PÁGINA PRINCIPAL
Pagina Principal

Relatórios


No Maranhão encontramos as seguintes situações: a) crianças e adolescentes de cidades do interior do Estado que vêm para a capital trabalhar como domésticas e acabam sendo abusadas sexualmente pelo patrão ou pelo filho do patrão/patroa; b) crianças e adolescentes que vêm do interior com promessas de trabalho em casas de famílias, mas que são levadas para casas de prostituição; c) tráfico de garotas para Holanda, Alemanha, Suíça e Áustria, através do Porto de Itaqui; d) garotas que viajam com estrangeiros, algumas casadas e, uma vez fora do país, são vendidas pelos agenciadores e/ou maridos.

Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Maranhão

Nelma Pereira da Silva
Arydimar Vasconcelos Gaioso
Cynthia Carvalho Martins
Helciane de Fátima Abreu Araujo*

A pesquisa Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Maranhão2 foi produzida a partir de uma pesquisa mais ampla, realizada em vários estados do Brasil e em mais sete países e mobilizou pesquisadores e entidades da sociedade civil que trabalham com a temática e órgãos governamentais. Em cada um dos estados brasileiros, uma organização não governamental ou um profissional ficou responsável pela coordenação do trabalho, assim como o financiamento também variou de estado para estado.

No Maranhão, o Centro de Defesa Pe. Marcos Passerini3 coordenou a pesquisa, realizada entre os meses de julho e novembro de 2002, na cidade de São Luís e no município de Caxias.

A pesquisa veio em um momento oportuno porque o Estado está se voltando para o turismo e, ao mesmo tempo, as entidades da sociedade civil estão buscando a elaboração de propostas de enfrentamento da violência sexual. Além da produção de informações sobre o fenômeno, a pesquisa servirá, sobretudo, para pressionar as autoridades a atuarem de maneira mais eficaz no enfrentamento da situação.

Entrevistamos agentes sociais que ocupam posições diferenciadas nesse campo, dentre eles representantes de órgãos governamentais, não governamentais, jornalistas que fizeram matérias sobre o tema, pessoas que foram traficadas, parlamentares e profissionais da academia. Realizamos coleta de material secundário e observações diretas.

Percebemos que embora nos últimos anos diversos segmentos da sociedade civil e também do poder público tenham despertado para o enfrentamento da violência sexual, as situações de tráfico, mesmo existindo, ainda estão fora da pauta de atuação dos órgãos, não estando no alvo das discussões. Mesmo nas organizações que trabalham com a temática de violência sexual, o termo tráfico não é utilizado. As situações que poderiam ser caracterizadas como tráfico são catalogadas como abuso ou exploração sexual.

No caso específico dos órgãos de defesa e responsabilização, a dificuldade é ainda maior, pois os inquéritos instaurados e processos são classificados de acordo com a previsão do Código Penal e outras leis específicas que percebem o tráfico apenas no âmbito internacional. Uma outra dificuldade também é a restrição do acesso a esses documentos que, em regra, somente é permitido aos advogados das partes, ao Ministério Público e aos Magistrados.

No Maranhão encontramos as seguintes situações: a) crianças e adolescentes de cidades do interior do Estado que vêm para a capital trabalhar como domésticas e acabam sendo abusadas sexualmente pelo patrão ou pelo filho do patrão/patroa; b) crianças e adolescentes que vêm do interior com promessas de trabalho em casas de famílias, mas que são levadas para casas de prostituição; c) tráfico de garotas para Holanda, Alemanha, Suíça e Áustria, através do Porto do Itaqui d) garotas que viajam com estrangeiros, algumas casadas, e, uma vez fora do país, são vendidas pelos agenciadores e/ ou maridos.

Tais situações se configuram dentro do conceito jurídico utilizado pela pesquisa nacional que caracteriza o tráfico de pessoas da seguinte forma:
"Tráfico de pessoas é o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou a recolha de pessoas, pela ameaça de recursos, à força ou a outras formas de coação, por rapto, por fraude, engano, abuso de autoridade ou de uma situação de vulnerabilidade, ou através da oferta ou aceitação de pagamentos, ou de vantagens para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre uma outra para fins de exploração" (termos do Protocolo, Art. 2° bis, alínea a).
Há críticas a esse conceito, principalmente em função de seu caráter generalizante. A contribuição teórica que podemos fornecer centra-se na apresentação da situação específica do Maranhão que, certamente, ajudará na construção de uma tipologia que exponha as diferentes formas como o fenômeno denominado tráfico se manifesta.

Dentro do modelo de desenvolvimento sócio-econômico proposto pelas autoridades governamentais para o país nos anos 50 e 60, o Maranhão se apresentou como um Estado receptor das tensões sociais do Nordeste, daí ter recebido um fluxo migratório considerável, constituído por pessoas oriundas dessa região. As políticas públicas de incentivos fiscais e creditícios a grandes projetos, viabilizadas em meados dos anos 70, levaram o Maranhão a uma outra condição: o Estado passou a exportar tensões sociais, principalmente para o Pará, seja para a realização de trabalhos temporários nas grandes plantações ou trabalho escravo nas fazendas. Hoje é possível identificar um contingente populacional significativo de maranhenses dispersos pelas diversas regiões do Brasil, onde exercem atividades subalternas, e até mesmo em outros países, como Suriname e Guiana Francesa.

No Maranhão, a categoria tráfico aparece, usualmente, associada ao tráfico para trabalho escravo e também ao tráfico de drogas e tráfico de órgãos. Isso porque essas situações já estão institucionalizadas. Além de serem noticiadas com freqüência pela mídia, já se encontram nas pautas de discussão da sociedade civil organizada. Exemplo disso é o acompanhamento que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) está fazendo junto a pessoas traficadas para fins de trabalho escravo nas grandes fazendas.

Nos dados obtidos junto à Pastoral da Mulher, São Luís aparece como local privilegiado para a saída de mulheres de outras localidades do Nordeste para a Holanda e Guiana Francesa, via Porto do Itaqui. A situação mais comum é o recrutamento de mulheres e adolescentes para os navios ancorados no Porto do Itaqui em que permanecem a bordo até a saída da embarcação e, em alguns casos, chegam também a viajar com a tripulação.

Realizamos também um levantamento jornalístico do fenômeno. Foram analisadas reportagens, assinadas ou não, no período de 1991 a 2001, num total de 264 recortes de matérias publicadas sobre violência sexual praticadas contra mulheres, crianças e adolescentes.

Desde o ano de 1991, o termo tráfico já é usado em uma reportagem do jornal "O Estado do Maranhão" para registrar uma situação de deslocamento de mulheres de São Luís (Maranhão) para a cidade de Alta Flores (Mato Grosso), onde, segundo a reportagem, "são obrigadas à prática de prostituição com garimpeiros" (O Imparcial, 22/11/91). A reportagem utiliza ainda os termos "escravidão branca", "regime de semi-escravidão" e "aliciamento de mulheres" para retratar a situação de mulheres que são impedidas de sair da área de garimpo em função de débitos contraídos junto ao denominado "rufião".

Conforme podemos acompanhar no quadro acima, o período de 1997 a 2001 registra o maior número de reportagens sobre o tema, sendo que os jornais "Pequeno" e "O Estado do Maranhão" se destacam com o maior número de matérias publicadas. Nos anos de 1999 e 2001 o jornal O Estado do Maranhão publicou o maior número de matérias sobre a temática; já no período de 1991 a 1996, o jornal "O Imparcial" se destacou com a publicação de um número maior de reportagens. O termo "tráfico" aparece cinco vezes, referindo-se às situações discriminadas no quadro abaixo:

Notemos que o termo "tráfico" aparece no discurso jornalístico associado: 1) à idéia de imposição da prática de prostituição; 2) à idéia de impedimento da liberdade de ir e vir; 3) à idéia de endividamento à figura do agenciador denominado pela imprensa de "rufião" ; 4) à idéia de contrato com a intermediação de alguém no negócio, no caso, o rufião; 5) à idéia de deslocamento para fora do Estado e, principalmente, para o exterior.

Além do estudo jornalístico do fenômeno tráfico, compilamos as informações catalogadas pelos pesquisadores e montamos os quadros a seguir:

ROTA DE TRÁFICO INTERNO DO ESTADO DO MARANHÃO
ORIGEM / DESTINO
Pedreiras, Trizidela, Interior de Lima Campos / Lima Campos
São Luís / Timon
Imperatriz / São Luís
Caxias / São Luís
Caxias / Timon
Buriticupu / São Luis
São Luís / Bacabal
São Luís / Joselândia
Alta Alegre / Caxias
Caxias / Alto Alegre
Caxias / Gonçalves Dias
Timon / Caxias
Gonçalves / Dias Timon
Gonçalves Dias / Passagem Franca

QUADRO ROTA DE TRÁFICO ESTADO DO MARANHÃO E OUTROS ESTADOS
ORIGEM / DESTINO
Maranhão / Pará
Teresina / São Luís
São Luís / Mato Grosso (Cidade Alta Flores)
Timon / Teresina
Fortaleza / São Luís
Belém / São Luís
Belém / São Luís
Araguaína / São Luís
Maranhão / Piauí-São Paulo
Maranhão / Manaus
Santa Catarina / São Luís
Minas Gerais / São Luís
Pará / São Luís
Ceará / São Luís
Amazônia / São Luís
Norte-Nordeste / São Luís
Goiânia / São Luís
Rio Grande do Sul / São Luís
São Luís / Fortaleza
São Luís / Belém
Maranhão / Centro Sul do Brasil

ROTA DE TRÁFICO ESTADO DO MARANHÃO PARA O EXTERIOR
ORIGEM / DESTINO
Maranhão / Guiana Francesa-Holanda
Maranhão / Suíça
Maranhão / Áustria
Maranhão / França-Holanda-Alemanha
Maranhão / Guiana Francesa-Holanda
São Luís / Espanha
Maranhão / Piauí-São Paulo-Espanha
Maranhão / Manaus
Maranhão / Bélgica
Maranhão / Suriname
Maranhão / Ilhas Maurício
Maranhão / Índia
Maranhão (Imperatriz) / Espanha e Portugal
Maranhão (São Luís) / Guiana Francesa

ROTA DE TRÁFICO BRASIL E EXTERIOR
ORIGEM / DESTINO
Brasil / Alemanha
Brasil / Itália
Brasil / Espanha
Alemanha / Itália
República Dominicana / Alemanha
Rússia / Alemanha
Brasil / Alemanha
Brasil / Espanha
Brasil (Maranhão/Piauí/Pará/Amazonas/Ceará) / Holanda
Brasil (Belém/São Luís) / Alemanha

Percebe-se, pelas tabelas acima, que o tráfico já se configura como uma situação que exige ações urgentes dos aparatos governamentais que trabalham com a temática. Isso porque já é possível identificar diferentes contextos de ocorrência do fenômeno. Considerando que as informações coletadas correspondem somente àquelas divulgadas e que há casos que continuam no anonimato, é possível observar que a gravidade ultrapassa os limites do que apresentamos nesse artigo.

Esperamos que o tema ganhe visibilidade e passe a figurar como um problema que precisa, urgentemente, de ações, no sentido de minimizar essa terrível forma de exploração do ser humano. É imprescindível que sejam tomadas providências, tanto no âmbito da repressão, da prevenção como da implantação de políticas públicas alternativas da realidade sócio-econômica da sociedade maranhense que possui os piores indicadores populacionais, quadro este que é fruto de um sistema político oligárquico extremado.


* Nelma Pereira da Silva é psicóloga, coordenadora do Centro de Defesa Pe Marcos Passerini e coordenadora da pesquisa "Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Maranhão"
Arydimar Vasconcelos Gaioso é socióloga, mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), professora da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e integrante da equipe que desenvolveu a pesquisa "Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Maranhão"
Helciane Araújo é socióloga, mestre em Políticas Públicas pela UFMA, professora da UEMA e integrante da equipe que desenvolveu a pesquisa "Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Maranhão"
Cynthia Carvalho Martins é socióloga, mestre em Políticas Públicas pela UFMA, doutoranda em antropologia pela Universidade Federal Fluminense e integrante da equipe que desenvolveu a pesquisa "Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Maranhão"

2. A pesquisa estadual fez parte da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil, coordenada nacionalmente pela CECRIA (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes). Além das autoras do artigo, também atuaram como pesquisadores da equipe estadual no Maranhão, os estagiários Talvane Marlúcio Araújo e José Ribamar Everton Neto, alunos do curso de Ciências Sociais.

3. Entidade da sociedade civil, sem fins lucrativo, que atua na defesa e garantia dos direitos de crianças e adolescentes através de mecanismos sócio-jurídicos, desde 1991.