São bolivianos, alguns regulares, mas a maioria indocumentada ou ilegal no Brasil. A grande parte trabalha de forma precária em confecções nos bairros do Belém, Brás, Vila Maria, Bom Retiro, Mooca e Pari. A advogada da entidade, Ruth Miriam Camacho Kadluba, atende a cerca de 30 deles em apenas uma tarde de quinta-feira.

Segundo Ruth, hoje as estimativas são de que existem de 30 a 50 mil bolivianos irregulares em São Paulo. Ela conta que muitos preferem ficar na irregularidade pois não vêem benefício nenhum em ser regularizados. Até porque os custos são altos. Só com documentos gasta-se cerca de R$ 200,00.

A partir das entrevistas com seis bolivianos, foi possível observar que, pelo menos nestes casos, os trabalhadores estão em São Paulo há bastante tempo - 3, 4, 8 anos. Todos vieram pelo mesmo motivo: tentar ganhar um pouco mais de dinheiro e viver em melhores condições, já que o trabalho na Bolívia é extremamente escasso e sem possibilidades para aqueles que não conseguem ter uma faculdade (a maioria dos bolivianos que estão no Brasil chegava a passar fome em seu país). Eles também dizem que o objetivo não é ganhar dinheiro para guardar, mas ter uma vida um pouco melhor. Muitos aprenderam a costurar aqui, com o dono da confecção; outros já trabalhavam no ramo na Bolívia, em situação muito ruim. Estão (ou ficaram) há bastante tempo indocumentados. São unânimes em dizer que, se pudessem pedir alguma coisa para o governo brasileiro, seria para facilitar as condições para que se tornassem regulares no país. A maioria diz que as condições de trabalho aqui no Brasil, apesar de tudo, ainda são melhores do que na Bolívia. Nem todos conhecem casos de trabalho escravo; e não se reconhecem como trabalhadores escravos.

Os bolivianos costumam trabalhar das 6h às 23h ou das 7h às 24h e ganham entre R$ 200,00 e R$ 400,00 - valor difícil de ser alcançado - por mês. Moram num cubículo, no próprio local de trabalho. São quartinhos de 2,00m x 1,50m que abrigam o trabalhador, sua família, a máquina de costura e mais um espaço para colocar a roupa que é produzida (em alguns, o quarto e a oficina ficam em ambientes diferentes). Os colchões são enrolados durante o dia e à noite, quando vão dormir, se transformam em cama. As roupas prontas são normalmente entregues a coreanos que têm lojas de roupas baratas.

As operações da Polícia Federal não são vistas com bons olhos pelos bolivianos. Isso porque, ao serem descobertos, os trabalhadores são expulsos do país. Em operação recente no Brás, foram dados três dias para que saíssem do Brasil.

Há entre os bolivianos formas de descontos e dívidas, dois elementos que acabam mantendo os trabalhadores no local. Eles seguem trabalhando gratuitamente até que paguem a dívida. Se errarem em alguma peça, pagam pela peça inteira o preço que o dono venderia para os coreanos. Em fases boas, costuram de 200 a 250 peças por dia. Hoje em dia, ficam em média com 80 peças diárias, recebendo R$ 0,10 por cada uma delas - deveriam receber R$ 0,20; a diferença fica pela moradia e alimentação.

Segundo os bolivianos e o Centro Pastoral dos Latino-Americanos, para essa situação melhorar, é preciso legalizar os indocumentados. Após a legalização, o exercício da força para os donos de costura que não tiverem legalizados suas firmas e seus empregados. O governo brasileiro deve forçar o governo boliviano a acabar com a propaganda que vem sendo feita lá. Essas propagandas dizem, no rádio, que, no Brasil, os bolivianos, especialmente com idades entre 18 e 25 anos, vão encontrar bom emprego, faculdade paga, dinheiro para conhecer o nosso país e recursos para investir na Bolívia.

Hoje, a regularização pode se dar nos seguintes casos:
- quando o boliviano tem um filho nascido no Brasil;
- quando casa com um brasileiro;
- no caso de reunião familiar, ou seja, o boliviano que consegue o documento pela anistia pode conseguir também para mulher, filhos ou pais;
- anistia (quando é aberta a todos; a última foi em 1998);
- regularização (Livre Movimento do Mercosul). Nesse caso, o preço da multa é alto: R$ 53,80 para entrar com o processo; na Polícia Federal é dada uma carta para pagar a multa de R$ 848,00 que, se não for quitada, ao sair do país, o migrante não consegue entrar mais. No entanto, alguns advogados, filhos de bolivianos em sua maioria, cobram R$ 1.500,00 para preencher os documentos, mas, ao contrário do que prometem, não pagam a multa. Sem saber disso, muitos não conseguem voltar ao Brasil quando saem daqui para visitar a Bolívia.

A maior parte dos bolivianos vem de cidades como La Paz, Sucre, Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba. Em geral, entram no Brasil por Cuiabá, no Mato Grosso, ou San Mathias, na Bolívia, que faz fronteira com Cáceres, Mato Grosso, e Corumbá, no Mato Grosso do Sul.

A alimentação é muito fraca nas confecções em São Paulo. Arroz, batata, salada e salsicha são os mais freqüentes no cardápio. Pouquíssimas vezes os trabalhadores comem carne ou ovo. Para quem trabalha mais de 17 horas por dia, a alimentação é extremamente insuficiente. Por isso, uma das trabalhadoras diz que acorda no dia seguinte sem ânimo para mais uma jornada de trabalho. Além disso, as crianças não têm uma alimentação adequada. Os pais é que têm que comprar leite, legumes ou frutas. Os empregados têm uma hora de intervalo para o almoço e jantar e 15 minutos para o café. Os piores exploradores são os próprios bolivianos, dizem os trabalhadores. Uma das mulheres conta que gostaria que o governo brasileiro desse oportunidade para que eles trabalhassem limpando casas, ruas ou outras funções: "Todo trabalho é honrado. E com a documentação poderia impedir que escravizassem a gente." Ela está há dois meses sem receber. Sabe que seu patrão também está em situação difícil. Está sem um real no bolso e precisa pensar na filha pequena que é obrigada a ficar trancada num quarto durante todo o dia.

Aos domingos, quando começa a anoitecer, os bolivianos, regulares ou indocumentados, se encontram na Praça Padre Bento, mais conhecida como Praça do Pari. Lá, têm contato com suas raízes, com seu povo. No entanto, alguns evitam contatos. Têm receio de sua situação. Muitos sequer se cumprimentam, apesar de se conhecerem ao menos de vista da época em que moravam na Bolívia.

Segundo o Padre Roque Renato Pattussi, coordenador do Centro Pastoral dos Latino-Americanos, eles raramente saem com medo de serem pegos pela polícia.

De acordo com o livro "Costurando Sonhos", de Sidney Antônio da Silva, um estudioso do caso dos bolivianos em São Paulo, com o êxodo rural, a população boliviana tem se dirigido para três centros urbanos: La Paz, Santa Cruz de la Sierra e Cochabamba. "Tal processo de urbanização intensificou-se a partir da década de 1980, quando mais da metade da população boliviana passa a residir no meio urbano."

Cerca de 50% da população economicamente ativa vive na economia informal. "Além do problema do emprego, temos o da falta de moradia, o saturamento dos serviços públicos, como a saúde e a educação."

No Brasil, o destino da mão-de-obra boliviana (e barata) são, geralmente, as pequenas confecções, "cujo mercado antes dominado pelos judeus passou, a partir da década de 70, a ser abarcado pelos coreanos".

Neste livro, o autor informa que a via de entrada no país mais comum é viajar em trem de Santa Cruz de la Sierra até a fronteira com o Brasil, que é Corumbá, no Mato Grosso do Sul, cruzando-a em ônibus e entrando com visto de turista, válido por um mês. Também é possível cruzar a fronteira a pé ou em táxi, sem nenhum controle. Outra forma de entrar é cruzar a fronteira passando por Cáceres e Cuiabá, no Mato Grosso ou entrar por Guajará-Mirim, em Rondônia. Por essa via, o imigrante fica de forma clandestina no Brasil.

Na obra, é destacado que não há como estimar o número de bolivianos indocumentados no Brasil. "O Censo de 1980 constatou que havia 12 mil bolivianos no Estado, indicando que o número desses imigrantes começava a crescer, tendo o seu ponto culminantes no início do decênio de 1990. Nesse sentido, a Fundação Bolívia estima que há em São Paulo cerca de 100 mil bolivianos (setembro de 1992). Na cidade de São Paulo concentra-se o maior número de bolivianos no país, seguida pelo Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Corumbá."

Para este trabalho, o autor fez uma pesquisa no fichário da Pastoral do Migrante, em São Paulo, onde estão dados das pessoas atendidas, como idade, sexo, estado civil, grau de instrução e lugar de entrada no país. Foram consultadas 332 fichas entre 1985 e 1994. Entre os dados colhidos estão que 74,2% dos atendidos são homens e 25,8% são mulheres; a faixa etária da maioria situa-se entre os 20 a 40 anos (74,3%), sendo que dos 40 aos 50 anos são 8,9% e o restante acima de 50 anos; a maioria é originária do estado e da cidade de La Paz (42,16%), seguida de Cochabamba (9,2%), Oruro (4,9%), entre outras; a profissão mais citada é a de costureiro (48,8%); o estado civil da maioria é solteiro (56,6%); para residência em São Paulo predominam os bairros do Brás, Bom Retiro e Pari.

Também foi possível mostrar o perfil dos bolivianos clandestinos que trabalham no ramo da costura em São Paulo: em geral são jovens, com faixa etária entre 15 e 35 anos, com nível de escolaridade médio entre os homens, enquanto as mulheres têm nível mais baixo. A maioria deles tem pouco domínio do português. "Segundo a Fundação Bolívia, o setor que mais absorve mão-de-obra, masculina ou feminina, entre os indocumentados é o das confecções, atingindo um percentual de 40% do total, e o restante estaria distribuído entre as ocupações de operários, domésticas, vendedores ambulantes, pedreiros, carpinteiros." De acordo com a Fundação Bolívia, o nível salarial dos costureiros clandestinos fica entre 50 e 200 dólares mensais.

A falta de documentação é uma das maiores dificuldades encontradas pelos bolivianos. É o pesadelo de serem abordados pela Polícia Federal e expulsos do país. "A situação de insegurança em que vive a maioria deles é resultante, por um lado, da falta de documentos, e, por outro, é conseqüência da estratégia utilizada pelos donos das pequenas confecções, os quais os amedrontam dizendo que a polícia pode abordá-los a qualquer momento pelas ruas da cidade, ou ainda ameaçam entregá-los à mesma, caso eles decidam mudar de emprego."

A remuneração dos trabalhadores é outro ponto presente neste estudo. Para aqueles que trabalham por produção, ela varia de R$ 200,00 a R$ 500,00 nos meses de alta produção, como o final do ano. Mas há aqueles que trabalham o mesmo número de horas por um salário fixo, recebendo de R$ 70,00 a R$ 140,00 mensais. Neste grupo estão, geralmente, aqueles que estão começando na costura. "Entretanto, constatamos casos de extrema exploração, em que eram pagos salários de R$ 30,00 a R$ 50,00 mensais e, em alguns casos, os trabalhadores permaneciam vários meses, ou até mesmo anos, sem receber um único salário." Os donos das confecções pagam entre R$ 0,15 e R$ 1,50 por peça, dependendo da complexidade.


* Evanize Sydow é jornalista da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e participou como pesquisadora do levantamento feito pela Organização Internacional do Trabalho para a composição de um banco de dados sobre o trabalho escravo no Brasil