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Relatórios


A situação da educação nas comunidades quilombolas de Pernambuco se insere na problemática educacional do país com um agravante: se o Ministério da Educação afirma que o acesso à educação de crianças de 7 a 14 anos na sociedade brasileira se aproxima dos 97%, não se tem um dado preciso sobre o acesso das crianças quilombolas. Ainda é comum observar crianças e adolescentes fora da escola e pessoas adultas analfabetas. As escolas funcionam em precárias condições e não têm uma proposta que leve em consideração o pertencimento étnico e a cultura a partir do território.


Educação nas Comunidades Quilombolas
de Pernambuco

Delma Josefa da Silva*


Negros e brancos e os indicadores de desenvolvimento

O estado de Pernambuco tem uma população1 de 7.918.344 pessoas, sendo 6.058.249 residentes em área urbana e 1.800.095 em área rural. Estima-se que 67% da população geral seja de origem afro-descendente 2. Em que pese os afro-descendentes serem maioria populacional no estado, o indicador de desenvolvimento humano (IDH 3) realizado pelo Programa das Nações Unidas - PNUD -, divulgado em outubro de 2003, informa que continua a existir um fosso entre brancos e negros no estado, conforme se apresenta o quadro abaixo.

Diferenças entre negros e brancos em Pernambuco
Indicador Negros Brancos
IDH 0,671 0,749
Expectativa de vida 66,7 66,5
Renda per capta 127,20 264,63
Média de anos de estudo 4,34 6,05
Analfabetismo na faixa 7-14 anos 24,72 17,75
Analfabetismo na faixa dos 25 anos ou mais 32,63 22,34
Fonte:PNUD 2003 4

Pelo exposto anteriormente, evidencia-se que a herança econômica e social do escravismo continua a marcar a vida dos negros, mesmo tendo transcorrido mais de 115 anos de abolição. Neste quadro não se apresenta a desigualdade sofrida pelas mulheres negras, nem pelos quilombolas. Porém, é sabido que na sociedade brasileira eles sofrem múltiplas discriminações e para combatê-las organizam-se local e nacionalmente, mas a organização e a resistência ainda não conseguiram que a maior parte dos direitos seja assegurada, como o direito à educação e à terra como condição para a continuação da existência das futuras gerações.

Na cultura brasileira, a resistência à subordinação relaciona-se à busca de liberdade de expressão, do direito à vida, à saúde, à educação, enfim, à justiça política e social. A resistência dos afro-descendentes ao regime escravo possibilitou a construção dos Quilombos e, entre eles, Palmares, que resistiu por mais de um século e construiu uma referência de organização política e convivência social.

Os quilombolas de Pernambuco e a educação

Existem quantificadas hoje, no estado de Pernambuco, mais de 40 comunidades quilombolas. No II Encontro das Comunidades Quilombolas de Pernambuco, realizado em Salgueiro, em maio de 2003, verificou-se que uma das dificuldades que se apresenta é um diagnóstico sobre a situação sócio-econômica-político-cultural em que vivem essas comunidades e suas principais necessidades no campo das políticas públicas.

A situação da educação nas comunidades quilombolas de Pernambuco se insere na problemática educacional do país, com um agravante: se o Ministério da Educação afirma que o acesso à educação de crianças de 7 a 14 anos na sociedade brasileira se aproxima dos 97% 5, sobre o acesso das crianças quilombolas não se tem um dado preciso, já que nas comunidades o acesso ainda não está ampliado. Ainda é comum observar crianças e adolescentes fora da escola e pessoas adultas analfabetas. Neste sentido, o direito à educação, no que tange aos quilombolas, ainda é uma aspiração. As escolas (quando existem) funcionam em precárias condições e não têm uma proposta que leve em consideração o pertencimento étnico e a cultura a partir do território.

Numa perspectiva de reverter esse quadro, seria fundamental: assegurar o acesso e permanência do aluno quilombola na escola; valorizar e fazer emergir a cultura das comunidades de forma que se construa na sociedade uma mudança de postura para a construção de eqüidade para os quilombolas; formular e implementar políticas públicas educacionais a partir dos interesses e das necessidades dos quilombolas, numa perspectiva de, pelo menos, se aproximar do que define o Art. 26 6 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei 9394/96. É essencial reconhecer que a valorização étnica no âmbito educacional proporciona o fortalecimento das comunidades enquanto sujeitos de seu desenvolvimento. De fato, isso contemplaria a diversidade cultural existente no país.

Neste debate é imprescindível considerar que não se desenvolve educação multicultural dissociada das lutas implementadas pelos próprios sujeitos envolvidos e de seu fundamental papel na definição dos rumos que se propõem tomar no que se refere à educação e cultura dos quilombolas no Brasil. Isto significa "tomar conhecimento, observar, analisar um jeito peculiar de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver e lutar pela dignidade própria, bem como pela de todos os descendentes de africanos, mais ainda, de todos que a sociedade marginaliza. Significa também conhecer e compreender os trabalhos e a criatividade dos africanos e de seus descendentes no Brasil, e de situar tais produções na construção da nação brasileira", como bem ressalta Petronilha Silva.

A proposta educacional em Conceição das Crioulas

Se queres saber quem sou
Se queres que te ensine o que sei
Deixa um pouco de ser o que tu és
E esquece o que sabes 7

Tierno Bokar

A educação nas comunidades quilombolas de Pernambuco passa por um quadro geral adverso, mas existe uma experiência em desenvolvimento em Conceição das Crioulas indicando que mudanças são possíveis. Para que esse processo se desenvolva é fundamental que a comunidade se coloque como condutora do seu desenvolvimento e acione os diversos meios competentes para que sejam assegurados os seus direitos.

A experiência que vem sendo desenvolvida em Conceição das Crioulas - comunidade com quase 4 mil habitantes - iniciou-se em 1996 com uma pesquisa8 em oito municípios do estado, incluindo Salgueiro, cidade onde está localizada a comunidade. O processo para definir uma educação que leve em consideração a realidade quilombola, a partir do pertencimento étnico, vem sendo construído há mais de uma década pelas próprias professoras de Conceição.

Em 2003, a Associação Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC), no seu planejamento institucional, criou cinco comissões temáticas9 para dinamizar o seu funcionamento. Uma das comissões criadas foi a de educação, que, ao longo do ano, realizou encontros mensais para discutir fundamentos teórico-metodológicos que possibilitassem a elaboração de uma proposta curricular diferenciada. A Lei 10.639/03, sancionada pelo presidente da República em 9 de janeiro de 2003 e que altera a 9.394/96, instituiu no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade a temática História e Cultura Afro-Brasileira.

A discussão sobre a lei é um suporte que auxilia a fundamentação legal para a construção da proposta específica de educação para as comunidades quilombolas.

O investimento da Comunidade de Conceição para avançar no campo educacional tem sido uma prioridade e isso faz com que no âmbito da Comissão Nacional das Comunidades Quilombolas (CONAQ) Conceição seja uma referência em todos os níveis educacionais. A comunidade possui uma infra-estrutura organizada, com várias escolas atendendo aos quilombolas, as diretoras são da própria comunidade, e a maioria dos professores também. Em 2003, foram 22 professores (as) ingressando no ensino superior, e alguns já se preparando para fazer cursos de especialização.

Em agosto de 2003, durante a tradicional festa da comunidade, foi realizado, pela primeira vez na história de mais de duzentos anos de Conceição, um evento cultural articulado pelo Centro de Cultura Luiz Freire em parceria com o Grupo Identidades da Cooperativa Gesto, da cidade do Porto, em Portugal. Este mobilizou artistas10 para intercambiar experiências em artes plásticas e teatro, e com o Balé Afro Majê Mole de Olinda que ministrou oficinas de dança e a primeira oficina sobre História Africana 11. Nestas oficinas foi ressaltada a importância da inclusão do ensino da história africana no pensamento escolar brasileiro, "pois as formulações atuais são profundamente danosas para a identidade do Brasil e dos afro-descendentes, como também para a compreensão da democracia e cidadania".

Cultura e educação, como bem diz Forquin 12, são indissociáveis e o resultado das oficinas culturais provocou um enorme impacto, dentro e fora da comunidade.

Superar a reprodução do eurocentrismo é condição fundamental para construir em nossa sociedade o respeito à diversidade. Para pensar e fazer a educação em comunidades quilombolas um requisito é fundamental: saber ouvir e ter sensibilidade para o que emerge enquanto necessidades educacionais de crianças, jovens, anciãos, lideranças, mulheres e homens encarnados nas mais diversas culturas "porque aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas" 13. Um dos desafios que está colocado para nós enquanto sociedade é enxergar o mundo com múltiplos olhares - do que é par e do que é diferente -, e juntos enxergar uma nova possibilidade de existência onde o respeito ao outro seja a base da convivência.

Referências Bibliográficas


BRANDÃO. Carlos Rodrigues. O que é Educação. Ed. Brasiliense. São Paulo. 2001.

CCLF. Educação Trabalho e Pobreza. Centro de Cultura Luiz Freire. Nov. 1996. Olinda.

CUNHA. Henrique Jr. África-Brasil no Pensamento Escolar. Kàwé Pesquisa. Ano I-
nº 1 - jan/dez. 2002.

FORQUIN, Jean Claude. Escola e Cultura.Porto Alegre. Artes Médicas, 1993.

Jornal do Commércio. Caderno Cidades. 26.09.2003. Recife.

Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Brasília. Dezembro de 1996.

MACHADO. Vanda. Ilê Axé. Vivências e Invenção Pedagógica: as crianças do Opô Afonjá. Salvador. 1999.

SILVA. Delma Josefa. Afrodescendência e Educação: a concepção identitária do Alunado. Dissertação Mestrado. Centro de Educação. UFPE. Recife, Maio-2000.

SILVA. Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprendizagem e Ensino das Africanidades Brasileiras. Rio Grande do Sul. 1995.

* Delma Josefa da silva é socióloga e mestre em Educação. Participa do Programa Desenvolvimento Local do Centro de Cultura Luiz Freire

1. Censo IBGE 2000

2. Conceito que inclui negros, pretos, pardos

3. O indicador inclui: escolarização, expectativa de vida e rendimento e quanto mais próximo de 1,0 maior índice de desenvolvimento humano.

4. Dados publicados no Jornal do Commércio. Caderno Cidades. Pág. 4 . Recife, 4/10/2003

5. MEC. 2000

6. Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.

7. In Ilê Axé. Vanda Machado

8. Pesquisa Educação Trabalho e Pobreza em Pernambuco. Centro de Cultura Luiz Freire.Olinda. 1996.

9. As outras quatro comissões são: Patrimônio, Saúde e Meio Ambiente, Geração de renda e comunicação.

10. Mônica Farias e Iva Mariana (estudantes de artes plásticas da Universidade de Belas Artes do Porto)) e Rogério Manjate (escritor e ator moçambicano, ganhador do 11ª Edição do Concurso Guimarães Rosa, Prêmio União Latina da Rádio Francesa Internacional em dezembro de 2002).

11. Oficina ministrada por Henrique Cunha Jr. Professor Titular da UFCE.

12. Jean Claude Forquin. Escola e Cultura.

13. Carlos Rodrigues Brandão in O que é educação.