No
ranking de atividades nas quais são utilizadas mão-de-obra
escrava, a pecuária conta por 50% das ocorrências de
escravidão, o deflorestamento e a carvoagem por 25%, o
agronegócio por outros 25%. Na cadeia produtiva do trabalho
escravo, existem muitos produtos do nosso consumo cotidiano.
O
confisco da terra: a árvore e a floresta
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Xavier Plassat
Muita
conversa houve nestes nove anos de trâmite legislativo para
se chegar à aprovação da emenda aglutinativa da PEC
(proposta de emenda constitucional) do confisco das terras de
escravistas. O texto aprovado em 11 de agosto de 2004 pela Câmara
dos Deputados, e que deve retomar o caminho do Senado, devido
as alterações sofridas na sua redação, se arrasta há anos
no Congresso Federal. É fruto de propostas antigas,
apresentadas por ilustres parlamentares (Paulo Rocha em 1995,
Marçal Filho e Adão Pretto em 1999, Ademir Andrade em 2001,
cuja proposta foi apensada com as demais), visando estender às
terras flagradas com travalho escravo a mesma pena aplicável
às glebas encontradas com plantio de psicotrópico: a
expropriação sem indenização, chamada de confisco. Vale
lembrar, en passant, que tal pena, devidamente estipulada no art. 243 da
Constituição, nunca teve aplicação, em que pese a
constante ocorrência de plantios psicotrópicos em vários
cantos e polígonos do país.
Essa
proposta foi apresentada como decisiva para a erradicação do
trabalho escravo a que se obrigou o Estado brasileiro ao
aderir - há décadas! - a convenções internacionais (da
OIT, da ONU, da OEA) e, há 18 meses, ao adotar plano
explicitamente voltado para esse recorrente desafio. Diz o
artigo IV.10 do Acordo de Solução Amistosa, assinado em 18
de setembro de 2003 entre o Governo brasileiro, de um lado, a
CPT e o CEJIL, de outro, para solucionar o caso conhecido como
caso José Pereira: “A fim de melhorar a Legislação
Nacional, que tem como objetivo proibir a prática do trabalho
escravo no país,
o Estado brasileiro compromete-se a implementar as ações e
as propostas de mudanças legislativas contidas no Plano
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado
pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da
Pessoa Humana, e iniciado pelo Governo brasileiro em 11 de março
de 2003.” Embora seja uma das medidas com maior teor simbólico
(a ameaça ao “sagrado” direito de propriedade, alicerce
de uma sociedade essencialmente patrimonial, pelo menos na visão
de sua auto-proclamada elite), o confisco da terra é tão
somente uma das 76 propostas de mudanças inscritas no Plano
Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
O
trabalho que se deu para tentar levantar essa única árvore
fala por si só quanto à dificuldade que haverá para erguer
o resto da floresta.
Na
tese que sustenta o confisco não há, nada de revolucionário:
por ser um crime que atenta aos valores fundamentais do nosso
convívio social – liberdade, dignidade, cidadania – a
imposição do trabalho escravo merece a reprovação máxima,
simbolizada pela perda pura e simples do bem que foi
instrumento e ocasião do crime: a propriedade, elevada por
seus aduladores ao status de ídolo, à qual podem ser
sacrificadas vidas alheias. O Estatuto da Terra já previa a
perda – mediante indenização – da propriedade que não
cumprisse sua função social (seja por não produzir a
contento ou por descumprir os deveres impostos pela lei
trabalhista e ambiental). O confisco é a radicalização
deste princípio, em relação a valores tidos como centrais
numa sociedade democrática.
Que
tenha sido tão árduo vencer a inércia senão a resistência
dos congressistas em tal matéria não deixa de interrogar o
cidadão de boa fé. Não faltaram manobras ardilosas por
parte de expoentes da bancada ruralista (Ronaldo Caiado, Kátia
Abreu) para conseguir protelar, alterar, desvirtuar a proposta
ou confundir a sociedade: como se a degradação humana
imposta à vítima do trabalho escravo pudesse em algo ser
comparada à perda patrimonial imposta ao seu algoz,
consciente ou inconsciente. A leitura dos nomes de quem se
absteve ou votou contra (foram 18 deputados: 5 do Paraná, 2
do Tocantins, 2 da Bahia, 2 de São Paulo, 2 de Goiás, 1 de
Sergipe, 1 de Alagoas, 1 de Santa Catarina, 1 do Rio Grande do
Sul, 1 do Distrito Federal; entre estes, 6 do PFL, 6 do PP, 2
do PSDB, 2 do PRONA, 1 do PMDB e 1 do PTB) é instrutiva da
geografia territorial e política dos defensores do statu-quo
nessa matéria. A moleza das forças governistas em querer
ganhar essa batalha é outro ensinamento do quanto custam
alianças pautadas na estrita governabilidade, nome que a moda
atribui à manutenção no poder.
Quem
se sente ameaçado pelo confisco da propriedade? Os mesmos que
reclamam da feliz iniciativa da chamada Lista Suja dos
escravistas modernos, em cujas duas edições recentes,
divulgadas pelo Governo, 101 empresas e proprietários rurais
perderam o direito a financiamento público subsidiado e -
espera-se para breve - perderão acesso a outros
financiamentos, inclusive na rede privada. Os mesmos que
constam na lista dos cerca de 800 proprietários fiscalizados
nos últimos 9 anos, por meio do Grupo Móvel de Fiscalização
(constituído em 1995), ocasião em que nada menos que 11.500
pessoas foram libertadas. Sim: libertadas do cativeiro, da
degradação, da servidão por dívida, da chamada escravidão
“moderna”. Entre eles, apenas dois
tiveram até hoje sanção penal, nenhum foi para
cadeia.
Também
se sentem incomodados no seu livre poder de lucrar alguns políticos
pegos em flagrante de escravização, entre eles deputados e
senadores. Também se sentem visados expoentes do agronegócio
em cujas terras ocorrências de trabalho escravo são
desveladas a cada dia que passa: de São Desidério-BA, Querência
ou Brasnorte-MT a Campos-RJ, passando por Araguaína-TO, Açailândia
e Balsas-MA, Redenção e Dom Eliseu-PA, sem falar das práticas
abertamente criminosas em processo de apuração na região de
Unaí-MG – o rei brasileiro do feijão, Norberto Mânica,
foi apontado pela Polícia Federal como mandante do
assassinato dos três fiscais e o motorista do Ministério do
Trabalho, em Unaí-MG.
Precisamos
condenar ainda os madeireiros e pecuaristas que destróem a
floresta amazônica ou as carvoarias que completam essa tarefa
mortífera. No ranking, a pecuária conta por 50% das ocorrências
de escravidão, o deflorestamento e a carvoagem por 25%, o
agronegócio por outros 25%. Na cadeia produtiva do trabalho
escravo, existem muitos produtos do nosso consumo cotidiano.
Limpar
o Brasil dessa mancha não combina com conchavo ou barganha.
Cobrado pela comunidade internacional, o Governo Lula pode
contar com o apoio da sociedade civil. Estamos numa queda de
braços que já foi marcada por ameaças
a funcionários públicos – fiscais, procuradores –
e agentes da sociedade civil organizada e violência brutal,
como ocorreu em Unaí. Nessa batalha está em jogo um valor
central de nossa sociedade, preceito constitucional e
horizonte de qualquer ação política que se respeite: a
dignidade.
É
exagerado pensar que a lei do confisco da terra possa
constituir em si o antídoto essencial à permanência do
trabalho escravo. Se é politicamente importante contabilizar
os votos majoritários em favor da PEC 438-A, não há como
gritar vitória somente porque este obstáculo estaria quase
vencido. O Plano de Erradicação foi construído dentro de
uma lógica de combate
integrado aos fatores que permitem que a escravidão
continue prosperando em nosso meio, combate este que implica
na contribuição das várias instituições do Estado, e na
participação ativa da sociedade.
O
fim da impunidade
é, sem dúvida, essencial nesse combate: primeiro, garantindo uma fiscalização ágil, rigorosa,
independente. O avanço realizado nos últimos 18 meses é
incontestável: o Grupo de fiscalização móvel ampliou para
7 o número de equipes operacionais e já são 7.000
trabalhadores resgatados neste período, em mais de 100 operações
e 400 propriedades. É possível produzir uma punição
efetiva, exemplar, dissuasiva, tanto nos aspectos penais
(penas privativas de liberdade) quanto nos aspectos pecuniários
e econômicos (multas, indenizações, confisco, sanções
financeiras e comerciais), garantindo, ao mesmo tempo, uma
real compensação dos danos impostos às vítimas e à
sociedade. A nova atuação do Ministério Público Federal e
sobretudo do Ministério Público do Trabalho já apresentam
promissores resultados. Porém, para que a impunidade seja
superada, muito fica por fazer: a competência da Justiça
Federal para julgar essas matérias continua até hoje sem
determinação clara, e aguardamos ainda o cumprimento do
engajamento suscrito pelo Estado brasileiro (no mesmo Acordo
amistoso já citado): art. IV.12: “Por último, o Estado
brasileiro compromete-se a defender a determinação da competência
federal para o julgamento do crime de redução análoga à de
escravo, com o objetivo de evitar a impunidade.”
Iniciativas
legislativas serão ainda necessárias para elevar o quantum
das penas previstas no Art.149 CP (alterado em dezembro
passado sem – curiosamente – tocar nesse ponto crucial).
Aguarda-se ainda do Conselho Monetário Nacional a votação
da resolução impedindo a concessão de empréstimos de
bancos públicos, bem como de instituições privadas aos
escravocratas modernos cujo nome consta na “lista suja”,
e, do INCRA, o efetivo recadastramento dos imóveis flagrados
com uso de mão-de-obra escrava.
De
forma mais pro-ativa, aguarda-se políticas que venham
disciplinar o avanço desenfreado da chamada fronteira agrícola
a preço de devastação humana e ambiental, e construir
alternativas de educação, qualificação, geração de
emprego e reforma agrária nas principais áreas de
aliciamento e nos focos de emigração temporária (interior
da Bahia, Piauí, Alagoas, Maranhão, Pará, Tocantins etc). O
apoio cego do Estado às exigências do agronegócio entra,
neste sentido, na contramão do projeto político de erradicar
o trabalho escravo. Perpassando as medidas previstas no Plano
Nacional de Erradicação, espera-se ainda uma intensa e
multiforma ação de prevenção e mobilização que ainda
pouco saiu do discurso. Iniciativas começaram a ser tomadas
em alguns estados (Pará, Piauí, Mato Grosso, Maranhão),
devendo, ainda, se consolidar em políticas públicas. Foram
criadas a Comissão ou Fórum Estadual, o Plano Estadual de
Erradicação e a Câmara de Fiscalização. A Comissão
Pastoral da Terra vem intensificando nessas ações, visando
identificar, alertar e mobilizar os trabalhadores mais vulneráveis
ao aliciamento; esta é uma das frentes da Campanha Nacional
Permanente que a CPT vem articulando desde 1997 (De
Olho Aberto para não Virar Escravo).
Neste
processo, estão em jogo opções de modelo
de desenvolvimento para o país, para o campo, para a
agricultura brasileira. Segundo
o jornalista Maurício Hashizume, “o Poder Executivo
precisará mostrar pulso firme para os desafios espinhosos que
se colocam no horizonte da erradicação do trabalho escravo.
A lista é extensa: desde o enfrentamento político da exploração
da mão-de-obra escrava em fazendas-modelo do agronegócio até
o julgamento do 1º vice-presidente da Câmara, Inocêncio de
Oliveira (PFL-PE), por prática de trabalho escravo no
Tribunal Regional do Trabalho do Estado do Maranhão”.
Ao
contemplar a árvore do confisco da terra não podemos
esquecer da floresta diversificada formada pelo conjunto de
medidas articuladas e coerentes que a erradicação efetiva da
escravidão moderna exige.
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Xavier
Plassat é coordenador da Campanha da Comissão Pastoral da
Terra contra o Trabalho Escravo
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Artigo publicado na Revista
Democracia Viva - IBASE
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