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Relatórios


Em 2001, para cada 100 brancos morreram assassinados (vítimas de homicídios) 170 negros (soma de pretos e pardos). Se negros e brancos tivessem a mesma taxa de homicídios, 5.647 negros não teriam sido assassinados no Brasil, em um único ano. As taxas de homicídios de "pretos" e "pardos" são estatisticamente diferentes. Os pretos em 2000 tiveram taxa de vitimização por homicídios 24% mais alta do que pardos, indicando que a cor da pele/raça influenciou o risco de ser assassinado e que, quanto mais é escura a pele, maiores são as chances


Segurança e justiça em cores

Jurema Werneck*

A presença negra nas Américas - e no Brasil especificamente - é fruto de extrema violência constituinte do tráfico transatlântico e do sistema da escravidão. O direito de habitar e coabitar cidades e campos tem sido uma conquista paulatina da população negra no Brasil, secundária a intensas disputas no interior da sociedade e das instituições. Assim, são tópicos intrínsecos à segurança pública o combate às desigualdades e a elaboração de sistemas de prevenção e repressão à violência e ao crime cuja eficiência e eficácia estejam ancoradas em princípios de justiça e eqüidade.

O direito à segurança esbarra em graus diferenciados de vulnerabilidade à violência, bem como na iniqüidade que marca as relações sociais no Brasil. Conforme afirmou Sílvia Ramos:

Alguns setores da população são particularmente vulneráveis a violências, ou porque as agressões criminais podem assumir configurações específicas quando dirigidas a eles, ou porque são vítimas de criminalidades com dinâmicas próprias. Isso pode ocorrer quando a vítima é homossexual, negra, adolescente, idosa, ou identificada com quaisquer grupos sociais particularmente frágeis diante do crime ou da polícia.2

Contrariando idéias de Brasil e da população brasileira marcadas pela cordialidade, vivemos num país de extrema violência. Em um trabalho dedicado à análise da violência racial embutida na ação policial,3 Ignácio Cano cita estatística das Nações Unidas de 1997,4 que coloca o Brasil entre os três países com maiores índices de homicídios, entre 36 países relatados, abaixo somente da África do Sul e da Jamaica.
O coeficiente de homicídios do Brasil em 1999 era da ordem de 26,18 homicídios por 100 mil habitantes. No entanto, além do Distrito Federal (33,40), nove estados de diferentes regiões estão acima dessa média: Roraima (57,69), Pernambuco (55,53), Rio de Janeiro (52,54), Espírito Santo (51,87), São Paulo (44,00), Amapá (43,66), Mato Grosso (34,60), Distrito Federal (33,40), Rondônia (33,31) e Mato Grosso do Sul (28,18).

Raras são as pesquisas que indagam acerca dos diferenciais raciais embutidos nesses indicadores. De acordo com Ignácio Cano,5 a discriminação racial pode ocorrer em diferentes momentos da interação entre os indivíduos e o sistema de segurança pública, quais sejam:
· abordagem policial aos cidadãos - a polícia pode abordar mais membros de certos grupos raciais;
· decisão policial de registrar uma queixa - membros de grupos vulneráveis têm maior chance de serem levados à delegacia para registro do que outros, enquanto membros de grupos racialmente dominantes podem ser somente repreendidos ou induzidos a pagar suborno;
· decisão de abrir um inquérito - crimes de grupos racialmente discriminados contra grupos racialmente dominantes podem tornar-se inquérito mais vezes do que o contrário;
· decisão de processar - comumente a decisão de abrir ou não processo contra certos indivíduos é influenciada pela raça do acusado;
· condição de espera pelo julgamento - membros de grupos raciais vulneráveis podem ser mais freqüentemente impedidos de depor ou têm maior chance de ter negado o direito de aguardar o julgamento em liberdade;
· sentenciamento - os juízes podem tomar decisões influenciados por seus preconceitos raciais, com conseqüente maior número de condenações ou penas mais duras para integrantes de grupos raciais discriminados;
· tratamento na prisão - condenados que pertençam a grupos racialmente discriminados podem ter pior tratamento nas prisões do que membros de grupos dominantes condenados pelo mesmo tipo de crime;
· benefícios prisionais ou redução de sentença - pode ser mais difícil para integrantes de grupos racialmente discriminados obter esses benefícios.

Acrescente-se a isso um cotidiano de violações de direitos humanos de habitantes de comunidades negras e de negros em todas as regiões. As violações são exemplificadas pelas incursões violentas da polícia nessas comunidades, com invasões de residências e agressões a seus moradores e moradoras, tiroteios sem qualquer cuidado para preservação de vidas de suspeitos ou de inocentes, circulação vigiada pela polícia ou por seguranças particulares em pontos fora da comunidade negra etc.

Pesquisas de opinião feitas pelo Datafolha/Ilanud nos anos de 1995 e 1997 sobre a relação da população com a polícia, segundo grupos raciais, exemplificam esse cenário. Se, por um lado, todas as pessoas entrevistadas tinham medo dos bandidos, uma parcela informava também temer a polícia. Interessante notar que esses medos evoluem de forma inversa, segundo as características raciais fenotípicas. Ou seja, o medo da polícia cresce quanto mais escura for a pele da pessoa entrevistada.

Chama a atenção o crescimento do medo da polícia entre negros - pretos e pardos -, sendo que os de pele mais escura apresentam um temor da polícia maior do que dos bandidos. Para brancos, a polícia - ainda que provoque algum temor - se apresenta numa proporção bem menos ameaçadora do que para afrodescendentes.

Assim, esses dados oferecem pistas para a definição das razões pelas quais a população negra tem maior receio da polícia, segundo dados já demonstrados.

Há dois fatores que podem ser assinalados: um é o diferencial da qualidade da ação policial, traduzida em mortes de pessoas, dentro e fora da favela; outro é o diferencial dessa ação segundo as características raciais da população. No interior das favelas, comunidades essencialmente negras, a polícia tem uma atuação mais letal, matando mais tanto brancos como negros. Por outro lado, negros - representados pelo autor por pretos e pardos - são mortos pela polícia com intensidade bem maior do que brancos, também no interior dessas comunidades.

A face perversa da desigualdade racial pode ser verificada, de outro modo, nos dados coletados por Gláucio Ary Dillon Soares (Iuperj/Cesec). Esses dados integraram a exposição "A cor da morte", apresentada no seminário Violência e Racismo, ocorrido na Universidade Candido Mendes, em setembro de 2002. O trabalho faz parte do projeto Não Matarás, que conta com o auxílio do Clacso e da Faperj.

A partir desses dados, o autor nos traz as seguintes informações:8
· com base nas taxas por 100 mil habitantes, em 2001, para cada 100 brancos morreram assassinados (vítimas de homicídios) 170 negros (soma de pretos e pardos);
· se negros e brancos tivessem a mesma taxa de homicídios, 5.647 negros não teriam sido assassinados no Brasil, em um único ano;
· as taxas de homicídios de "pretos" e "pardos" são estatisticamente diferentes. Os pretos em 2000 tiveram taxa de vitimização por homicídios 24% mais alta do que pardos, indicando que a cor da pele/raça influenciou o risco de ser assassinado e que, quanto mais é escura a pele, maiores são as chances.

Pesquisa desenvolvida por Sérgio Adorno em São Paulo no ano de 1995 ajuda a traduzir a abrangência da discriminação racial no que se refere ao acesso à justiça. Segundo o autor, a desigualdade racial será vista nos seguintes fatores:
a) réus negros tendem a ser mais perseguidos pela vigilância policial,
b) réus negros experimentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e maiores dificuldades de usufruir do direito de ampla defesa assegurado pelas normas constitucionais;
c) em decorrência, réus negros tendem a merecer um tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior probabilidade de serem punidos comparativamente aos réus brancos.9
Os dados colhidos pelo pesquisador demonstram diferenciais comparativos entre negros e brancos que tenham cometido o mesmo tipo de crime e que sejam pertencentes à mesma classe social.

São vários os momentos em que a desigualdade é retratada, demonstrando a impregnação do racismo no sistema de distribuição de justiça. Quando se busca analisar o diferencial de gênero, a quantidade de dados disponíveis torna-se muito mais restrita, especialmente quando se agrega a perspectiva racial aos estudos. Trabalho desenvolvido no Rio de Janeiro por Bárbara Soares e Iara Ilgenfritz,10 um dos poucos que trazem algumas dessas informações, analisa as mulheres presas no Rio de Janeiro no período de 1999-2000. A maioria das prisioneiras no Rio de Janeiro era negra.

Acrescentam as autoras que "combinando-se informações relativas à cor e à idade das presas, observa-se ainda que as mulheres não-brancas são mais jovens do que as brancas [...]",11 o que pode significar aquilo já detectado por Sérgio Adorno em 1995: pessoas negras são aprisionadas e condenadas em idades mais jovens. Também se pode verificar a desproporcionalidade com que mulheres negras são aprisionadas em relação às brancas, quando consideramos a proporção dos diferentes grupos raciais entre a população feminina do Rio de Janeiro, em que, segundo dados do Censo Demográfico, as mulheres brancas são maioria.

* Jurema Werneck é médica e coordenadora geral de Criola. Artigo publicado na Revista Democracia Viva (Ibase).


1. Este artigo é um resumo do capítulo 10 do livro "Desigualdade racial em números", v. 2. Rio de Janeiro: Criola, p. 65-75.
2. RAMOS, Sílvia. Minoria e prevenção da violência, p. 1.
3. CANO, Ignácio. Racial Bias in lethal police action in Brazil, p. 3.
4. Crime Prevention and Criminal Justice Division. United Nations International Study on Firearm Regulation. United Nations Office in Vienna.
5. CANO, op. cit., p. 4-5.
6. SOARES, Gláucio Ary Dillon. A cor da morte. Comunicação apresentada no seminário Violência e Racismo, Universidade Candido Mendes, set. 2002.
7. ADORNO, Sérgio. Violência e racismo: discriminação no acesso à justiça penal. In: SCHWARCZ, Lilia M.; QUEIROZ, Renato da Silva. Raça e diversidade. São Paulo: Estação
Ciência/Edusp, 1996.
8. SOARES, Bárbara Musumeci; ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras - Vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 93.
9. Op. cit., p. 95.