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Relatórios


A região metropolitana do Rio de Janeiro tem uma população jovem - entre 15 e 24 anos - da ordem de 1,8 milhões. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) -1999, essa categoria social é marcada pela diversidade: 684 mil (38%) não completaram o ensino fundamental. Por outro lado, 216 mil (12%) têm 12 anos ou mais de estudo; quer dizer, conseguiram ingressar na universidade. No que concerne ao mercado de trabalho, 718 mil (40,1%) estão trabalhando, enquanto 226 mil (12,6%) estão desempregados. Caso queiramos valorizar mais a diversidade, podemos considerar alguns dados educacionais e de trabalho levantados em 53 favelas da cidade do Rio de Janeiro 1: nessas comunidades, 62% dos jovens não completaram o ensino fundamental; apenas 1% tem 12 anos ou mais de estudo; 51% estão trabalhando ou procurando emprego e a taxa de desemprego é de 18,6%. Dados recentes apontam que a taxa de desemprego já teria atingido 26% desse grupo etário e social.

Sobre (a) vivência dos moradores
das favelas cariocas

Jailson de Souza e Silva*

"O interrogatório é muito fácil de fazer:
pega o favelado e dá porrada até doer.
"O interrogatório é muito fácil de acabar":
Pega o bandido e dá porrada até matar.
Frases cantadas pelo BOPE - Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro - em seus exercícios diários. 3

A vida cotidiana nas favelas do Rio de Janeiro é um mundo desconhecido para a grande maioria dos cariocas. Fascínio, preconceito e medo se entrelaçam nas falas dos moradores dos bairros formais ao tratarem dos habitantes das favelas e de seus espaços. E, em particular no momento atual, estes parecem mais incompreensíveis e distantes do que os iraquianos, afegãos e palestinos assassinados pela sanha vingadora dos que se arvoram em donos do mundo e seus aliados.

Isso porque as interpretações mais comuns sobre as favelas, a violência e o tráfico de drogas são caracterizadas por pressupostos sociocêntricos, que dificultam a compreensão e o encontro de alternativas adequadas para os problemas reais da vida nos espaços populares. O sociocentrismo se materializa quando, a partir dos padrões de vida, valores e crenças de um determinado grupo social, se estabelece um conjunto de comparações com outros, colocados, em geral, em condições de inferioridade.

Os discursos estabelecidos em relação aos espaços populares, dentre outros, seguem esse padrão. Por isso, a valorização das ausências é eixo dos olhares dirigidos àquelas áreas urbanas; neste discurso, a comunidade popular é definida, paradoxalmente, pelo que não teria: "Favela é aquele lugar que não tem acesso a serviços básicos, asfalto, escolas, postos de saúde, creches, educação, não tem regras, não tem leis, não tem cidadania!", diz o senso comum.

A afirmação desse "discurso da ausência" em relação aos espaços populares revela uma representação, muito comum, de que a favela não seria constituinte da cidade. Existe o bairro, local típico para as vivências legais e formais e existe a favela como a não-cidade, como espaço onde não ocorreria o efetivo exercício da cidadania. A partir desse pressuposto, é elaborada uma nova série de discursos.

O principal deles é o "criminalizante", segundo o qual todo morador da favela é um criminoso em potencial. Assim, tornou-se comum inferir que qualquer jovem das favelas estaria em atividades criminosas se não estivesse em um movimento de cultura, de educação ou atividades similares. Como se não buscassem, através de suas próprias iniciativas, outras formas de inserir-se no mercado de trabalho e como se a única rede social da favela fosse a constituída pelo tráfico de drogas.

Ora, as crianças, os adolescentes e os jovens das favelas têm um contato maior com o tráfico de drogas que os moradores dos bairros formais, em geral. Mas quando se depreende que, em função disso, eles são potencialmente criminosos o que se revela é uma visão economicista, reducionista e preconceituosa em relação a eles. Basta considerar o universo total da população das comunidades populares e o ínfimo percentual de participação nas atividades criminosas para se reconhecer o limite desse juízo.

Uma segunda noção decorrente do "discurso da ausência" é a paternalista, existente, inclusive, em vários setores progressistas. Nela, considera-se que o morador dos espaços populares seria uma vítima passiva de um sistema injusto e, diante disso, algumas estratégias ilegais afirmadas por indivíduos determinados seriam em tese corretas: o não pagamento de taxas e impostos, a ocupação de espaços públicos, a receptação de objetos roubados.

Não restaria, portanto, ao morador das favelas, levando-se em conta esses juízos, mais do que se conformar com a sua condição de potencialmente criminoso ou vítima passiva da sociedade. Na verdade, esses raciocínios sustentam, muitas vezes, a produção de formulações e intervenções públicas limitadas e sem consistência. Um exemplo é o lugar-comum chamado "resgate da cidadania". Na formulação está implícita a idéia que a pessoa assim identificada já foi cidadã e não é mais ou ainda não o é. O raciocínio, entretanto, deveria ser invertido: exatamente pelo fato de ser cidadã é que ela deve ter os seus direitos preservados e as suas obrigações coletivas exigidas. A partir do momento que ela nasce e ingressa no sistema social deve ser reconhecida em seus direitos à saúde, segurança, educação, ao trabalho, enfim, humanos. A cidadania é uma condição a priori e não a posteriori.

A consciência de uma cidadania comum a todos, entretanto, ainda é uma utopia na cidade do Rio de Janeiro. Com efeito, o trágico assassinato do jornalista Tim Lopes por um grupo criminoso armado em uma favela da cidade, há pouco menos de dois anos, possibilitou que os moradores dos espaços formais percebessem com mais intensidade um fato ignorado há vários anos: há uma guerra silenciosa na cidade, e muitos inocentes são por ela atingidos. O assassinato contribuiu, todavia, para reforçar ainda mais os estereótipos sobre as favelas, assim como, dentro das devidas dimensões, o atentado às torres gêmeas reforçou a política militarista e autoritária dos EUA no mundo.

Nos dois fatos, a crueldade do ato foi ressaltada; a prisão do mandante do crime, a qualquer custo, foi exigida e o uso da força, de qualquer forma, tornou-se aceitável, desde que ficasse restrita aos cidadãos do Terceiro Mundo ou, no caso do Rio de Janeiro, aos moradores das favelas.

Assim, durante o ano de 2003, fomos obrigados a assistir um patético ex-governador, ardororoso "cristão" e secretário estadual de Segurança se regozijar ao anunciar que em "12 dias foram mortos mais de 100 bandidos". Nessa macabra estatística, estavam incluídos quatro jovens trabalhadores assassinados por policiais no Morro do Borel, crime que motivou uma caminhada silenciosa que reuniu mais de mil moradores da comunidade nas ruas da Tijuca.

Violências como a ocorrida no Borel demonstram que os versos cantados por policiais militares, como o citado no epígrafe, não são licenças literárias, mas se materializam em atos reais e cotidianos. A título de exemplo, a instalação de um batalhão da Polícia Militar na favela da Maré, a maior da cidade, transformou a vida dos moradores locais em um verdadeiro inferno, pior ainda do que ter de suportar o conflito entre os três grupos criminosos rivais nela presentes. Agora, são quatro grupos armados, sendo que, no que concerne à preservação da vida dos moradores, não há nenhuma diferença entre eles. Assim, desde a instalação do Batalhão, com cerca de 600 soldados, o número de mortes de inocentes aumentou, assim como o grau de desrespeito aos moradores, por parte dos policiais. Afinal, para estes, todos os moradores são vistos como suspeitos ou, no mínimo, como simpatizantes de bandidos.

A situação se agrava quando considera-se o tratamento recebido pelos jovens pobres. A região metropolitana do Rio de Janeiro tem uma população jovem - entre 15 e 24 anos - da ordem de 1,8 milhões. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) -1999, essa categoria social é marcada pela diversidade: 684 mil (38%) não completaram o ensino fundamental. Por outro lado, 216 mil (12%) têm 12 anos ou mais de estudo; quer dizer, conseguiram ingressar na universidade. No que concerne ao mercado de trabalho, 718 mil (40,1%) estão trabalhando, enquanto 226 mil (12,6%) estão desempregados. Caso queiramos valorizar mais a diversidade, podemos considerar alguns dados educacionais e de trabalho levantados em 53 favelas da cidade do Rio de Janeiro : nessas comunidades, 62% dos jovens não completaram o ensino fundamental; apenas 1% tem 12 anos ou mais de estudo; 51% estão trabalhando ou procurando emprego e a taxa de desemprego é de 18,6%. Dados recentes apontam que a taxa de desemprego já teria atingido 26% desse grupo etário e social.

O drama do desemprego é acompanhado do dramático aumento da violência letal. De forma crescente, jovens estão morrendo e jovens estão matando, em um verdadeiro fratricídio. Associado a este fenômeno, temos também o aumento das mortes provocadas pela polícia. Justificados como defesa diante da agressão criminosa, os "autos de resistência", na verdade, escamoteiam que a morte de jovens pobres, qualificados como infratores, tornou-se uma estratégia sistematicamente aplicada e não fruto de um eventual enfrentamento.

No que diz respeito à imprensa, ela perdeu os canais para se relacionar com os moradores das favelas e só consegue nelas entrar atrás do carro da polícia. Não é casual então que o cotidiano das comunidades, que é muito mais que a produção da violência, seja, em geral, ignorado na grande imprensa. O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré - CEASM inaugurou, em 10 de maio de 2003, a Casa da Cultura da Maré. Do evento participaram centenas de moradores, grupos culturais locais, grupos culturais de outras comunidades e outra redes sociais. Um evento belo e vivo, que não foi coberto por órgão algum da grande imprensa. E o CEASM é uma organização que tem uma boa visibilidade. Imagine-se o que ocorre em outras comunidades, sem a mesma expressão.

Na verdade, da Maré, do Borel e de tantas outras favelas do Rio de Janeiro só se busca falar, no máximo, das dores e dos temores. Outros elementos da vida, intensa e rica, esta não vale a pena. Lamentável que a morte do negro, trabalhador e sensível Tim Lopes tenha sido mais um pretexto para este permanente atentado aos pobres de uma cidade famosa pela alegria e beleza de seu povo.

A morte de um jornalista e de tantos moradores das favelas cariocas mostram a urgência de sairmos do terreno do discurso e encaminharmos ações vigorosas no campo das políticas públicas voltadas aos interesses dos grupos sociais populares, bandeira maior de uma sociedade democrática. E isso é possível. Resta saber se os aterrorizados integrantes da sociedade formal estão dispostos a defendê-las com o vigor que defendem a repressão ao tráfico a qualquer custo e vidas - dos pobres. São elas: a priorização de iniciativas de preservação da vida, com o vigoroso combate ao tráfico de armas e ao seu porte - o que implica na aplicação de penas severas aos que traficam e na intensificação das apreensões; a mudança da legislação que trata do uso das drogas ilegais, aproximando-a da aplicada ao álcool - que pune os atos anti-sociais que ele pode estimular e não o uso; uma polícia bem treinada e bem paga, sob controle social e com efetiva punição à corrupção e ao abuso de autoridade; uma legislação penal que trate da mesma forma os desiguais social e economicamente; o aumento do investimento na prevenção do uso de drogas e no tratamento dos usuários dependentes, tratando-os como doentes e não como criminosos; o aumento do investimento social nos espaços populares; a punição das diversas formas de discriminação ao morador da favela e aos negros.

Essas iniciativas, no entanto, ameaçam práticas sociais comuns no Rio de Janeiro: o tradicional suborno ao policial e ao fiscal desonestos; a defesa de tratamento privilegiado para os atos infracionais da minoria que possui nível superior de escolaridade; a superação de velhos preconceitos e conceitos em relação às drogas e aos usuários e a possibilidade de que todos os que cometem crimes sejam punidos, e não apenas os pobres.

Todas as ações apontadas implicam investimentos vigorosos e mudanças de cultura por parte da população e das instituições, privadas e públicas. Ações como as apontadas são fundamentais no tratamento do fenômeno da violência no Rio de Janeiro. Resta saber se os setores médios e dominantes da cidade estão dispostos à mudança de postura. Caso contrário, as expressões de indignação e emoção se revelarão discriminatórias e egocêntricas. E se perderá, mais uma vez, a chance de que se ampliem as possibilidades do fundamental encontro, fraterno e baseado na justiça, entre os moradores dos espaços formais do Rio de Janeiro e seus vizinhos, tão próximos e tão distantes, moradores das favelas do Rio do Janeiro.

* Professor da Universidade Federal Fluminense, diretor do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré - CEASM - e coordenador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

1. Pesquisa sócio-econômica em comunidades de baixa renda - 1999 - SCIENCE/SMTb/Rio de Janeiro.

3. Fonte: Rádio CBN - 23/09/03, e jornal O Globo, de 24/09/03