Situações
de violações dão conta de demonstrar a falta de decisão
política para realizar a garantia dos direitos humanos dos
integrantes das comunidades quilombolas, posto que aí é o próprio
Estado que desencadeia o conflito contra as populações a que
devia proteger, promovendo o deslocamento forçado de pessoas,
a extinção de grupos étnicos e a difusão da prática de
ilegalidades.
Violações
dos direitos das comunidades quilombolas continuaram em 2004
Aton
Fon Filho*
Os
tambores azuis das caixeiras da comunidade quilombola de
Itamatatiua estão batendo o som da frustração no segundo
ano do governo Lula.
Os
cantos dos remanescentes de quilombos continuaram, em 2004, a
ter como motivo a perseguição e a dor, em lugar da certeza
da terra prometida.
Recebido
com esperanças no final de 2003, o Decreto Federal 4.887, de
20 de novembro daquele ano apontava a perspectiva de
deslanchar o processo de regularização das áreas
quilombolas, dando cumprimento à ordem de emissão dos títulos
de propriedade àqueles povos contida no art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.
Com
um olhar que reconhecia os avanços normativos contidos na
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, o
grupo de estudos nomeado pelo Presidente da República
vislumbrou alguns dos elementos centrais do problema da inação
e da omissão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
quanto ao reconhecimento dos direitos dos povos dos quilombos.
Se
o governo do doutor em sociologia não conseguiu em oito anos
ir além de uma discussão sobre o que são áreas de
remanescentes de quilombos e a possibilidade de promover a
aquisição de direitos sobre essas áreas a regularizar, o
Decreto 4.887 dava adequado tratamento a essas questões e ia
além, inspirado no tratado internacional a que o Estado
Brasileiro aderira, dando partida para o estabelecimento de
novas bases do que se pode considerar um direito étnico
brasileiro.
Ficava
disposto que a consciência da identidade quilombola constitui
o critério fundamental para o reconhecimento de uma
comunidade remanescente de quilombo, afastando as exigências
anteriores de laudos técnicos nesse sentido, admitidos apenas
quando houver expressa contestação dessa identidade, tal
como o determinava o art. 1º.2, da Convenção 169 da OIT.
De
outra parte, o Decreto reconhecia a realidade agrária
conflitiva de nosso País, e abria os olhos para a
possibilidade tantas vezes constatada de áreas quilombolas
objeto ainda hoje de ações de grileiros, gerando situações
de posse ou propriedade contestadas.
Assim
como a determinação de que a consciência da identidade
quilombola é o critério fundamental para determinação do
que são esses povos protegidos, merece destaque a adoção
com sentido jurídico de elementos de caráter étnico-cultural,
sendo relevante o dispositivo segundo o qual as áreas
quilombolas devem ser consideradas atendendo seu objetivo de
garantir a reprodução física, social, econômica e cultural
da comunidade.
É
verdade que o decreto, como tudo mais no governo atual,
flertou com os setores mais conservadores, no caso, com os
militares representados no Conselho de Segurança Nacional,
garantindo a este direito de opinar sobre a regularização
das áreas quilombolas, embora a regra constitucional não
expresse nenhuma ressalva. Mas também é verdade que o
Decreto foi expresso em determinar a expedição dos títulos
de propriedade às comunidades quilombolas mesmo quando as áreas
incidam sobre terrenos de marinha, marginais
de rios, ilhas e lagos.
Do
ponto de vista prático, contudo, o Decreto 4.887, continha o
avanço de atribuir a competência para identificar e titular
as terras de quilombo ao Ministério do Desenvolvimento Agrário,
através do INCRA, dando fim ao impasse originado na atribuição
feita anteriormente à Fundação Cultural Palmares, órgão a
que não apenas faltam recursos, mas experiência para
realizar regularização de terras.
O
Decreto sofreu o ataque dos setores mais conservadores da
sociedade brasileira, em particular daqueles ligados ao latifúndio,
tendo o Partido da Frente Liberal assumido o papel de contestá-lo
em Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo
Tribunal Federal, atacando particularmente os dispositivos que
resultaram da ratificação da Convenção 169 da OIT,
aprovada por aquele Partido no parlamento brasileiro. A ação
proposta está sendo processada sem a liminar pedida, tendo a
Advocacia Geral da União apresentado defesa e a Procuradoria
Geral da União se manifestado pela improcedência do pedido.
As
boas intenções governamentais, ao final de um ano da experiência,
demonstraram-se apenas boas intenções irrealizadas, o que
autorizou com justiça a frustração que campeia entre as
comunidades e as organizações quilombolas.
O
desconsolo com a inação governamental teve início já com o
descompromisso demonstrado pelo INCRA, que, segundo o Decreto
4.887, deveria regulamentar os procedimentos
administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas pelos
remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de
sessenta dias da publicação do Decreto, mas que somente o
fez em 24 de março de 2004.
Depois,
somou-se uma greve que durou quase dois meses, e só então se
pôde perceber que esses problemas tinham somente mascarado os
mais graves de todos: a necessidade de distribuir os agrados
políticos entre os diversos setores da administração, o
desconhecimento dos funcionários da autarquia para tratar da
questão étnica e a burocracia que fere toda a máquina
federal.
Já
o Decreto 4.887 trazia as indicações de que a atribuição
ao INCRA da tarefa de regularizar as áreas quilombolas
implicou a necessidade apenas política de garantir à Fundação
Cultural Palmares uma competência juridicamente inexistente.
Não por outro motivo, determinou-se que à FCP caberia manter
um cadastro das declarações de auto-identificação e
certificar sua inscrição (3º, § 4º). De tal cadastro e
certidão, o mínimo que se pode dizer é que são
absolutamente inexigíveis legalmente, em face do direito de
auto-identificação que determinaram a Convenção 169 da OIT
e o Decreto 4.887. Mas, se são irrelevantes juridicamente,
constituíram passo a mais a prolongar o processo de
regularização das áreas quilombolas, com a agravante de
introduzir outro organismo e outro ato administrativo como
etapas a serem observadas.
O
que se configurava inicialmente como apenas um procedimento
burocrático a mais, porém, acabou se mostrando um novo
mecanismo para a manipulação política, posto que se o
governo federal não pode apresentar até agora realizações
mais palpáveis no que tange à regularização de áreas
quilombolas, a Fundação Cultural Palmares tem anunciado com
estardalhaço a entrega a comunidades quilombolas de certidões
de auto-reconhecimento. Ou seja, a FCP festeja publicamente a
entrega às comunidades de uma certidão de que essas mesmas
comunidades se reconhecem como quilombolas.
No
que respeita à ação do Incra, propriamente dita, este tem
se perdido no meandro de suas atribuições agrárias e, do
mesmo modo que atrasa o cumprimento do processo de
assentamento de trabalhadores rurais, posterga a regularização
das áreas quilombolas ferido pela dificuldade de entender
exatamente o que seja a área necessária para garantia da
sobrevivência física, econômica, social e cultural dos
quilombolas.
Uma
vez mais, o argumento do benefício adicional é invocado,
tendo o Ministério do Desenvolvimento Agrário justificado a
demora no cumprimento do mandamento constitucional com a
desculpa de que não basta dar o título de propriedade aos
quilombolas, sendo necessário garantir a posse efetiva da área
titulada.
O
argumento é falacioso, já que uma coisa pressupõe
necessariamente a outra, de modo que se poderia dizer, também,
que não se pode garantir a posse efetiva da área pelos
quilombolas em virtude de não lhes ter sido ainda outorgado o
título de propriedade.
Essa
justificativa, porém, aplicada à realidade concreta garante
que comunidades quilombolas como a de Conceição das Criolas,
em Pernambuco, enfrentem ameaças de violência e morte por
parte dos fazendeiros, como apontam duas de suas integrantes,
Maria Aparecida Mendes e Gilvânia da Silva.
Mais
grave ainda se revela o emprego artificioso desse argumento,
quando se constata que o próprio Estado tem sido o esbulhador
da posse e propriedade quilombolas em alguns dos mais graves
casos de desrespeito aos direitos étnicos no Brasil.
Tome-se,
por exemplo, a situação da área do quilombo da Marambaia,
no Rio de Janeiro, onde os moradores têm sido vítimas de
medidas por parte do Governo que ameaçam sua sobrevivência
como povo. Naquela área, em disputa com a Marinha Brasileira,
os moradores tiveram sua circulação restringida, com impacto
relevante sobre sua capacidade de garantir o alimento.
Ademais, as autoridades estabeleceram de modo absolutamente
ilegal uma restrição à construção de novas moradias ou
reforma das antigas, impedindo, assim, que os novos casais que
se constituírem tenham suas próprias residências,
resultando na impossibilidade da reprodução daquele povo.
Violações
semelhantes são vivenciadas ainda pelas comunidades
quilombolas integrantes do território étnico de Alcântara,
vitimadas pela ação governamental de instalação do Centro
de Lançamento Aeroespacial naquela região.
A
região de Alcântara foi visitada pelo relator especial da
ONU para a questão da moradia, que pode constatar a agressão
aos direitos econômicos, sociais e culturais daquelas
comunidades quilombolas, deslocadas de suas áreas originais e
confinadas em espaços reduzidos onde não dispõem dos
recursos para a sobrevivência física e têm ameaçada sua
sobrevivência social e cultural.
Violações
de seus direitos básicos são enfrentadas enfim, para ficar
apenas em três exemplos, pelas comunidades quilombolas do
Vale do Jequitinhonha, ameaçadas de expulsão pela construção
da barragem de Irapé.
Essas
situações dão conta de demonstrar a falta de decisão política
para realizar a garantia dos direitos humanos dos integrantes
das comunidades quilombolas, posto que aí é o próprio
Estado que desencadeia o conflito contra as populações a que
devia proteger, promovendo o deslocamento forçado de pessoas,
a extinção de grupos étnicos e a difusão da prática de
ilegalidades.
Qualquer
perspectiva de regularização das áreas de remanescentes de
quilombos deveria iniciar, é óbvio, por aquelas áreas em
que o próprio Estado dispõe, desde logo, dos meios e
recursos para efetivar a titulação, porque as comunidades
ocupam áreas consideradas devolutas.
Que
isso assim não seja constitui apenas um demonstrativo da
inapetência, mais do que da inaptidão, do Estado brasileiro
para garantir os direitos das comunidades quilombolas, dando
cumprimento ao artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, e prova a pouca credibilidade
das metas de regularização de áreas anunciadas.
Embora
o Incra tenha apontado uma perspectiva de regularização de
cerca de quatro dezenas de áreas quilombolas este ano, nada
indica que essa meta venha a ser efetivamente cumprida,
podendo ser desde logo antevistas as justificativas de que o
processo foi postergado em decorrência da greve dos funcionários.
Ainda
que se possam reconhecer os prejuízos decorrentes da paralisação,
não se pode afastar, por outro lado, a certeza de que sempre
advêm prejuízos em decorrência de um movimento paredista,
motivo pelo qual o ente público não pode se dar por
surpreendido, nem se considerar irresponsável pelas conseqüências
advindas de sua incapacidade de solucionar prontamente o
conflito.
Sendo
certo, em qualquer hipótese, que a observância dos direitos
humanos não pode ficar subordinada à alegação de que o
Estado não consegue exercer o controle sobre a máquina
administrativa.
A
impessoalidade do Estado permite o reconhecimento da validade
da projeção feita pelo professor
Alfredo Wagner Berno de Almeida, antropólogo da Universidade
Federal Fluminense, para quem a regularização das mais de
duas mil áreas quilombolas, mantido o ritmo atual – 71 áreas
tituladas desde 1988 – demorará outros quinhentos anos.
Essa
impessoalidade do Estado, porém, não exclui as
responsabilidades políticas e individuais, de organismos e
agentes políticos pela omissão que praticarem e pelas violações
de direitos a que derem causa.
Anteriormente,
as comunidades quilombolas se viram lançadas à tarefa de
enfrentar interpretações jurídicas restritivas de seu
direito à propriedade de suas terras, artifício com que se
buscou mascarar uma oposição àquilo que determina a
Constituição.
Agora,
todos os mecanismos jurídicos postos à disposição do ente
estatal, cabe aos remanescentes de quilombos, à sociedade
brasileira e à comunidade internacional exigir o cumprimento
da Constituição Federal e a garantia dos direitos daqueles
povos protegidos.
Para
que tenham início os quinhentos anos de libertação, e os
sons de tambores motive o arrastar de pés e requebro de
quadris numa terra quilombola. Por isso, livre.
*
Aton Fon Filho é advogado, diretor da Rede Social de Justiça
e Direitos Humanos e diretor do Sindicato dos Advogados do
Estado de São Paulo
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