As violações dos direitos humanos fazem parte
do cotidiano da maioria das pessoas que vivem nos bairros
onde o poder público se faz presente quase exclusivamente
na sua força repressora: a força policial. Esta
situação tem desenvolvido nas comunidades do
Sapopemba um sentimento de orfandade, medo e insegurança,
que vai minando a esperança de justiça depositada
no Estado. De janeiro a maio de 2003, a Polícia Militar
de São Paulo matou 435 pessoas, média de quase
3 por dia, e 51% a mais do que no mesmo período do
ano passado. O Ouvidor da Polícia, Fermino Fecchio,
que vinha denunciando esses episódios como fruto de
uma "política de matança", foi recentemente
afastado do cargo, por pressão do Secretário
de Segurança, o promotor Saulo de Castro Abreu Filho.
Sapopemba: política de matança
na periferia
de São Paulo
Ana
Facundes*
"Foi no dia 24 de abril, por volta das 10 horas da manhã.
Eles bateram na porta, eu atendi. 'A Senhora é a dona
da casa?' 'Sou' - mal tive tempo de responder e já
fui levando um soco no olho. Eles entraram e continuaram me
batendo. Batiam também no meu marido, que tentou me
defender, e me xingavam de vagabunda, puta, cadela e outros
nomes, que eles usaram pra xingar também a minha filha
de 11 anos. Meus filhos menores choravam, vendo aquela cena,
os pais apanhando, e os policiais ameaçavam, dizendo
que iam pra FEBEM. Enquanto eles batiam na gente, diziam que
a gente ia assinar tudo, mas eu nem sabia qual era o crime
que a gente tinha cometido. Depois de meia hora batendo na
gente, eles nos algemaram, tiraram de casa e levaram pra dentro
de uma viatura." (Depois de muito tempo dentro da viatura,
sem que ninguém lhes explicasse o que estava acontecendo,
um dos policiais abriu a porta da viatura para que uma equipe
de TV do Programa 'Cidade Alerta' pudesse expô-los em
rede nacional como uma dupla de perigosos seqüestradores.)
"No caminho até a delegacia, os policiais diziam
pela janelinha que iam dar choque na gente. Chegamos na delegacia
às 14h30, mandaram a gente encostar na parede e cada
policial que passava agredia meu marido e um outro rapaz com
os revólveres. Depois, nós fomos fotografados
e revistados. Um policial me chamou de vagabunda e disse que
eu não ia ficar na mesma cela que o meu marido, senão
ele ia voltar e encontrar a gente fazendo sexo. Eu fiquei
numa cela com um homem que eu nunca vi na minha vida. Só
depois, conversando, eu vi que era uma vítima como
nós, que foi preso nas mesmas condições
que a gente. Depois que deixaram a gente na cela, os policias
apagaram as luzes duas vezes e jogaram um gás que depois
a gente veio saber que era spray de pimenta. Enquanto eles
jogavam o gás, eles ficavam fazendo barulho, imitando
fantasmas. Isso tudo por volta das 15h. Ficamos ali durante
horas, passando mal, sufocados com enjôo e dor de cabeça.
Eu sentia vontade de urinar, mas não aparecia ninguém
perto da cela. Só por volta das 20h30, apareceram dois
policiais, perguntaram quem nós éramos e, pela
primeira vez, eu e meu marido fomos ouvidos. Depois que a
gente respondeu as perguntas, meu marido pediu pra eu usar
o banheiro. Os policiais disseram que iam mandar alguém
para me acompanhar. Nesse momento, nós soubemos que
tinha dois advogados para nos acompanhar (só depois
nós ficamos sabendo que eles já estavam lá
desde às 15h, mas só conseguiram falar com a
gente às 23h). Às 21h15, os policiais apareceram
pra me acompanhar até o banheiro. Eles perguntaram
o que era aquele cheiro tão forte, porque eles não
estavam nem conseguindo ficar naquele lugar. Eu disse que
era uma espécie de gás, aí eu soube por
eles que era o tal do spray de pimenta. Por volta das 22h30,
nós três (eu, meu marido e o rapaz que estava
na cela comigo) fomos levados até o delegado. Nós
respondemos as perguntas dele. No final, ele pediu desculpa
e disse que a gente podia ir embora, porque nós não
éramos quem eles estavam procurando." 2
Este
casal de moradores do distrito de Sapopemba, zona leste da
cidade de São Paulo, segundo relatou, foi vítima
de uma mega-operação policial nessa região,
nos dias 23 e 24 de abril de 2003, aparentemente comandada
pela Polícia Civil, com a colaboração
da Polícia Militar. Conforme relato de moradores, com
o pretexto de ter mandados coletivos de busca e apreensão
- que nunca foram apresentados - a polícia invadiu
várias casas sem autorização dos moradores,
quebrou objetos e móveis, apropriou-se de fotografias
e documentos pessoais, expondo as pessoas a constrangimentos
degradantes e intoleráveis. Ainda conforme o relato,
nessa operação, várias pessoas foram
vítimas de tortura, lesões corporais, injúrias
e calúnias. Houve, inclusive, o caso de uma mulher
grávida que teve um aborto espontâneo depois
de sofrer agressões verbais e presenciar os vizinhos
sendo espancados.
Práticas
criminosas dos policiais
Mas
este não foi um fato isolado. Nessa região,
com altos índices de violência e desemprego,
os moradores têm mais medo da polícia do que
dos traficantes que dominam as favelas. Diversas organizações
de defesa dos direitos humanos vêm denunciando uma extensa
lista de práticas criminosas e, infelizmente, rotineiras
dos policiais dessa região. Há denúncias
de que, além de fazer acertos com traficantes da região,
quando as viaturas (das polícias civil ou militar)
chegam, os policiais mandam todas as pessoas entrarem para
dentro de casa, em tom ameaçador, agredindo aqueles
que não atendem prontamente. Algumas viaturas colocam
música clássica em alto volume enquanto agridem
as pessoas. Invadem as casas a qualquer hora do dia ou da
noite, sem apresentar qualquer ordem judicial. Com o pretexto
de revista, quebram objetos, rasgam documentos pessoais e
levam fotografias e documentos dos moradores, sempre alegando
que são traficantes. De acordo com os moradores, quando
chegam pela manhã, abordam os trabalhadores que, mesmo
depois de se identificarem, são tratados como bandidos,
têm suas bolsas e marmitas abertas e muitas vezes a
comida jogada fora. Agridem verbalmente as pessoas (inclusive
mulheres e crianças) sem nenhuma justificativa, sempre
usando palavras de baixo calão. Quebram as luzes que
ficam fora das casas e que os moradores colocam para iluminar
as vielas. Nas operações policiais, disparam
tiros de arma de fogo contra as casas (há, realmente,
situações em que se trata de troca de tiros,
mas, na maioria das vezes, os disparos são aleatórios).
Os estudantes do período noturno muitas vezes ficam
impedidos de voltar para casa depois das aulas, porque os
policiais não permitem que qualquer pessoa entre ou
saia durante o período em que eles estão em
determinado local. Os usuários de drogas apanham muito
e têm que entregar qualquer quantia em dinheiro que
tenham naquele momento - os moradores são unânimes
em afirmar que há muitos casos de abuso sexual dos
usuários por parte dos policiais.
Quando
a pobreza se torna crime
As
violações dos direitos humanos fazem parte do
cotidiano da maioria das pessoas que vivem nos bairros onde
o poder público se faz presente quase exclusivamente
na sua força repressora: a força policial. Esta
situação tem desenvolvido nas comunidades do
Sapopemba um sentimento de orfandade, medo e insegurança,
que vai minando a esperança de justiça depositada
no Estado.
A
presença do Estado, que já é precária,
fica ainda mais prejudicada quando ocorrem essas operações
policiais. Não são raros os casos em que os
poucos equipamentos públicos existentes fecham por
falta de funcionários, que se sentem inseguros, diminuindo
seu ritmo de trabalho.
Nas
escolas, nas semanas em que há operações
policiais, um grande número de alunos e os próprios
professores faltam às aulas. Aumentam os pedidos de
transferência de professores e diretores, inclusive
devido a interpelações sumárias de policiais
exigindo das diretorias das escolas informações
pessoais de alunos, que eles afirmam ser suspeitos. Diante
da recusa em fornecer estas informações, os
funcionários sofrem ameaças de sanções
legais.
No
sistema de saúde pública, que já é
precário, consultas marcadas com meses de antecedência
são perdidas, porque as pessoas têm receio ou
não conseguem sair de casa. Nessa área, também
há um aumento dos pedidos de transferência dos
funcionários. Observa-se um aumento de problemas de
saúde, resultantes dos abalos emocionais provocados
por esse clima de terrorismo imposto à população
- inclusive aumento dos casos de depressão e tentativas
de suicídio entre mães e donas-de-casa.
No
trabalho, os moradores também sofrem as conseqüências.
Há muitos casos de pessoas que, ao procurarem emprego,
informam o endereço de algum parente morador de outra
região, para evitar o estigma de morador de um local
que aparece cotidianamente nos meios de comunicação
como "antro de bandidos e traficantes".
Muitas
pessoas são forçadas a mudar seu cotidiano,
enquanto algumas são obrigadas a mudar do local em
que vivem. O resultado é que todos os moradores da
região acabam sendo vítimas dessa política
de segurança nefasta.
Repercussão
Nacional
Organizações
de direitos humanos da região promoveram uma oitiva
pública, no dia 7 de junho de 2003, para relatar a
autoridades (entre eles, representantes do Ministério
Público e da Secretaria de Segurança Urbana)
e representantes de diversas organizações (inclusive
a Anistia Internacional) os casos flagrantes de arbitrariedade
e violência policial. No Ato de Desagravo, realizado
na Câmara Municipal de São Paulo, no dia 10 de
julho, inúmeras denúncias foram registradas,
com cobertura de um jornal de grande circulação
na Capital.
Após
estas ações, intensificaram-se as ameaças
de morte contra Valdênia Paulino, advogada do Centro
de Defesa dos Direitos Humanos do Sapopemba, feitas por policiais
civis e militares, inclusive por um policial civil que já
havia sido denunciado por Valdênia em outras ocasiões.
Este
caso ganhou repercussão nacional e, no dia 12 de agosto,
o Secretário Especial de Direitos Humanos, Ministro
Nilmário Miranda, esteve presente na região
para o início da implantação de coordenações
estaduais de proteção aos defensores de direitos
humanos. São Paulo, o primeiro dos seis estados piloto
a receber a visita da Coordenação Nacional,
foi escolhido em virtude das ameaças feitas a Valdênia,
por denunciar a violência policial na área.
O
Ministro Nilmário Miranda foi informado de um plano
para matar o padre Júlio Lancellotti, que apóia
o trabalho desenvolvido na região do Sapopemba. O padre
interveio num caso de homicídio em que a polícia
teria prendido um 'laranja' para proteger traficantes, que
eram culpados pelo crime. Lancellotti afirmou, durante a reunião
com o Ministro, que o encarregado do crime só não
concluiu a ordem de matá-lo por atropelamento, por
ser de família religiosa e ter tido uma crise de consciência.
No
dia 20 de setembro de 2003, houve uma terceira audiência
pública, com a presença do Procurador Geral
de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Luiz
Marrey, que ouviu algumas das vítimas e designou promotores
de justiça para acompanhar alguns dos casos (após
as denúncias feitas na oitiva e notícias em
jornais e tvs, as vítimas começaram a sofrer
novas ameaças). Nesse mesmo dia, segundo testemunhas,
um policial civil executou Robson Eloy, mestre de bateria
da Escola de Samba Combinados de Sapopemba, o que demonstra
a crença na impunidade.
Política
de matança
Os
ex-secretários de Segurança do Governo de Mário
Covas, José Afonso da Silva e Marco Petrelluzzi, assinaram
artigo, na "Folha de S. Paulo" de 25/06/2003, deixando
claro que não concordam e nada têm a ver com
a atual política de segurança do governador
Geraldo Alckmin. E sugeriram que nem Covas concordaria. Eis
um trecho: "Mas tudo isso de nada teria valido (as conquistas
da política de segurança pública do governo
de Covas) se, em seu governo, Covas não tivesse sempre
se mantido fiel aos princípios democráticos
e de respeito aos direitos humanos, dos quais jamais abriu
mão, mesmo quando, por essa razão, viesse a
sofrer prejuízos políticos." Para bom entendedor,
o governo de Alckmin não estaria respeitando esses
princípios. Veja agora por que eles estão protestando:
de janeiro a maio de 2003, a Polícia Militar de São
Paulo matou 435 pessoas, média de quase 3 por dia,
e 51% a mais do que no mesmo período do ano passado.
O Ouvidor da Polícia, Fermino Fecchio, que vinha denunciando
esses episódios como fruto de uma "política
de matança", foi recentemente afastado do cargo,
por pressão do Secretário de Segurança,
o promotor Saulo de Castro Abreu Filho. Tim Cahill, pesquisador
da Anistia Internacional para o Brasil, confirma a denúncia
de Fecchio: "Só existe esse aumento quando há
uma visão política, uma linha do Estado que
autoriza isso", afirmou 3.
Propostas
A
região de Sapopemba, assim como tantas outras da periferia
de São Paulo, sofre com a política de composição
dos quadros das polícias civil e militar. Grande parte
desses quadros é composta por homens em início
de carreira, com pouca experiência e sem uma formação
consistente. Policiais são destacados para a periferia
como medida punitiva, não conseguindo colocação
em novos postos por falta de escolaridade ou falta de apadrinhamento
de algum superior. Por outro lado, a alta rotatividade dos
comandantes e chefes de polícia inviabiliza o desenvolvimento
de um plano permanente de trabalho. Um alto índice
de policiais, principalmente civis, se envolve com os criminosos
locais, fornecendo apoio armado mediante pagamento, fortalecendo
o descrédito da população com relação
ao trabalho da polícia e com o próprio papel
do Estado. A multiplicidade de ações, de legalidade
duvidosa, de vários órgãos da polícia,
inclusive do município de Santo André (2o e
5o DPs), dificulta a identificação dos policiais.
Por outro lado, a falta de fiscalização do policiamento,
principalmente no período noturno, permite que diversos
policiais atuem na região com sinais visíveis
de estarem sob o efeito de drogas, segundo relato de moradores.
O
atual Comandante da Polícia Militar na região
e o atual delegado responsável pela 8a Seccional se
dizem preocupados com a situação. Mas não
será possível combater a atuação
criminosa da polícia na região, enquanto não
forem tomadas medidas que transformem radicalmente a relação
das polícias com a comunidade.
Do
ponto de vista das organizações sociais 4
da região que elaboraram relatório sobre a situação
local, é necessário:
1.
que haja maior diálogo entre a polícia civil
e a polícia militar;
2. que as polícias mantenham diálogo com o Conselho
Tutelar, para estabelecer uma relação de trabalho;
3. que a Corregedoria realize palestras para a população,
informando sobre sua atuação;
4. que haja mudanças nos critérios para a formação
de quadro de pessoal para as equipes de polícias que
trabalham em regiões periféricas;
5. que sejam feitos a identificação e o afastamento
dos policiais usuários de drogas para tratamento;
6. que seja feita a qualificação dos profissionais
que trabalham na região;
7. que sejam afastados das ruas os policiais que estiverem
sob investigação;
8. que haja a implantação de Postos da Polícia
Comunitária em toda a região de Sapopemba;
9. que as polícias se disponham a estabelecer um diálogo
com as organizações sociais da área para
o desenvolvimento de um trabalho conjunto.
Estas são medidas que poderiam contribuir para a mudança
dessa situação de arbitrariedade e impunidade
da ação policial. Mas, além disso, são
necessárias políticas públicas de inclusão
social que estabeleçam uma presença efetiva
do Estado na região. Para isso, a comunidade organizada
tem promovido diversas audiências públicas com
todas as secretarias municipais para cobrar ações
efetivas da Prefeitura de São Paulo. Depois de todas
estas ações que buscam dar visibilidade a essa
situação de abandono social (oitivas coletivas,
ato de desagravo, audiências públicas), a comunidade
espera que todos aqueles representantes do poder público
que participaram dessas atividades, receberam relatórios
e tomaram conhecimento desse triste quadro social dêem
a resposta necessária e tão esperada por uma
parcela da população que sonha com a concretização
de seus direitos econômicos, sociais e políticos,
enfim, de seus direitos humanos.
Fonte
de Pesquisa: relatórios e depoimentos registrados pelo
Centro de Defesa dos Direitos Humanos do Sapopemba
*
Ana Facundes é tradutora e assessora de comunicação
do gabinete da vereadora Flávia Pereira (PT/SP)
2.
Depoimento concedido ao Centro de Defesa dos Direitos Humanos
do Sapopemba
3.
Fonte: artigo de Carlos Azevedo, publicado no boletim eletrônico
da Revista Caros Amigos
4.
Os fatos relatados neste artigo baseiam-se em relatório
apresentado pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos do
Sapopemba, elaborado em conjunto com diversas organizações
sociais da região: Associação União
da Juta, Cantinho da Esperança, CEDECA Mônica
Paião Trevisan, CEDECA Dom Luciano Mendes de Almeida,
Instituto Daniel Comboni, Movimento de Moradia Leste I, Movimento
Popular de Saúde, NASCE, Paróquia da Reconciliação,
Paróquia Nossa Senhora das Graças, Paróquia
São Sebastião.
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