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Relatórios


Continuamos sendo um dos principais países do mundo em desigualdade de renda, ocupando o sexto lugar, ao lado de países extremamente pobres como Namíbia ou Suazilândia. Entre janeiro e agosto de 2003, os gastos com juros da dívida pública atingiram 102,4 bilhões de reais, 68% a mais do que no mesmo período de 2002. Governo federal, estados, municípios, previdência, Banco Central e empresas estatais realizaram estes pagamentos a bancos, investidores da bolsa de valores, FMI, Banco Mundial, Banco Interamericano e a governos. Estes gastos equivalem a três vezes o orçamento do governo federal para saúde, a 334 vezes o orçamento para habitação e a 10,2% do PIB, ou cerca de 30% da receita fiscal dos três níveis de governo.


Dívidas Externa e Interna e Direitos
Humanos em 2003

Sandra Quintela*


O pagamento das dívidas constitui violação sistemática, flagrante, massiva e persistente dos direitos econômicos, sociais e culturais. São bilhões de reais retirados do orçamento público para o pagamento de dívidas externa e interna, além da necessidade constante de contrair novos empréstimos, em moeda estrangeira, para cobrir, ininterruptamente, seu pagamento.

Enquanto isso, aumentam as dívidas sociais e ambientais na forma de crescimento da pobreza, concentração de renda e riqueza, como também a crescente degradação ambiental e retirada de recursos naturais a preços cada vez mais baixos no mercado internacional e com alto preço pago pela degradação ambiental . Os dados apresentados no "Atlas do Desenvolvimento Humano"1 indicam que a desigualdade de renda no Brasil subiu de 0,53 para 0,56, entre 1991 e 2000, significando que menos gente possui mais renda neste país. Continuamos sendo um dos principais países do mundo em desigualdade de renda, ocupando o sexto lugar, ao lado de países extremamente pobres como Namíbia ou Suazilândia.

Entre janeiro e agosto de 2003, os gastos com juros da dívida pública atingiram 102,4 bilhões de reais, 68% a mais do que no mesmo período de 2002. Governo federal, estados, municípios, previdência, Banco Central e empresas estatais realizaram estes pagamentos a bancos, investidores da bolsa de valores, FMI, Banco Mundial, Banco Interamericano e a governos. Estes gastos equivalem a três vezes o orçamento do governo federal para saúde, a 334 vezes o orçamento para habitação e a 10,2% do PIB, ou cerca de 30% da receita fiscal dos três níveis de governo.

O acordo com o Fundo Monetário Internacional de 1998, ampliado e refeito em 2001 e 2002, apertou de tal forma os orçamentos públicos federal, estadual e municipal que o Estado viu sua função de orquestrador de desenvolvimento socioeconômico ser reduzida a função de colhedor de impostos para pagamento de dívida financeira. O chamado superávit primário1 do orçamento federal atingiu R$ 49 bilhões até agosto. O total de gastos nas áreas sociais atingiu, no sétimo mês do ano, o valor aproximado de R$ 40 bilhões, enquanto para pagamento de serviços (juros e encargos), das dívidas interna e externa, alcançou o valor de R$ 53 bilhões (ver quadro).

A situação em 2003, todavia, se agravou em função da última renovação do acordo com o FMI de 2002, realizada em março de 2003. Entre outras condicionalidades, foi estipulado o superávit primário de 4,25% do PIB. Em 2002 era de 3,85%. Esta meta significa, na prática, cortes nos gastos sociais de R$ 54,2 bi até setembro, que foi a meta estabelecida com o FMI.

Com o montante de recursos gerados pelo superávit primário, seria possível construir 2.168.000 casas de 35 metros quadrados em terrenos de 200 m2, a um custo unitário de R$ 25 mil 2, e aumentar em 29 vezes o valor destinado ao Fome Zero (R$ 1,7 bi), carro-chefe dos programas sociais e que busca enfrentar os fatores geradores da fome no Brasil.

Orçamento do Governo Federal

Logo abaixo está apresentado um relatório resumido da Execução Orçamentária no período entre janeiro e julho de 2003. Vamos observá-lo com calma:

Governo Federal - Relatório Resumido da Execução Orçamentária


Janeiro a Julho de 2003
Itens Selecionados / Programados para o ano / Realizado até Julho /
% Realizado

Segurança Pública / 2.763.243 / 1.082.738 / 39,18
Assistência Social / 8.611.537 / 3.944.988 / 45,81
Saúde / 27.783.936 / 13.548.355 /48,76
Educação / 14.518.836 / 6.411.900 / 44,16
Cultura / 348.555 / 79.571 / 22,83
Urbanismo / 912.976 / 21.880 / 2,40
Habitação / 296.063 / 0 / 0,00
Saneamento / 224.239 / 171 / 0,08
Gestão Ambiental / 2.329.203 / 264.906 / 11,37
Ciência e Tecnologia / 2.093.428 / 679.370 / 32,45
Agricultura / 8.998.344 / 2.015.066 / 22,39
Organização Agrária / 1.599.299 / 242.870 / 15,19
Energia / 2.138.639 / 837.947 / 39,18
Transporte / 5.394.047 / 614.393 / 11,39
TOTAL DOS GASTOS SOCIAIS / 78.012.345 / 29.744.155 / 38,13
SERVIÇO DA DÍVIDA / 141.185.711 / 53.583.212 / 37,95
Serviço da Dívida Interna / 110.450.648 / 38.474.979 / 34,83
Serviço da Dívida Externa / 30.735.063 / 15.108.233 / 49,16
Fonte: www.stn.fazenda.gov.br

Procuremos olhar o quadro acima tentando entendê-lo. Muitas vezes olhamos quadros e simplesmente saltamos os olhos. É um quadro muito simples. Mostra a partir dos itens selecionados - saúde, educação, saneamento, reforma agrária (Organização Agrária) etc - o quanto foi previsto para ser gasto em cada um deles. O realizado até julho é o quanto foi efetivamente gasto. E, finalmente, na última coluna, o valor percentual de quanto foi gasto em relação ao total orçado. Em alguns itens como saúde, educação e assistência social, o que foi gasto, até agora, corresponderia a um cronograma de desembolsos que distribui os recursos pelos meses do ano: o mês da coleta de dados é julho e os gastos equivalem a quase 50%. Nos itens como habitação, transporte, saneamento, organização agrícola e gestão ambiental, os gastos estão muito aquém do orçado, sendo o extremo o item habitação, no qual nada foi gasto do orçamento federal. Esta ausência de gastos não se deu, certamente, por falta de sem teto, de organização popular, de áreas urbanas e rurais improdutivas. O superávit primário cortou, em fevereiro deste ano, 87% do orçamento do Ministério das Cidades; ou seja, para cumprir o corte de R$ 54,2 bilhões acertado com o FMI, o governo brasileiro "passou a tesoura" e "apertou o cinto" nos programas sociais.

Fica assim decretada a moratória social àqueles que necessitam de uma das 6,6 milhões de moradias a serem construídas ou uma das reformas nas 15 milhões de moradias consideradas inadequadas. Fica decretada a suspensão do pagamento da dívida social às 53 milhões de pessoas que vivem na miséria e na pobreza no Brasil.

Voltando à tabela, no item "serviço da dívida" (juros e encargos), quase R$ 53, 6 bilhões foram gastos com dívidas financeiras. Daria para gastar R$ 1 mil com cada um dos 53 milhões que vivem na exclusão, neste intervalo de sete meses.

Moratória Financeira X Moratória Social

O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela Resolução nº 2.200-A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, e ratificada pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, prevê uma série de direitos cujos estados-membros deveriam buscar cumprir. Seu Artigo 1º prevê o direito a autodeterminação, de definir o estatuto político de seus estados- membros e assegurar livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.

Reivindicar o direito à moratória da dívida financeira como uma prerrogativa dos Estados soberanos não deveria ser proclamado como condição para o cumprimento do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais? Não seria importante a Corte Penal Internacional de Haia se pronunciar sobre esta prerrogativa?

Assim como a dívida externa, a dívida interna também viola os direitos humanos. Segundo pesquisa da Revista Carta Capital (13.08.2003), entre ações, câmbio, juros, commodities, derivativos e títulos da dívida externa, são movimentados cerca de R$ 54 bi por dia, no país. Grande parte - R$ 52 bilhões - é movimentada na Bolsa de Mercadorias e Futuros em São Paulo. É o "cassino paulista" que atrai investidores do mundo inteiro para que apliquem em seus pregões de apostas em ações das estatais, nos títulos das dívidas, nas commodities etc. Os chamados investidores entram e saem desses pregões, ou seja, do país, com toda facilidade, sem controle, sem impostos, sem fiscalização 1. O Mercado, a depender do seu humor, indiretamente define ou não o corte dos investimentos sociais por mecanismos, como o valor do dólar e índices com Risco Brasil. O aumento do superávit primário de 3,85 % para 4,25% significa, na prática, cortes no orçamento da área social como garantia de pagamento de juros altos e altos dividendos aos chamados investidores estrangeiros. É uma parcela maior do orçamento que, por acordo firmado entre ambos - Governo Federal e FMI -, deve ser direcionada para o pagamento das dívidas financeiras.

Neste mecanismo, a dívida interna consome hoje o maior volume de pagamentos. No quadro 1 veremos que dos R$ 141, 2 bilhões pagos em serviços da dívida pública, R$ 110,4 bilhões foram direcionados para o pagamento da dívida interna.

Essas dívidas não são uma fatalidade, mas sim o resultado da opção de política econômica que subjuga a esfera da vida da produção econômica à esfera das finanças. O coração da economia passa a ser as finanças e não as necessidades reais das pessoas, como, trabalho, casa, terra, saúde, educação e lazer. Portanto, para ao menos iniciar o pagamento das dívidas sociais e ambientais, a moratória social precisa ser suspensa e a moratória financeira, declarada.

Proposta de ação 2:

No campo de campanhas pelo cancelamento da dívida tem-se trabalhado no sentido de construir e investigar o vínculo entre dívidas e a violação dos direitos humanos. Durante o Fórum Social Mundial em 2003, várias atividades foram realizadas e propostas construídas. Destacamos algumas delas:

· Buscar formas de denunciar à Corte Penal Internacional de Haia o desrespeito aos Direitos Humanos, devido a políticas que priorizam os compromissos financeiros, em detrimento das necessidades sociais, e a responsabilidade do FMI e organismos financeiros internacionais nestas políticas de ajuste fiscal e estrutural, que estão provocando miséria e fome nos países do Sul;
· Investigar, denunciar e exigir julgamento e reparações nos casos de utilização de recursos do endividamento para sustentar regimes ditatoriais que promoveram genocídio contra os próprios povos, aos quais ainda foi imposto o ônus da Dívida;
· Pressionar para que seja realizada auditoria pública da dívida externa como primeiro passo para qualquer processo de renegociação;
· Estudar e utilizar os argumentos jurídicos: Dívida Odiosa, Força Maior etc, para o cancelamento da dívida;
· Estudar e denunciar a exploração que tem sido perpetrada pelos organismos internacionais - FMI, BIRD, Banco Mundial - e romper com os programas de ajuste que têm sido implementados de forma arbitrária, definidos, unilateralmente, por estes organismos internacionais, que agem como representantes dos credores;
· Trabalhar para inverter a lógica de que somos "devedores", uma vez que os povos do sul são credores das dívidas histórica, ecológica, social e política;
· Denunciar a responsabilidade do FMI e organismos financeiros internacionais pelas políticas de ajuste fiscal e estrutural que estão provocando miséria e fome nos países do Sul;

Dívida Externa, 1999 a 2003, em US$ milhões


Dívida Externa / 1999-Dez / 2000-Dez / 2001-Dez / 2002-Dez /2003-Mar-Mai
Dívida Pública / 100682 / 92358 / 93182 / 110420 / 114347 - 116835
Dívida Privada (1) / 140786 / 143798 / 132886 / 117269 / 119345-119175
Dívida Externa Total / 241468 / 236156 / 226067 / 227689 / 233692-236010
Fonte: Banco Central
(1) Inclui dívida do setor público financeiro

Dívida Externa, 1999 a 2003: quanto foi pago em U$ milhões

DÍVIDA EM 1998 (dez) 220.350
AMORTIZAÇÕES (jan 1999- ago 2003) 161.530
JUROS (jan 1999- ago 2003) 76.935
JUROS + AMORTIZAÇÕES (jan 1999- ago 2003) 238.465
DÍVIDA EM 2003 (Maio) 236.010

A dívida em 1998 era de U$ 200,35 bilhões. No período entre janeiro de 1999 e agosto de 2003 foram pagos em juros, encargos e amortizações o valor de U$ 238,46 bilhões. Mesmo assim a dívida em maio de 2003 era de U$ 236 bilhões.


* Sandra Quintela é socioeconomista do Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e membro da Rede Jubileu Sul.

1.divulgados em outubro de 2003 pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e Fundação João Pinheiro

1. dinheiro retirado do orçamento público das despesas de custeio da máquina pública, pessoal e programas sociais. Os recursos destinados ao pagamento das despesas/dívidas financeiras não são tocados.

2. Valor corrigido pelo INCC a partir de informações do Jornal do Plebiscito da Dívida - abril/maio 2000

1. Vejam o caso Banestado: U$ 30 bi saíram do pais legalmente sendo dinheiro ilegal. Mecanismos como a CC5 permitem que uma empresa brasileira que tiver uma filial num paraíso fiscal possa remeter dinheiro livremente.

2. Propostas tiradas do conjunto de atividades realizadas durante o FSM 2003 (Campanha Jubileu Sul/Brasil, Campanha Jubileu Sul da Ásia, África e demais países da América Latina e Caribe, e o Comitê pela Anulação da Dívida Externa do Terceiro Mundo -CADTM).