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Relatórios


Dados do Ministério da Justiça relativos ao Espírito Santo mostram taxas de homicídios dolosos que ultrapassam 50 em cada 100.000 habitantes e de mortes violentas acima de 100 em cada 100.000 habitantes. O crime organizado se apóia na impunidade e na corrupção do sistema de justiça e segurança, como processos inconclusos de vários "crimes de mando" e denúncias da participação de agentes públicos em grupos criminosos. Durante o ano passado, os crimes contra a vida, em especial os homicídios, aumentaram em 11,2% passando de 1.572, em 2001, a 1.771 em 2002. Estas mortes são, em grande parte, execuções sumárias praticadas por grupos de extermínios e por policiais.

O combate ao crime organizado no estado
do Espírito Santo

Tânia Maria Silveira*

No segundo semestre do ano passado teve início uma série de medidas especiais federais de combate ao crime organizado no Estado do Espírito Santo, o que foi feito após constatação de que o nível de degeneração das instituições públicas estaduais ultrapassou os limites suportáveis pela sociedade. A corrosão deste Estado se deu através da atuação de pessoas e de grupos que, de maneira sistemática, nas últimas duas décadas, utilizam-se de meios condenáveis para viabilizar interesses particulares, legitimando, com isso, práticas e organizações criminosas.

Um ano de ações ostensivas

A motivação política

As ações governamentais de combate ao crime organizado no Espírito Santo se justificaram nos problemas de violência e impunidade, sejam os índices de criminalidade crescentes, equiparados aos de guerra civil 1, sejam os indicadores de corrupção do sistema de justiça e segurança, como processos inconclusos de vários "crimes de mando" e denúncias da participação de agentes públicos em grupos criminosos organizados 2.

Estes problemas foram explicitados pelas organizações da sociedade civil cujas precursoras foram entidades de defesa dos direitos humanos que, ao longo de duas décadas, enfrentaram criminosos de maneira incansável, apesar das ameaças e dos atentados contra vários militantes, garantindo, com isso, a mobilização social 3. Vale reafirmar que a sociedade civil organizada soube articular-se tanto entre si, quanto com os órgãos competentes, o que viabilizou ações no âmbito nacional, com repercussões internacionais. Algumas iniciativas determinaram o avanço do processo: a Campanha contra a Impunidade lançada pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos - MNDH, em 1993, que apresentou o problema à sociedade e ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CDDPH - Ministério da Justiça; a criação do Fórum Permanente contra a Violência e a Impunidade - Reage Espírito Santo, em 1999, que congrega nesta luta mais de 50 entidades da sociedade capixaba; o trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI, da Câmara Federal, sobre o narcotráfico e o crime organizado, em 1999, que identificou as máfias capixabas; o pedido de intervenção federal no Espírito Santo apresentado pela Ordem dos Advogados - OAB, em 2002, que propalou a gravidade dos problemas institucionais desde Estado; e, finalmente, a criação, pelo Governo Federal, da Missão Especial de Combate ao Crime Organizado, em 2002, que deu início às ações repressivas.

A decisão do ex-ministro da Justiça Paulo de Tarso Ribeiro de constituir a Missão Especial de Combate ao Crime Organizado no Espírito Santo, em julho de 2002, foi a alternativa encontrada após a crise política gerada pela decisão de Geraldo Brindeiro, ex-Procurador Geral da República, de arquivar o pedido de intervenção federal no Estado do Espírito Santo apresentado pela OAB, em abril/2002, e aprovado pelo CDDPH, em junho/2002. Tal arquivamento motivou a renúncia de Miguel Reale Júnior, o então Ministro da Justiça, a mobilização estadual, nacional e internacional das organizações sociais, de lideranças políticas, inclusive, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, e, conseqüentemente, a criação da Missão Especial.

A Missão Especial de Combate ao Crime Organizado

Protagonista das ações ostensivas federais contra a chamada máfia capixaba, a Missão Especial foi constituída num contexto turbulento, no qual incidiam também os interesses eleitorais de 2002. Esta foi criada em julho e seus 192 integrantes - pessoas de vários órgãos federais - deveriam produzir os resultados esperados em 90 dias de atuação, prazo este prorrogado devido ao volume de trabalho e aos insuficientes recursos disponibilizados.

Em um ano, a Missão enfrentou muitas dificuldades, dentre elas computa-se até mesmo a contra-atuação por alguns de seus integrantes. Dois fatos repercutidos nos jornais locais 4 ilustram esta dificuldade. O primeiro, a existência de agente vinculado à organização criminosa, foi identificado em julho/2002, quando o inspetor João Adilson Scalfoni, então Superintendente da Polícia Rodoviária Federal, órgão integrante da Missão Especial, foi exonerado do cargo por ter sido filiado a Scuderie Detetive Le Cocq. O segundo fato é a execução do primeiro prisioneiro da Missão, Manoel Correia da Silva Filho, réu-colaborador, testemunha contra o coronel da Polícia Militar Walter Gomes Ferreira, que é considerado o chefe do braço armado do crime organizado. O prisioneiro estava na carceragem da Polícia Federal desde agosto/2002 e foi transferido para o presídio Monte Líbano, sem justificativa plausível, em novembro/2002, onde foi executado. O fato gerou a exoneração do delegado federal Tito Caetano, então coordenador da Missão.

Em março/2003, quando o combate às organizações criminosas adquiria dimensões significativas, foi assassinado o juiz da Vara de Execuções Penais, o aguerrido integrante da Missão Especial, Alexandre Martins de Castro Filho. A morte do magistrado apontou a evolução da ousadia dos criminosos e o estabelecimento de um novo patamar de confronto, o que passou a exigir estratégias mais complexas de atuação. Além disso, vários integrantes e colaboradores da Missão têm tido seus telefones clonados ou grampeados, recebido ameaças de morte e/ou têm sido perseguidos.

Apesar das dificuldades, a Missão Especial vem produzindo importantes resultados 5 no combate aos crimes de competência federal, dentre os quais se destacam: as mega-operações para apreensão de documentos e computadores em casas e escritórios de empresários investigados e em prefeituras municipais; as prisões de algumas "pessoas-chaves" da estrutura do crime; e o bloqueio de bens de algumas autoridades. Destas ações vale citar:

- Considerado "o braço armado" do crime organizado, em dezembro/2002, o coronel da reserva da Polícia Militar Walter Gomes Ferreira foi transferido para a Casa de Prisão Especial do Rio Branco, um presídio de segurança máxima situado no Acre. A determinação foi dada pelos juízes da Vara de Execuções Penais do Estado, Alexandre Martins de Castro Filho, Rubens José da Cruz e Carlos Eduardo Lemos, atendendo ao requerimento dos promotores do Grupo de Repressão ao Crime Organizado (GRCO) do Ministério Público Estadual (MPE), que alegaram a necessidade de transferência porque o coronel Ferreira, mesmo estando detido no Quartel da Polícia Militar, continuaria comandando homicídios através de conversas pelo telefone celular.

- O empresário Carlos Guilherme Lima ficou detido no presídio de segurança máxima, Mosesp II, de dezembro/2002 a setembro/2003. O empresário constava na lista dos 51 indiciados pela Polícia Federal no Espírito Santo, divulgada pela Revista IstoÉ, em novembro. Considerado o "gerente financeiro do crime organizado", Guilherme Lima foi acusado pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, ocultação de bens, fraude em licitações e crimes contra a ordem pública. Em dezembro, ele foi flagrado numa negociata para garantir, na Assembléia Legislativa, a autorização para a privatização do Banestes, banco este que foi presidido por ele. Fitas gravadas pela Polícia revelaram o esquema que envolvia deputados e o ex-secretário estadual de transportes, Jorge Hélio Leal. Na gravação 6, o ex-deputado Gumercino Vinand reclama por não haver recebido integralmente os R$80.000,00 combinados e Guilherme Lima fala em 16 cheques, o que pode se referir a 16 deputados.

- O ex-presidente da Assembléia Legislativa, José Carlos Gratz, considerado o "braço político" do crime, foi preso em fevereiro/2003. A prisão ocorreu devido à interferência dele no processo eleitoral da mesa diretora da Assembléia Legislativa e para prevenir prováveis interferências nas investigações da Missão Especial. Em junho/2003, o Superior Tribunal de Justiça concedeu hábeas corpus ao prisioneiro. Contudo, ele teve os bens bloqueados pela justiça. Em 12 de setembro, ele voltou à prisão sob acusação de desvio de recursos públicos; todavia, outro hábeas corpus lhe foi concedido em 21 de setembro e Gratz responde aos processos em liberdade.

- A Missão Especial efetuou também outras prisões. Um exemplo é a do empresário e ex-policial militar Sebastião Pagotto, efetuada em março/2003, sob acusação de ter sido o mandante do assassinato do advogado Marcelo Denadai, ocorrido em abril/2002.

- Em maio/2003, a Missão pediu o seqüestro dos bens do ex-governador José Ignácio Ferreira, de sua mulher, Maria Helena Ruy Ferreira, ex-secretária de Estado da Secretaria de Trabalho e Ação Social, do cunhado dele e ex-secretário de Governo, Gentil Antônio Ruy, e do ex-coordenador da campanha eleitoral/1998, Raimundo Benedito de Souza Filho. A indisponibilização dos bens visa cobrir o rombo de R$ 19 milhões na Coopetfes. Em junho, outra denúncia foi apresentada contra Ignácio. Desta vez, pela sonegação fiscal de R$ 782 mil dos rendimentos de 1998.

- Também merece destaque a determinação do Tribunal de Justiça que afastou do exercício de suas funções os deputados estaduais reeleitos Sérgio Borges, José Tasso, Gilson Amaro, Marcos Gazzani, Fátima Couzi e Luís Carlos Moreira, em fevereiro/2003, a pedido dos procuradores da Missão, devido à acusação de recebimento de propina - R$ 30.000,00 cada um. Todavia, eles foram reintegrados em abril/2003.

Resguardada a importância exemplar das detenções, o principal trabalho feito pela Missão Especial foi o mapeamento do crime organizado no Estado. Segundo o Procurador José Roberto Santoro, que chefiou a equipe do Ministério Público Federal, estão sendo elaboradas peças de acusação, denúncias e ações, sendo algumas já encaminhadas à Justiça.

Por outro lado, a Missão Especial se ateve aos crimes de responsabilidade federal. Durante o ano passado, os crimes contra a vida, em especial os homicídios, aumentaram em 11,2% passando de 1.572, em 2001, a 1.771 em 2002. Estas mortes são, em grande parte, execuções sumárias praticadas por grupos de extermínios e por policiais.

O Gabinete de Gestão Integrada de Segurança Pública

As medidas especiais de combate ao crime organizado neste Estado visam restabelecer a ordem pública, eliminando os vínculos de conivência existentes entre o Poder Público e o crime organizado e reduzindo os índices de criminalidade violenta. Considerando o caráter perene destas medidas, no dia 08/08/2003, o Ministério da Justiça e o Governo do Estado firmaram o protocolo de intenções para a instalação do Gabinete de Gestão Integrada - GGI. Sob a coordenação do Subprocurador Geral da República, José Roberto Santoro, sendo Rodney Miranda, Secretário Estadual de Segurança Pública, o articulador dos membros integrantes, o GGI é formado por órgãos federais e estaduais de segurança pública - Ministério Público Federal, Departamento de Polícia Federal, Departamento de Polícia Rodoviária Federal, Ministério Público Estadual, Secretaria de Estado de Segurança Pública e Secretaria de Estado de Justiça, e funcionará até 31/12/2006. O GGI conta com o Fundo Nacional de Segurança Pública como fonte de recursos operacionais e políticos.

Crime organizado: O enigma do século ?

Após um ano de intenso trabalho, não é confortador identificar as conexões locais, inter-estaduais, nacional e internacionais dos grupos criminosos organizados, sem que haja, em contraposição, capacidade efetiva do aparato estatal para controlá-los e combatê-los. As ações realizadas permitem a explicitação dos mecanismos da criminalidade e da impunidade e confirmam que elas favorecem não somente o aumento da violência, mas também das desigualdades sócio-econômicas.

Os grupos criminosos controlam bilhões de dólares no mundo e, com seus ativos, corroem os governos e comprometem as tentativas de desenvolvimento dos países em transição democrática, deteriorando tanto os sistemas político-financeiros quanto o tecido social. Seus mecanismos de ação são diversos. Em geral, a corrupção e as atividades criminosas inibem os investidores, reduzindo, assim, o crescimento econômico. Por conseqüência, reduz também as receitas do Estado. Por mecanismos mais específicos temos a infiltração dos grupos criminosos nas estruturas de Estado, seja financiando campanhas eleitorais, seja fraudando concursos ou cooptando agentes públicos. Ocupando cargos estratégicos de decisão, eles visam coibir o Estado no seu papel repressor e apossar-se do erário. Para isto, os órgãos do sistema de justiça e segurança são prioritários. No Espírito Santo, eles controlaram também a Assembléia Legislativa chegando a ter 29 dos 30 deputados. Um outro mecanismo é a substituição do Estado no fornecimento de políticas públicas. Em muitos lugares, as organizações criminosas disponibilizam trabalho, proteção e até mesmo assistência social.

Por estas razões, é consensual entre os vários atores governamentais e não-governamentais envolvidos nesta empreitada que o combate ao crime organizado no Estado do Espírito Santo está apenas começando.


*Tânia Maria Silveira é militante dos direitos humanos, estudante de serviço social e integrante da equipe de mandato da deputada federal Iriny Lopes.

1. Dados do Ministério da Justiça relativos ao Espírito Santo mostram taxas de homicídios dolosos que ultrapassam 50/100.000 habitantes e de mortes violentas acima de 100/100.000 habitantes nos últimos anos.

2. Caso exemplar é a Scuderie Detetive Le Cocq, uma associação paramilitar, pessoa jurídica de direito privado, legalmente constituída, com endereço identificado, descrita pela CPI do Narcotráfico da Câmara Federal como "[Essa] organização criminosa, ainda atuante no Estado, compreende a ação de grupos civis e militares, contra a Ordem Constitucional e ESTADO DEMOCRÁTICO de DIREITO, afrontando-se o disposto em preceito Constitucional (Artigo 5, inciso XLIV da Carta Magna), com violação caracterizada, aos Direitos e Garantias Fundamentais".

3. No relatório/2002 da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos apresentamos uma breve retrospectiva dos fatos e seus protagonistas.

4. Jornal A Gazeta, "Um Ano de Missão Especial", 13 de julho de 2003

5. Idem

6. Gazeta on line; 12/12/2002