A destruição da economia rural promovida por
políticas de "livre comércio" tem
gerado uma nova forma de protesto, como no caso do agricultor
coreano Lee Kyung Hae, que tirou a própria vida durante
uma manifestação em Cancún. Ao contrário
da imagem de desespero ou desequilíbrio difundida pela
mídia conservadora, o gesto de Lee representa um sacrifício
consciente contra a opressão de milhares de camponeses.
Desde a criação da OMC, cerca de 600 mortes
têm sido registradas por ano na Índia. Os camponeses
preferem morrer a ver suas terras confiscadas por não
conseguirem cobrir os custos da produção, principalmente
em períodos de seca. Por essa razão, o principal
lema das manifestações em Cancún passou
a ser "A OMC mata camponeses".
Políticas
e Impactos da Organização
Mundial do Comércio
Maria
Luisa Mendonça*
Desde
sua criação em 1995, o principal papel da Organização
Mundial do Comércio (OMC) tem sido expandir seu poder
de regulamentação em 145 países, o que
significa exercer grande influência no cotidiano de
milhões de pessoas. Apesar de difundir a ideologia
do "livre comércio", a OMC possui uma complexa
estrutura de regras utilizada na defesa dos interesses de
grandes multinacionais.
Algumas
dessas regras estão contidas no acordo conhecido como
TRIPS (Trade-Related Intellectual Property Rights), que regulamenta
a propriedade intelectual. Esse acordo possui uma abrangência
maior do que a maioria das leis de patente dos países-membros
da OMC e beneficia principalmente a poderosa indústria
farmacêutica norte-americana. A concentração
do controle de patentes por meia dúzia de multinacionais,
na área de biotecnologia, é considerada hoje
uma terceira fase no processo de colonização,
iniciado no período das conquistas territoriais, durante
os séculos XV e XIX, e passando pelo controle dos mercados
financeiros nas últimas décadas.
Países
como Brasil e África do Sul questionam o TRIPS para
garantir o direito de fabricar medicamentos genéricos.
Essa questão tem sido debatida desde que os Estados
Unidos processaram o Brasil por fornecer remédios genéricos
para o tratamento do vírus HIV. A vitória brasileira
nesse caso abriu um importante precedente contra as regras
de patente na OMC. Mas, atualmente, os Estados Unidos se aliaram
à Índia para evitar a liberação
dos genéricos. A proposta estadunidense só inclui
a quebra de patentes em casos de crise de saúde pública
e limita a lista de medicamentos para o tratamento da AIDS,
da malária e da tuberculose.
Os
acordos da OMC representam também um grande risco para
a segurança alimentar de comunidades rurais, através
da possibilidade de grandes empresas controlarem patentes
de recursos genéticos e conhecimento tradicional indígena
em relação, por exemplo, à produção
de grãos nativos como milho, arroz e feijão.
Outro
tema polêmico é a abertura dos setores de serviços
para empresas estrangeiras, através do acordo chamado
GATS (General Agreements on Trade in Services). O resultado
dessa política, representada principalmente pelo processo
de privatização de serviços públicos,
foi o aumento do desemprego e a diminuição de
investimentos em setores estratégicos da economia.
No Brasil, o fracasso desse modelo se tornou evidente com
a grave crise energética no ano passado.
O
chamado "livre comércio" criou também
regras estritas contra o controle do Estado a investimentos
externos, inclusive contra a possibilidade de os governos
estabelecerem leis de proteção ao meio ambiente
e ao bem-estar social.
Normalmente,
os acordos de livre comércio não são
implementados de forma equilibrada entre países do
Norte e do Sul. Por esse motivo, as negociações
da OMC vivem sob ameaça de fracasso. As únicas
possibilidades de se evitar um novo impasse dentro da OMC
seriam: (1) se os países industrializados deixassem
de proteger suas indústrias e suas economias; ou (2)
se os países 'marginalizados' se submetessem, definitivamente,
às regras dos mais fortes. Diante desse dilema e dos
crescentes protestos de organizações sociais,
a OMC dificilmente terá condições de
superar sua crise de credibilidade.
A
reunião ministerial realizada em Cancún, México,
de 9 a 13 de setembro de 2003, foi considerada um fracasso
por setores conservadores e um sucesso por movimentos sociais.
O lema das organizações que prepararam os protestos
em Cancún era "tirar a OMC dos trilhos"-o
que realmente ocorreu.
Esse
não era o objetivo do representante comercial dos Estados
Unidos, Robert Zoellick, que na véspera da reunião
anunciou, "Queremos resultados ambiciosos, não
estamos aqui para conseguir apenas um acordo no papel. Queremos
abertura de mercados". Porém, os EUA saíram
da reunião sem motivos para comemorar.
Os
movimentos sociais reconheceram a importância do conflito
gerado na negociação sobre agricultura, onde
o chamado G-21 resistiu às imposições
dos Estados Unidos e União Européia para que
os demais países abrissem seus mercados incondicionalmente.
Esse grupo concentra 63% dos produtores agrícolas do
mundo e é formado por mais de 21 países, entre
eles Brasil, México, Argentina, Índia, China,
África do Sul e Egito.
Apesar
de sua relevância política, a agenda do G-21
é considerada "defensiva" por se limitar
a reivindicar acesso a mercados e não incluir propostas
para o fortalecimento do mercado interno, do desenvolvimento
rural e da soberania alimentar. Nesse contexto o grande vilão
é o subsídio, mas não se questiona problemas
causados por monopólios agrícolas e pelo modelo
de produção voltado para o mercado externo.
"Defendemos
o direito e o dever dos Estados em apoiar e promover seu próprio
setor agropecuário, porque dele dependem a qualidade
de vida de amplos setores da população, o equilíbrio
territorial e ambiental, e a capacidade de definirem suas
prioridades e estratégias comerciais", explica
Paul Nicholson, representante da Via Campesina.
O
aumento das exportações não significa
melhores condições de vida no campo. Com a implementação
do NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América
do Norte), o México triplicou suas exportações
agrícolas e, ao mesmo tempo, três milhões
de camponeses foram arruinados. Atualmente, a produção
mexicana de milho é controlada por grandes multinacionais.
Na Ásia, a exportação de arroz é
dominada pela Cargill que, junto com a General Foods e a Nestlé,
controla cerca de 70% do mercado internacional de alimentos.
A
destruição da economia rural promovida por políticas
de "livre comércio" tem gerado uma nova forma
de protesto, como no caso do agricultor coreano Lee Kyung
Hae, que tirou a própria vida durante uma manifestação
em Cancún. Ao contrário da imagem de desespero
ou desequilíbrio difundida pela mídia conservadora,
o gesto de Lee representa um sacrifício consciente
contra a opressão de milhares de camponeses. Desde
a criação da OMC, cerca de 600 mortes têm
sido registradas por ano na Índia. Os camponeses preferem
morrer a ver suas terras confiscadas por não conseguirem
cobrir os custos da produção, principalmente
em períodos de seca. Por essa razão, o principal
lema das manifestações em Cancún passou
a ser "A OMC mata camponeses".
A
tentativa de privilegiar os interesses de empresas multinacionais
não acontece somente nas negociações
agrícolas. Os Estados Unidos e a União Européia
buscam também a privatização e o enfraquecimento
do setor público através de acordos sobre serviços,
investimentos e compras governamentais, conhecidos como "novos
temas". Mais de 70 países, liderados pela Malásia,
Índia e Tailândia, formaram um bloco de oposição
capaz de bloquear as negociações em Cancún.
A posição do Brasil foi ambígua, já
que o governo propôs negociar esses temas na OMC como
forma de evitar sua inclusão na agenda da ALCA (Área
de Livre Comércio das Américas).
Para
a campanha brasileira contra a ALCA, o desfecho de Cancún
mostra que por trás da propaganda do "livre comércio"
esses acordos escondem uma perigosa armadilha. Após
a realização de um plebiscito popular com mais
de 10 milhões de votos contra a participação
do Brasil na ALCA, a campanha pede que o governo se retire
das negociações. As reais intenções
dos Estados Unidos ficaram evidentes em Cancún e servem
de exemplo para quem ainda acredita na ALCA.
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Maria Luisa Mendonça é jornalista e diretora
da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
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