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Relatórios


A Corte Interamericana afirmou por unanimidade que os direitos humanos reconhecidos pela organização são estendidos a todas as pessoas, inclusive aos imigrantes irregulares, que devem ter assegurado, entre outros, o direito ao devido processo legal e os direitos laborais. Cabe ao governo impedir que os empregadores privados violem na prática os direitos garantidos internacionalmente aos trabalhadores.

Responsabilidade internacional do Estado e decisões
do Sistema Interamericano em 2003

Cejil Brasil*

O regime de responsabilidade do Estado pela violação de tratados internacionais vem apresentando uma grande evolução no nosso continente desde a criação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Entretanto, a mudança na forma como tais direitos são tratados, na prática, pelos Estados, ainda ocorre de maneira lenta.

A Convenção Americana foi criada com a finalidade de evitar a perpetuação da cultura da impunidade e para comprometer os Estados a adotarem medidas preventivas. É importante lembrar que não são apenas sancionadas as ações do Estado, mas também as omissões violatórias da Convenção são passivas de conseqüências jurídicas.

Entretanto, a responsabilidade do Estado não deriva unicamente das ações e omissões praticadas por agentes públicos no exercício de suas funções. A alegação de que o infrator agiu por conta própria não é motivo para evitar a imputação da responsabilidade internacional ao país. Neste sentido, a Corte Interamericana já decidiu:

"É indiferente se órgão ou funcionário atuou em contravenção a disposições de direito interno ou extrapolando os limites de sua própria competência, posto que é um princípio de Direito internacional que o Estado responde pelos atos de seus agentes realizados ao amparo de seu caráter oficial ou pelas omissões dos mesmo ainda que atuem fora dos limites de sua competência ou em violação ao direito interno."2

Assim, a obrigação do Estado não tem somente caráter negativo. Significa afirmar que seu dever inclui, além o de não agir de forma contrária aos direitos substantivos protegidos pelos tratados internacionais, o de implementar medidas preventivas para evitar as violações praticadas por agentes públicos e, também, por agentes privados. Para isso, não basta a existência de leis internas que protejam os direitos humanos formalmente, é necessário que essas normas sejam implementadas aos casos concretos. Os agentes estatais devem estar preparados para aplicar essas leis na prática.

A Corte tem afirmado que os Estados devem tratar as eventuais violações como ato ilícito e, portanto, suscetível a sanções. Cometida a violação, o país passa a ter obrigação de realizar investigações sérias, com todos os meios disponíveis para identificar e punir os responsáveis. Caso contrário, o Estado está incorrendo em responsabilidade internacional:

"Um fato ilícito violatório dos direitos humanos que inicialmente não seja imputável diretamente ao Estado, por exemplo, por ser obra de um particular ou por não haver-se identificado o autor da transgressão, pode acarretar responsabilidade internacional do Estado, não pelo fato em si mesmo, mas pela falta da devida diligência para prevenir a violação ou para tratá-la nos termos requeridos pela Convenção".3

Com a imputação da responsabilidade, os Estados-Partes da Organização dos Estados Americanos (OEA), que ratificaram a Convenção, assumiram a obrigação de assegurar uma reparação adequada dos danos causados às vítimas e seus familiares, reabilitando, quando possível, a situação anterior à violação do direito.

Baseando-se nessas normas, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos conduziu, em 2003, avanços em vários casos emblemáticos para o Brasil, conforme o detalhe que segue.

Caso José Pereira

O Estado brasileiro assinou pela primeira vez, em setembro de 2003, um acordo de solução amistosa reconhecendo sua responsabilidade internacional pela violação aos direitos humanos praticada por particulares. A vítima, José Pereira, na época com 17 anos, foi forçada a trabalhar em condições análogas à de escravos na Fazenda Espírito Santo, no Estado do Pará. Atingido por disparos de armas de fogo, efetuados por pistoleiros quando tentava fugir da fazenda, Pereira sofreu lesões permanentes na mão e no olho direito.

O acordo constituiu um marco nas decisões relativas à violação dos direitos humanos no país. Apesar de ser comum este tipo de solução entre os países membros da OEA, o Brasil nunca havia assumido sua responsabilidade nestes termos. O resultado veio através de um processo de solução amistosa, iniciado no marco de uma petição internacional encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), denunciando a incapacidade do Estado em prevenir e punir a prática do trabalho escravo.

Apesar do fato constituir uma grave violação aos direitos humanos, o caso ficou impune no país. A pena aplicada a um dos autores não pôde ser executada em virtude do excesso de tempo transcorrido entre o inquérito e o oferecimento da denúncia, a chamada prescrição retroativa. Em 2000, o Estado brasileiro manifestou a sua disponibilidade para avançar numa solução do caso, o que motivou que o CEJIL e a CPT apresentassem uma primeira proposta de reparação com vistas a iniciar as discussões que depois de três anos levaram a assinatura do Acordo de Solução Amistosa.

O caso de José Pereira não é um fato isolado no país, principalmente no Estado do Pará. Em função da situação precária em que vivem os trabalhadores sem-terra da região, é representativo o número de fazendeiros que exploram o trabalho escravo no estado. Por isso, os peticionários incluíram no pedido, além da indenização pecuniária, a proposta do estabelecimento da competência da Justiça Federal para o julgamento do crime de escravidão e uma série de mudanças legislativas e administrativas com o objetivo de aprimorar a fiscalização e, dessa forma, garantir a punição dos autores. Várias dessas propostas foram incluídas no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado no início deste ano após ampla discussão do CEJIL e da CPT com o governo sobre o trabalho forçado no Brasil. Dessa forma, o processo de negociação permitiu incidir sobre a agenda política do Estado, dando à temática a prioridade que a gravidade do problema requer.

No acordo, assinado formalmente na solenidade de instalação da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo - CONATRAE, o Estado determinou o pagamento de indenização por danos morais e materiais a José Pereira e estabeleceu diversas medidas de fiscalização e repressão ao trabalho escravo, por considerar que as propostas legislativas demandarão um tempo considerável para serem implementadas e, como este tipo de violação é grave, requer medidas imediatas.

O Acordo de Solução Amistosa no caso abre caminho para que outras violações de direitos sejam decididas de forma semelhante. O reconhecimento do Brasil de sua responsabilidade internacional por ato praticado por particular é um passo importante para a mudança na forma como os direitos humanos são tratados pelo Estado.

Caso Eldorado dos Carajás

O massacre de Eldorado dos Carajás foi emblemático por tornar público o constante desrespeito aos direitos humanos nos conflitos rurais e a impunidade que permeia este tipo de violação. Em virtude da falta de investigações sérias no caso, o CEJIL e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) apresentaram à Comissão Interamericana uma petição solicitando a responsabilização do Estado brasileiro pela violação dos artigos 4º (direito à vida), 5º (integridade física), 8º (garantias judiciais) e 25º (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Em abril de 1996, 1.500 trabalhadores rurais acamparam na rodovia estadual no município de Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará, quando se dirigiam a Belém para exigir do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e do Governo do Estado a desapropriação da fazenda "Macaxeira". Com o pretexto de desocupar a estrada, policiais militares chegaram atirando, assassinando 19 trabalhadores - 6 com os disparos iniciais e 13 executados sumariamente após a desobstrução da rodovia. Outros 69 trabalhadores ficaram gravemente feridos. 4

Após as investigações promovidas pela justiça militar, 144 policiais militares foram levados a julgamento, mas apenas dois foram condenados. Entretanto, eles estão em liberdade aguardando o resultado do recurso interposto contra a sentença condenatória. Em fevereiro de 2003, a Comissão declarou a admissibilidade da petição ajuizada pelo CEJIL e o MST.

Segundo o relatório da Comissão:
"A investigação do caso pela justiça militar elimina a possibilidade de uma investigação objetiva e independente executada por autoridades judiciais não ligadas à hierarquia de comando das forças de segurança. O fato da investigação ser iniciada na justiça militar pode impossibilitar uma condenação, mesmo que o caso passe à justiça ordinária, dado para o qual provavelmente não foram colhidas as provas de maneira efetiva e oportuna" 5.

O relatório de admissibilidade também salientou que com a mudança da legislação brasileira, em 1996, os crimes dolosos contra a vida de civis passaram a ser de competência da justiça comum. Assim, as investigações destas infrações deveriam estar a cargo da polícia civil e não da justiça militar, mesmo quando praticadas por policiais militares.
Além de declarar a admissibilidade com relação aos fatos e os artigos apresentados pelos peticionários, a Comissão, após analisar o caso, incluiu o artigo 2º (dever de adotar disposições de direito interno) no relatório.

Outros casos

Em outubro de 2003, a Comissão aprovou os relatórios sobre os casos Corumbiara e Jailton Neri da Fonseca, ambos em conformidade com o artigo 51 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O primeiro caso refere-se ao massacre de trabalhadores rurais, ocorrido em 1995 no município de Corumbiara, Estado de Rondônia. O outro trata da execução de um menino negro por policiais militares em uma favela do Rio de Janeiro. 6

Neste mesmo período, a Comissão apresentou suas conclusões finais no caso Parque São Lucas, cujo relatório também foi aprovado de acordo com o artigo 51 da Convenção. A denúncia referia a morte de vários detentos após uma tentativa de motim no 42º Distrito Policial do Parque São Lucas, cidade de São Paulo. Segundo a denúncia, cerca de 50 presos foram encarcerados numa cela de um metro por três, dentro da qual foram jogados gases lacrimogêneos, resultando na morte de 18 detentos por asfixia e na hospitalização de outros 12. 7

Assembléia Geral da OEA

O ano de 2003 também foi marcado pela XXXIII Assembléia Geral da OEA, ocorrida em junho na cidade de Santiago do Chile. O objetivo da reunião foi proclamar, promover e fortalecer a democracia nos países da região. O CEJIL, junto com a FLASCO-Chile, a Secretaria Geral da OEA, a Corporación Participa, Human Rights Watch e a Universidad Diego Portales, organizou uma reunião preparatória, cujos resultados foram apresentados aos Chefes de Delegação e ao Secretário Geral da OEA, que estabeleceram um diálogo entre as organizações de direitos humanos e membros da sociedade civil com a finalidade de trocar experiências e gerar recomendações sobre a democracia nas Américas. No marco da solenidade, também foram eleitos os novos membros dos órgãos de proteção do Sistema Interamericano.

Visando traçar objetivos sérios e reais, os Estados pertencentes à OEA fizeram da Assembléia uma afirmação do compromisso de respeitar as decisões e resoluções da CIDH e da Corte IDH, para que haja um permanente e sistemático cumprimento das mesmas.

A constante participação de entidades representativas de cada nação faz da Assembléia Geral da OEA um espaço na luta pela consolidação dos direitos humanos, traçando estratégias de ação para a materialização dos direitos garantidos pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.

Opinião Consultiva OC-18

Previamente à realização da Assembléia Geral da OEA também ocorreram discussões sobre a Opinião Consultiva OC-18, requerida pelo México. Segundo o amicus curiae apresentado pelo CEJIL, os direitos laborais, assim como os direitos humanos, não podem ficar à margem da proteção dos órgãos do Sistema Interamericano, devendo ser respeitado o princípio da igualdade perante a lei e o da não discriminação.

Estes princípios estão compreendidos na Convenção Internacional sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e suas famílias que estabelece a proteção de todos os trabalhadores, regulares e irregulares, sem qualquer discriminação. A Convenção foi adotada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 1990, e entrou em vigor em julho de 2003.

Ainda de acordo com o CEJIL, não devem ser restringidos os direitos laborais dos trabalhadores migrantes indocumentados, pois isto estimula as contratações irregulares e fomentam o tráfico.

Com base em amplas discussões, em setembro deste ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu a Opinião Consultiva OC-18 sobre as Condições Jurídicas e os Direitos dos Migrantes Indocumentados. Segundo o México, a vulnerabilidade dos trabalhadores migrantes os torna alvos fáceis de violações de direitos humanos, sujeitando-os à discriminação e a uma situação de desigualdade perante a lei e no exercício de seus direitos. O governo mexicano alertou, na petição da OC-18, para a incompatibilidade de interpretação da lei, por parte de alguns Estados da região, com o sistema de direitos humanos da OEA, especialmente com relação aos direitos laborais, como horas extras e salário-maternidade.

É importante ressaltar que, de acordo com a CIDH, a Opinião Consultiva não é uma mera especulação acadêmica. Ela apresenta benefícios reais na proteção internacional dos direitos humanos e no fortalecimento da consciência jurídica dos povos. A Corte, ao emitir tal parecer, atua em sua condição de Tribunal guiado por instrumentos internacionais.

Segundo declaração da Corte na OC-18, o Estado, após ratificar um tratado de direitos humanos, deve introduzir em seu direito interno as modificações necessárias para assegurar o efetivo cumprimento das obrigações assumidas. Da mesma forma, os Estados têm o dever de garantir o pleno e livre exercício destes direitos e liberdades sem qualquer discriminação, inclusive com relação aos estrangeiros, que têm o direito à proteção da lei em pé de igualdade com os nacionais. Caso o governo não cumpra tal determinação, pode ser responsabilizado internacionalmente.

A obrigação do Estado não se esgota ao adotar medidas negativas, como não realizar atos descriminatórios, mas abrange ações positivas para prevenir e punir tais atos praticados pela sociedade.

Assim, a Corte Interamericana afirmou por unanimidade que os direitos humanos reconhecidos pela organização são estendidos a todas as pessoas, inclusive aos imigrantes irregulares, que devem ter assegurado, entre outros, o direito ao devido processo legal e os direitos laborais. Cabe ao governo impedir que os empregadores privados violem na prática os direitos garantidos internacionalmente aos trabalhadores.

Através da Opinião Consultiva OC-18, espera-se que os milhares de imigrantes do continente americano, que abandonam seus países em busca do sonho de uma vida mais digna, tenham seus direitos respeitados. Apesar de muitas vezes em situação irregular, a condição humana dos imigrantes deve prevalecer ao serem elaboradas as normas internas de cada país. A lei é a garantia de todos e deve ser aplicada sem discriminação.


* Este artigo foi elaborado pelo CEJIL Brasil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional). Destaca-se o trabalho de Paula Magalhães, estagiária de comunicação, na elaboração do mesmo.

2. Ver Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1998, Série C, Nº 4, parágrafo 170; Caso Godínez Cruz, Sentença de 20 de janeiro de 1988, Série C, Nº 5, parágrafo 179.

3. Ver Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, Sentença de 29 de julho de 1998, Série C, Nº 4, parágrafo 172; Caso Godínez Cruz, Sentença de 20 de janeiro de 1988, Série C, Nº 5, parágrafos 181 e 182; Caso Caballero Delgado e Santana, Sentença de 8 de dezembro de 1995, Série C, Nº 22, parágrafo 56.

4. Ver Relatório do CEJIL sobre A Responsabilidade Internacional do Estado Brasileiro pelo Massacre de Eldorado dos Carajás.

5. Ver Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Eldorado dos Carajás, Relatório Nº 4/03

6. Na época da realização deste artigo os relatórios ainda eram confidenciais, impossibilitando a divulgação de mais informações.

7. Ver Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Parque São Lucas, Relatório Nº 10/97