Em
seus 39 artigos,
o Relatório Direitos Humanos no Brasil 2004 traz dados e análises
importantes sobre os direitos humanos no País ao longo dos últimos
anos, e especialmente em relação a situação em 2004.
O
que se viu no âmbito rural foi a continuidade de um triste
panorama de violações dos direitos fundamentais. Em setembro
de 2004, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
realizou um levantamento demonstrando que apenas 5.440 famílias
de seus acampamentos tinham sido assentadas desde o início do
governo Lula. Dados da Ouvidoria Agrária Nacional indicam
que, de janeiro a agosto de 2004, o número de ocupações de
terra aumentou 47% em relação ao mesmo período no ano
passado, chegando a 271.
O
governo rejeitou a proposta de desapropriar 36 milhões de
hectares, a fim de distribuir terra para 1 milhão de famílias,
a um custo de R$ 24 bilhões, alegando que não havia verba
suficiente e diminuiu a meta para 400 mil famílias.
Entretanto, o Ministério da Fazenda aumentou a meta do superávit
primário com o FMI para além de R$ 56,9 bilhões.
O
agronegócio, que concentra terra, água e renda, produz a um
custo sócio-ambiental altíssimo, predominantemente para
exportação, gerando divisas para uma elite privilegiada. A
irrigação de suas monoculturas consome 70% da água doce do
país. Suas máquinas substituem a mão-de-obra no campo, num
país cujo maior problema é o desemprego. Nos estados onde se
dá a expansão da agricultura empresarial, cresce tanto a
violência privada, quanto a ação repressiva do poder Judiciário.
Em
relação aos transgênicos, o que está em disputa são dois
modelos de desenvolvimento rural: um centrado no latifúndio,
controlado pelos grandes grupos multinacionais e baseado nas
monoculturas dependentes de insumos químicos e outro centrado
nas pequenas e médias unidades de produção agropecuária,
organizado em redes de cooperativas, agroindústrias locais,
empresas nacionais, empresas públicas estratégicas, e
baseado na diversificação produtiva e em tecnologias orgânicas
e agroecológicas.
Para
João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST, a
recusa em realizar pesquisas sobre produtos transgênicos gera
grandes dúvidas sobre sua segurança. “Além disso, qual
seria o problema em rotular tais produtos? Os defensores da
liberação não têm coragem de dizer que defendem o monopólio
de dez empresas transnacionais que controlam todas as sementes
transgênicas existentes no mundo. O que está em jogo é
se seremos um país que garante a segurança alimentar de seu
povo.”
Ao
mesmo tempo, a situação das populações atingidas por
barragens continua crítica. A Comissão Mundial de Barragens
(World Commission On Dams- WCD/2000) estimou que 1 milhão de
pessoas foram expulsas de suas terras devido ‘a construção
de barragens no Brasil. Isto corresponde a 300 mil famílias.
Oitenta milhões de pessoas já foram atingidas no mundo.
Dados do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) mostram
que a cada 100 famílias deslocadas, 70 não receberam nenhum
tipo de indenização.
O
direito à água é um outro ponto levantado pelos
pesquisadores neste Relatório. Se 20% da população
brasileira (cerca de 37 milhões de brasileiros) não têm
acesso à água potável, 90% da população rural brasileira
não têm saneamento ambiental. A sede está também nas
periferias das cidades, principalmente de médio e grande
porte. Enfim, são os pobres que passam sede.
Mais
uma vez, o Relatório retrata a gravidade do trabalho escravo,
situação na qual se encontram milhares de trabalhadores. De
1995 a 2004, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do
Ministério do Trabalho libertou da escravidão por dívida
quase doze mil pessoas. Entre as pessoas denunciadas, algumas
exercem cargo político. Jorge e Leonardo Picciani, pai e
filho deputados, respectivamente estadual e federal pelo Rio
de Janeiro, têm fazenda denunciada no Mato Grosso; o deputado
pernambucano Inocêncio de Oliveira tem fazenda no Maranhão;
e, com fazenda no Pará, o prefeito João Braz da Silva, de
Unaí, Minas Gerais, e Francisco Donato de Araújo Filho,
secretário de Estado do Governo do Piauí.
No
ranking de atividades nas quais são utilizadas mão-de-obra
escrava, a pecuária conta por 50% das ocorrências de
escravidão, o desflorestamento e a carvoagem por 25%, o
agronegócio por outros 25%. Na cadeia produtiva do trabalho
escravo, existem muitos produtos do nosso consumo cotidiano.
A
dívida com os povos indígenas permanece gigantesca. No cômputo
geral das terras indígenas, tem-se hoje a seguinte situação:
terras indígenas registradas como patrimônio da União:
37,21%; demarcações homologadas: 6,66%; terras com portarias
declaratórias do Ministro da Justiça: 6,06%; terras
identificadas como indígenas pela Funai: 4,60%; terras “a
identificar”: 20,60% e terras “sem providências”:
21,81%. Em relação aos casos de violência contra os povos
indígenas, é importante destacar que em 2004, até o
presente momento, o Secretariado Nacional do Conselho
Indigenista Missionário teve conhecimento da ocorrência de
16 assassinatos de indígenas.
No
âmbito urbano, os migrantes são um dos destaques desta obra.
Trabalhar nas oficinas de costura em São Paulo tornou-se idéia
comum na Bolívia. Anúncios nas estações de rádio oferecem
trabalho com salários até dez vezes maior que o mínimo
boliviano, além de casa e comida. Tudo parece fácil. Como não
é exigida experiência, muitos são os interessados. Mesmo
para aqueles que não podem custear sua viagem, há opção:
os “gatos” lhe
pagam a viagem para depois descontar os custos de seus salários.
Mas as despesas de viagem são infladas e o valor do salário,
corroído. Cria-se o vínculo por dívida.
A
situação da impunidade no Estado do Espírito Santo também
está aqui retratada. Em 2003, após um ano de atuação da
Missão Especial de Combate ao Crime Organizado, o número de
homicídios subiu para 1.782, ou seja, 54,8 de cada grupo de
100.000 habitantes, e o número de mortes violentas foi 2.228,
o que representa 106,7 de cada 100.000 habitantes. Vitória é
a capital brasileira com maior índice de mortes de pessoas
com idade entre 15 e 24 anos: 197,1 assassinatos por grupo de
100.000 habitantes. Vale lembrar que a UNESCO considera situação
de guerra civil quando o índice é acima de 50 por cada grupo
de 100.000 habitantes.
O
déficit habitacional do Brasil é de 6,6 milhões de
moradias. Destas, 5,3 milhões encontram-se em áreas urbanas
e 1,2 milhão em áreas rurais. Mais de 10 milhões de domicílios
são carentes de infra-estrutura e 84% do déficit
habitacional brasileiro é concentrado nas famílias com renda
de até três salários mínimos. A média de crescimento da
população brasileira foi
de 1,6 % ao ano e da população favelada de 4.3 % ao ano,
entre 1991 e 2000. O censo de 2000 registrou a existência de
1,7 milhões de domicílios localizados em assentamentos precários,
totalizando 6,6 milhões de pessoas.
As
perdas salariais dos trabalhadores também foram grandes. Comparando
os ganhos com reajustes salariais com as perdas salariais
devido à rotatividade, no primeiro semestre de 2004 tivemos
cerca de 5,1 milhões de trabalhadores contratados e 4 milhões
de trabalhadores demitidos. A rotatividade implicou em uma
perda salarial média de 40% para os que foram recontratados.
Outro
dado alarmante: o tratamento de Aids no Brasil, que é
referência mundial, está ameaçado a partir de 2005, por
conta do acordo TRIPS (Trade-Related Aspects
on Intelectual Property Rights), feito junto com outros
12 acordos durante a criação da Organização Mundial do Comércio
(OMC), e que dá
uma série de poderes ‘a empresas que controlam patentes e
submetendo muitos países ‘a dependência tecnológica. O
Trips, assinado durante o governo Fernando Henrique Cardoso, dá
monopólio ao titular do conhecimento de produtos essenciais,
como alimentos e medicamentos. Esse é o caso do tratamento
para a Aids. Os países em desenvolvimento que assinaram o
Trips tinham um prazo de 10 anos para aplicarem o acordo. E
foi o que fizeram, por exemplo, a Índia e a Tailândia, que
desenvolveram produtos médicos a preços baixos. O Brasil,
por outro lado, aceitou aplicar o Trips desde o primeiro ano
da assinatura, o que o impediu de produzir genéricos e o
tornou dependente dos genéricos da Índia. Como a partir de
2005 a Índia também não poderá mais produzir esses
medicamentos, os gastos do Brasil com o tratamento de Aids
podem passar de R$ 700 milhões ao ano para R$ 3,5 bilhões ao
ano.
Outro
tema monitorado regularmente no Brasil é a tortura. Apesar de
certos dispositivos adotados pelo governo brasileiro contra a
tortura e maus tratos, a efetivação das recomendações da
ONU encontra-se em nível aquém do esperado. Os abusos
cometidos por policiais ainda são constantes. A investigação
dos crimes cometidos por policiais continua a ser realizada
por tribunais parciais e ineficientes. O sistema penitenciário
brasileiro encontra-se em estado precário, com cadeias
superlotadas, violação de prazos de detenção e ausência
de informações aos familiares sobre a situação dos presos.
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