De janeiro a maio de 2003, a Polícia Militar de São
Paulo matou 435 pessoas - uma média de quase três
homicídios por dia. Esses dados revelam um aumento
de 51% em relação ao mesmo período no
ano passado.
Os grupos de extermínio e a debilidade
institucional
da proteção à vida
Fermino
Fechio*
Apesar das suspeitas que sempre pairam sobre os dados estatísticos
da Secretaria de Segurança Pública, as informações
existentes comprovam que o número de crimes violentos
aumentou consideravelmente nos anos 90, no Estado de São
Paulo.
A
taxa de homicídios por 100 mil habitantes, na Capital,
que era de 38,90, em 1993, subiu para 53,00, em 1995, e 59,20,
em 1999. Em Ribeirão Preto, a mesma constatação:
de 15,89 em 1991, o índice pulou para 44,64, em 1998,
dando razão às análises que apontavam
que o aumento da violência não se restringia
à região metropolitana, mas atingira as cidades
interioranas de médio porte. Em 2001, a Fundação
Seade registrou 15.341 homicídios em todo o Estado.
A
exacerbação da criminalidade, por outro lado,
coincidiu com a multiplicação dos episódios
de violência policial, de denúncias de práticas
criminosas e de envolvimento de policiais com o crime organizado.
São
antigas as suspeitas de participação de policiais
nas execuções de jovens e adolescentes no Estado
de São Paulo. Em alguns casos, isso ficou comprovado,
como no carnaval de 1999, na Baixada Santista, quando três
rapazes foram detidos, assassinados e enterrados no mangue,
por policiais militares. Ou o caso de Ribeirão Preto,
em que a autoria das mortes de três rapazes, fuzilados
e abandonados no meio de um canavial, foi atribuída
a dois policiais militares, depois expulsos da corporação.
Mas
isso não é a regra. O mais comum, infelizmente,
é a impunidade, como no caso de Sumaré, de março
de 1999, em que quatro adolescentes, três com menos
de 18 anos, foram sumariamente executados por policiais civis
de Campinas. O local não foi preservado, os vestígios
apagados, os corpos foram removidos para outro município,
as armas sumiram, policiais se recusaram a fazer exames periciais,
o inquérito se arrastou por quatro anos e ninguém
foi punido. Um fato dessa gravidade, com quatro vítimas
fatais, com uma quantidade absurda de projéteis nos
corpos, não mereceu atenção especial
nem das autoridades de Campinas, nem de Sumaré, nem
de Paulínia (para onde os corpos foram removidos e
feitos os registros de óbitos), nem da Corregedoria
policial, nem da Secretaria de Segurança, nem do governador
do Estado. Só a Ouvidoria da Polícia protestou.
Nesse,
como na maioria dos casos de "resistência seguida
de morte", como comprovou pesquisa diligente da Ouvidoria,
a atuação policial não é sequer
averiguada e seu destino, quase sempre, é o arquivo,
sem nenhum julgamento de mérito.
A
péssima qualidade dos serviços de polícia
judiciária de Campinas, aliás, já foi
denunciada pelo Ministério Público local. Não
é para menos. A investigação do homicídio
do Prefeito de Campinas (setembro de 2001), por exemplo, foi
confiada a um policial que já tinha sido denunciado
como torturador, em 1975, pelos presos políticos do
regime militar, além de ter sido acusado e preso por
envolvimento com o crime organizado, pela CPI do Narcotráfico
da Câmara Federal. Até hoje o resultado do inquérito
sofre contestações e foi recebido com muita
desconfiança pela opinião pública e pela
família do prefeito assassinado.
Vale
lembrar, também, as suspeitas que cercam a apuração
da chacina de Caraguatatuba, de outubro de 2001, na qual foram
executados quatros rapazes (dois deles suspeitos de envolvimento
com o assassinato do prefeito campineiro) por policias civis
de Campinas, dentro de um condomínio fechado, à
noite, sem qualquer mandado judicial. O local não foi
preservado, os corpos removidos, colchões incinerados,
objetos roubados, laudos forjados, nome de policiais participantes
omitidos, armas usadas sonegadas à perícia e,
apesar de tudo isso, presenciamos a manifestação
apressada e patética do governador, dois dias depois,
de que a ação dos policiais tinha sido absolutamente
legítima.
Tempos
depois, dois dos policiais homicidas foram presos por outros
crimes, inclusive por participação na quadrilha
do seqüestrador Andinho, principal suspeito, segundo
a própria polícia, do assassinato do prefeito.
Nem o governador, nem ninguém da Secretaria, mesmo
assim, veio a público para retificar a avaliação
anterior, ou para pedir mais rigor nas apurações,
ou para pedir desculpas aos familiares das vítimas.
No
novo milênio, a violência não arrefeceu
em São Paulo e as denúncias contra policiais
aumentaram consideravelmente.
Na
capital, o Ministério Público e o Tribunal de
Justiça investigam denúncias contidas no Relatório
Gradi (Grupo de Repressão e Análise de Delitos
de Intolerância), elaborado em agosto de 2002 pela Ouvidoria
da Polícia. Esse relatório aponta uma série
de ilegalidades praticadas por um grupo de elite de policiais
militares, vinculado diretamente ao gabinete do Secretário
de Segurança Pública, grupo este responsável
por ações com dezenas de vítimas fatais
e acusado de retirar presos sentenciados dos presídios
para infiltrá-los ilegalmente em organizações
criminosas. Só em uma dessas operações,
o "massacre da Castelinho", o saldo foi de 12 vítimas
fatais, todas com características de execução.
O relatório aponta, também, casos de morte e
de lesões corporais gravíssimas dos detentos
utilizados pelo Gradi nessas operações. Em razão
disso, foram afastados o juiz das execuções
penais e o juiz do Dipo. Na esfera do Executivo, registraram-se
apenas reações iradas contra os autores das
denúncias.
Em
Ribeirão Preto, à lista dos jovens mortos por
policiais, da qual já constavam, entre outros, Enoch
Moura (18 anos), Anderson Luis (15 anos) e Fernando Néri
(20 anos), foram acrescentados, em março de 2002, os
nomes de Vitório, Marcelo, Alessandro, Rodrigo, Rodrigo
de Souza e Sandro Lima. Em agosto de 2002 foram incluídos
os nomes dos irmãos Vanderson (17 anos), Anderson (18
anos) e Marlene, e do namorado dela, Rodrigo, além
de Maicon e Rogério, ambos com 19 anos. Leandro (18
anos) e Thiago (19 anos) fecham a lista do mês de maio
de 2003.
Algumas
dessas mortes foram executadas com requintes de selvageria
e barbárie. Um menino foi morto dentro de uma cela
individual, num distrito policial, a golpes de machadinha.
Sandro Lima, vulgo Pezão, foi executado dentro da sala
cirúrgica, na presença de médicos e enfermeiras,
no hospital para onde tinha sido levado ferido, depois de
anterior tentativa de execução. O serviço
foi completado com disparos de armas de cano longo com silenciador
por três indivíduos que adentraram o hospital
e que as testemunhas juram, apesar dos disfarces, que são
policiais.
Alguns
dos policiais acusados por essas mortes foram presos depois
por outros crimes, como roubo de carga, contrabando e formação
de quadrilha. Nem assim as autoridades se preocuparam em determinar
maior rigor nas investigações das mortes a eles
atribuídas.
Em
Guarulhos, repete-se a mesma tragédia: só mudam
os nomes das vítimas e dos policiais suspeitos. A dor
e o desespero dos familiares é como em Ribeirão:
inclusive, a mesma prática ignominiosa de sumiço
de corpos de vítimas para garantir a impunidade. Presenciamos
a mesma omissão das autoridades, salvo o empenho e
dedicação de alguns promotores locais, sujeitos
a ameaças de morte.
Apesar
desses números trágicos e dessa epidemia anual
de homicídios, a população paulista ainda
tem que ouvir o discurso governamental de que "aqui tem
comando, aqui não é o Rio de Janeiro".
A
iniciativa do Governo Federal, através da Secretaria
Nacional de Direitos Humanos, de criar uma comissão
especial para apurar a atuação desses grupos
de extermínio em São Paulo, acendeu uma pequena
luz na escuridão e fez brotar nos corações
dos familiares das vítimas a esperança de que
não mais estarão sozinhos na busca de corpos
desaparecidos ou na luta para exigir a punição
dos autores das atrocidades cometidas.
Resta,
ao menos, a consolação de que os paulistas que
não perderam a capacidade de pensar e de se indignar
com essa barbárie ainda são maioria e exigem
a revogação dessa "política da matança",
que além de não garantir a segurança
da população, cobra um preço altíssimo
em vidas humanas.
* Fermino Fechio é advogado, ex-ouvidor da Polícia
do Estado de São Paulo e diretor do Centro Santo Dias
de Direitos Humanos
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