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Relatórios


Introdução

 Em seus 39  artigos, o Relatório Direitos Humanos no Brasil 2004 traz dados e análises importantes sobre os direitos humanos no País ao longo dos últimos anos, e especialmente em relação a situação em 2004.

 Os quase 25 anos de estagnação da renda per capita, com congelamento da péssima distribuição de renda e da riqueza, o irresponsável atrelamento aos capitais internacionais de curto prazo e a permanência de política econômica de corte neoliberal nos anos 90 não poderiam resultar em outro cenário que não o de predomínio da pobreza e de avanço da desestruturação social. Esta é a conclusão do professor da Unicamp e Secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do Município de São Paulo, Marcio Pochmann.

 O que se viu no âmbito rural foi a continuidade de um triste panorama de violações dos direitos fundamentais. Em setembro de 2004, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra realizou um levantamento demonstrando que apenas 5.440 famílias de seus acampamentos tinham sido assentadas desde o início do governo Lula. Dados da Ouvidoria Agrária Nacional indicam que, de janeiro a agosto de 2004, o número de ocupações de terra aumentou 47% em relação ao mesmo período no ano passado, chegando a 271.

 O governo rejeitou a proposta de desapropriar 36 milhões de hectares, a fim de distribuir terra para 1 milhão de famílias, a um custo de R$ 24 bilhões, alegando que não havia verba suficiente e diminuiu a meta para 400 mil famílias. Entretanto, o Ministério da Fazenda aumentou a meta do superávit primário com o FMI para além de R$ 56,9 bilhões.

 O agronegócio, que concentra terra, água e renda, produz a um custo sócio-ambiental altíssimo, predominantemente para exportação, gerando divisas para uma elite privilegiada. A irrigação de suas monoculturas consome 70% da água doce do país. Suas máquinas substituem a mão-de-obra no campo, num país cujo maior problema é o desemprego. Nos estados onde se dá a expansão da agricultura empresarial, cresce tanto a violência privada, quanto a ação repressiva do poder Judiciário.

 Em relação aos transgênicos, o que está em disputa são dois modelos de desenvolvimento rural: um centrado no latifúndio, controlado pelos grandes grupos multinacionais e baseado nas monoculturas dependentes de insumos químicos e outro centrado nas pequenas e médias unidades de produção agropecuária, organizado em redes de cooperativas, agroindústrias locais, empresas nacionais, empresas públicas estratégicas, e baseado na diversificação produtiva e em tecnologias orgânicas e agroecológicas. 

 Para João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, a recusa em realizar pesquisas sobre produtos transgênicos gera grandes dúvidas sobre sua segurança. “Além disso, qual seria o problema em rotular tais produtos? Os defensores da liberação não têm coragem de dizer que defendem o monopólio de dez empresas transnacionais que controlam todas as sementes transgênicas existentes no mundo. O que está em jogo é se seremos um país que garante a segurança alimentar de seu povo.”

 Ao mesmo tempo, a situação das populações atingidas por barragens continua crítica. A Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams- WCD/2000) estimou que 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido ‘a construção de barragens no Brasil. Isto corresponde a 300 mil famílias. Oitenta milhões de pessoas já foram atingidas no mundo. Dados do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) mostram que a cada 100 famílias deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de indenização.

 O direito à água é um outro ponto levantado pelos pesquisadores neste Relatório. Se 20% da população brasileira (cerca de 37 milhões de brasileiros) não têm acesso à água potável, 90% da população rural brasileira não têm saneamento ambiental. A sede está também nas periferias das cidades, principalmente de médio e grande porte. Enfim, são os pobres que passam sede.

 Mais uma vez, o Relatório retrata a gravidade do trabalho escravo, situação na qual se encontram milhares de trabalhadores. De 1995 a 2004, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho libertou da escravidão por dívida quase doze mil pessoas. Entre as pessoas denunciadas, algumas exercem cargo político. Jorge e Leonardo Picciani, pai e filho deputados, respectivamente estadual e federal pelo Rio de Janeiro, têm fazenda denunciada no Mato Grosso; o deputado pernambucano Inocêncio de Oliveira tem fazenda no Maranhão; e, com fazenda no Pará, o prefeito João Braz da Silva, de Unaí, Minas Gerais, e Francisco Donato de Araújo Filho, secretário de Estado do Governo do Piauí.

 No ranking de atividades nas quais são utilizadas mão-de-obra escrava, a pecuária conta por 50% das ocorrências de escravidão, o desflorestamento e a carvoagem por 25%, o agronegócio por outros 25%. Na cadeia produtiva do trabalho escravo, existem muitos produtos do nosso consumo cotidiano.

 A dívida com os povos indígenas permanece gigantesca. No cômputo geral das terras indígenas, tem-se hoje a seguinte situação: terras indígenas registradas como patrimônio da União: 37,21%; demarcações homologadas: 6,66%; terras com portarias declaratórias do Ministro da Justiça: 6,06%; terras identificadas como indígenas pela Funai: 4,60%; terras “a identificar”: 20,60% e terras “sem providências”: 21,81%. Em relação aos casos de violência contra os povos indígenas, é importante destacar que em 2004, até o presente momento, o Secretariado Nacional do Conselho Indigenista Missionário teve conhecimento da ocorrência de 16 assassinatos de indígenas.

 No âmbito urbano, os migrantes são um dos destaques desta obra. Trabalhar nas oficinas de costura em São Paulo tornou-se idéia comum na Bolívia. Anúncios nas estações de rádio oferecem trabalho com salários até dez vezes maior que o mínimo boliviano, além de casa e comida. Tudo parece fácil. Como não é exigida experiência, muitos são os interessados. Mesmo para aqueles que não podem custear sua viagem, há opção: os “gatos” lhe pagam a viagem para depois descontar os custos de seus salários. Mas as despesas de viagem são infladas e o valor do salário, corroído. Cria-se o vínculo por dívida. 

 A situação da impunidade no Estado do Espírito Santo também está aqui retratada. Em 2003, após um ano de atuação da Missão Especial de Combate ao Crime Organizado, o número de homicídios subiu para 1.782, ou seja, 54,8 de cada grupo de 100.000 habitantes, e o número de mortes violentas foi 2.228, o que representa 106,7 de cada 100.000 habitantes. Vitória é a capital brasileira com maior índice de mortes de pessoas com idade entre 15 e 24 anos: 197,1 assassinatos por grupo de 100.000 habitantes. Vale lembrar que a UNESCO considera situação de guerra civil quando o índice é acima de 50 por cada grupo de 100.000 habitantes.

 O déficit habitacional do Brasil é de 6,6 milhões de moradias. Destas, 5,3 milhões encontram-se em áreas urbanas e 1,2 milhão em áreas rurais. Mais de 10 milhões de domicílios são carentes de infra-estrutura e 84% do déficit habitacional brasileiro é concentrado nas famílias com renda de até três salários mínimos. A média de crescimento da população brasileira  foi de 1,6 % ao ano e da população favelada de 4.3 % ao ano, entre 1991 e 2000. O censo de 2000 registrou a existência de 1,7 milhões de domicílios localizados em assentamentos precários, totalizando 6,6 milhões de pessoas.

 As perdas salariais dos trabalhadores também foram grandes. Comparando os ganhos com reajustes salariais com as perdas salariais devido à rotatividade, no primeiro semestre de 2004 tivemos cerca de 5,1 milhões de trabalhadores contratados e 4 milhões de trabalhadores demitidos. A rotatividade implicou em uma perda salarial média de 40% para os que foram recontratados.

 Outro dado alarmante: o tratamento de Aids no Brasil, que é referência mundial, está ameaçado a partir de 2005, por conta do acordo TRIPS (Trade-Related Aspects on Intelectual Property Rights), feito junto com outros 12 acordos durante a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), e que dá uma série de poderes ‘a empresas que controlam patentes e submetendo muitos países ‘a dependência tecnológica. O Trips, assinado durante o governo Fernando Henrique Cardoso, dá monopólio ao titular do conhecimento de produtos essenciais, como alimentos e medicamentos. Esse é o caso do tratamento para a Aids. Os países em desenvolvimento que assinaram o Trips tinham um prazo de 10 anos para aplicarem o acordo. E foi o que fizeram, por exemplo, a Índia e a Tailândia, que desenvolveram produtos médicos a preços baixos. O Brasil, por outro lado, aceitou aplicar o Trips desde o primeiro ano da assinatura, o que o impediu de produzir genéricos e o tornou dependente dos genéricos da Índia. Como a partir de 2005 a Índia também não poderá mais produzir esses medicamentos, os gastos do Brasil com o tratamento de Aids podem passar de R$ 700 milhões ao ano para R$ 3,5 bilhões ao ano.

 Outro tema monitorado regularmente no Brasil é a tortura. Apesar de certos dispositivos adotados pelo governo brasileiro contra a tortura e maus tratos, a efetivação das recomendações da ONU encontra-se em nível aquém do esperado. Os abusos cometidos por policiais ainda são constantes. A investigação dos crimes cometidos por policiais continua a ser realizada por tribunais parciais e ineficientes. O sistema penitenciário brasileiro encontra-se em estado precário, com cadeias superlotadas, violação de prazos de detenção e ausência de informações aos familiares sobre a situação dos presos.