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Relatórios


Se 20% da população brasileira (cerca de 37 milhões de brasileiros) não têm acesso à água potável, 90% da população rural brasileira não têm saneamento ambiental, incluindo a água potável. A sede está também nas periferias das cidades, principalmente de médio e grande porte. Enfim, são os pobres que passam sede.

Água e Direito

* Roberto Malvezzi

 O debate contemporâneo sobre a água trouxe suas múltiplas interfaces com outros campos do conhecimento além da hidrologia. A água, há muito reduzida a “recursos hídricos”, especialidade de hidrólogos, agora tem que ser debatida na suas interfaces com a biologia, com o ambientalismo, o social, lazer, turismo, política, economia, além de sua dimensão de poder, de gênero, segurança alimentar, saneamento, principalmente com os direitos humanos. Ainda mais, exige-se uma visão sistêmica, holística e não segmentada.  Enfim, a água sempre debatida em seus múltiplos usos, agora tem que ser debatida também em seus múltiplos valores e dimensões. 

 Em primeiro lugar, cabe uma abstração: água e recursos hídricos são conceitos indissociáveis, mas não idênticos. A água é o bem natural, anterior a todas as formas de vida, ambiente onde surgiram as primeiras formas de vida e constitutiva de cada ser vivo. Recurso hídrico é o uso econômico que o ser humano faz da água. Portanto, água é um conceito infinitamente mais amplo, anterior a qualquer uso que o ser humano dela faça. A água existe sem o ser humano, mas o ser humano não existe sem água. A espécie humana terminará antes da água, porque a existência humana e de cada ser vivo que se conhece, pressupõe a água. Á água é, portanto, um bem imprescindível e insubstituível. Por isso, a Campanha da Fraternidade de 2004 “Água, Fonte de Vida”, afirma categoricamente que os valores supremos da água são o biológico e o social.

 Um estudo divulgado pela ONU na Cúpula Mundial do Meio Ambiente em Johannesburgo, trazia dados assustadores sobre a inter relação da água com a saúde, agricultura, energia e biodiversidade.O pivô desse estudo era a água. O desmatamento, o empobrecimento da biodiversidade, a devastação dos solos e a poluição das águas vão formando um mapa pavoroso de fome, sede, doenças, miséria e mortalidade em toda face do planeta. Segundo o documento, hoje no mundo aproximadamente 1,2 bilhões de pessoas não têm acesso à água potável, isto é, cerca de 20% da humanidade. Pior ainda, cerca de 2,4 bilhões não têm acesso ao saneamento básico, o que atinge aproximadamente 40% da humanidade. As vítimas são os pobres, pela própria posição que ocupam no tabuleiro social, principalmente as crianças, indefesas por si mesmas.  Ainda segundo o documento, dois milhões de crianças morrem a cada ano por doenças veiculadas pela água. Nos países mais pobres uma em cada cinco crianças morre antes dos cinco anos de idade pelos mesmos motivos. Metade os leitos hospitalares do mundo está ocupada por doenças veiculadas por água[1].

 O mapa da sede no Brasil é simples de ser visualizado. Em primeiro ele está no meio rural. Se 20% da população brasileira (cerca de 37 milhões de brasileiros) não têm acesso à água potável,[2] 90% da população rural brasileira não têm saneamento ambiental, incluindo aí a água potável. No meio rural o problema está obviamente mais centrado no semi-árido, a região mais rural do Brasil, com os menores índices de saneamento. A sede está também nas periferias das cidades, principalmente de médio e grande porte. Enfim, são os pobres que passam sede. Daí a grande importância da construção do marco regulatório do saneamento ambiental que o Ministério das Cidades está gestando. Entende-se por sede a falta de água para ingestão “em quantidade, qualidade e regularidade”, que não garanta a uma pessoa, uma família ou uma comunidade o mínimo necessário para garantir as suas funções orgânicas normais. Essa quantidade é calculada em dois litros de água por dia. Entende-se por “insegurança hídrica” a falta de água em “quantidade, qualidade e regularidade” que não garanta a uma pessoa, família, comunidade a quantidade mínima de água para ingestão, higiene e demais necessidades do seu cotidiano doméstico. Essa quantidade é calculada pela OMS em quarenta litros de água por dia. Quando qualquer um desses fundamentos falha – quantidade, qualidade ou regularidade – então caracteriza-se uma situação de escassez. Na verdade, hoje a escassez só é reconhecida quando falta água em “quantidade”.

 Por ser imprescindível e insubstituível a água torna-se um direito natural. Nenhum ser humano, nenhum ser vivo pode ser privado do acesso à água, por estar sendo violentado em sua natureza, inclusive com risco de morte. Independe do reconhecimento do direito positivo. Populações inteiras, impedidas de acesso à água por razões políticas, ou de políticas, tem um de seus direitos fundamentais violados de forma massiva e sistemática, já que o não acesso à água põe em risco seu direito fundamental à integridade física, saúde e mesmo à vida.

 Entretanto, reconhecer a água como um direito fundamental do ser humano sofre resistências de governos, organismos multilaterais e empresas que querem fazer da água uma mercadoria. Mesmo sendo direito natural, há resistências em admiti-la como tal no direito positivo.  Por que isso acontece?

 Nesse caso é preciso fazer um paralelo com o direito humano à alimentação. O fato de reconhecer a alimentação como direito, implica que o Estado é responsabilizado pela alimentação de seu povo a partir dos três verbos “proteger, promover, prover”. Implica também que os alimentos não poderão obedecer às regras estritas de mercado, mas à lógica dos direitos. As poderosas transnacionais do ramo da alimentação perceberam as implicações que o reconhecimento da alimentação como direito teria sobre seus negócios. Até hoje os Estados Unidos não assinaram o pacto internacional pelo direito humano à alimentação.

 Essa é a mesma lógica que faz muitos países resistam em assumir a água como direito inscrito positivamente nas leis. Aceitam a água, assim como o alimento, como necessidade, não como direito. Nessa lógica, estabelecem uma ruptura entre o direito natural e o direito positivo. O que era direito natural, agora é reduzido à necessidade, como se entre eles não houvesse um vínculo indissolúvel.

 Qualquer passo de um governo ou da sociedade civil no sentido de tornar prático o direito à água, principalmente num quadro tão pernicioso como o acima descrito, evidentemente é uma atitude corajosa. No Brasil merecem destaques três dessas iniciativas, duas na área da sociedade civil e outra na área governamental.

1 - Projeto “Um Milhão de Cisternas” (P1MC).

 Esse projeto é uma iniciativa da sociedade civil da região do semi-árido brasileiro articulada na ASA (Articulação do Semi-árido). Hoje a ASA congrega aproximadamente mil entidades, de todas as matizes, desde as não governamentais, religiosas, até às sindicais e movimentos sociais. Ele visa construir um milhão de cisternas familiares para captação de água de chuva para consumo humano, beneficiando um milhão de famílias, atingindo praticamente seis milhões de pessoas. Sua abrangência é o semi-árido brasileiro, que atinge parte de 11  estados: Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão. O semi-árido brasileiro tem uma abrangência de 867.999,3 km². Nele residem 18.466.637 pessoas, sendo que 9.835.806 na área urbana e 8.630.691 na área rural. É o semi-árido mais populoso da face do planeta.

 Fazendo o mapa da geografia da sede do Brasil é exatamente essa população rural, difusa na região, a que mais sofre os impactos da insegurança hídrica, inclusive da água para beber. Atualmente, a maior parte dessa população é abastecida por água de “barreiro”, ou seja, um buraco escavado no chão que armazena água de chuva em tempo de chuva para os tempos naturalmente sem chuva. Esse tipo primitivo de armazenagem de água, mesmo quando diponibiliza água em quantidade suficiente para as famílias satisfazerem suas necessidades básicas, não consegue oferecer a água de qualidade, principalmente para consumo humano. O que se bebe no sertão é uma mistura de lama com todas as possibilidades de ingerir as doenças veiculadas pela água. É especificamente para essa população, historicamente abandonada por todas as esferas de poder, que a sociedade civil decidiu construir seu projeto de “Um Milhão de Cisternas”.

 A cisterna é uma tecnologia simples. Um reservatório de água construído ao pé da casa, meio encravado no chão, meio fora, que colhe a água de chuva do telhado das casas. Há todo um curso de gerenciamento de recursos hídricos com as famílias para que aprendam gerenciar bem sua água de beber e cozinhar. As cisternas são vedadas, não permitem a entrada de luz ou insetos. Sem luz não há procriação de algas. A água conserva-se limpa para consumo humano.

 O impacto na saúde das famílias, principalmente idosos e crianças, é imediato. Facilita também o trabalho das mulheres, tantas vezes alquebradas pela dura labuta de buscar a água. Imediatamente também há certa libertação da classe política, acostumada a domesticar a população pela sede.

 Atingir um milhão de famílias em cinco anos é a meta do projeto. Mesmo que não consiga, é o maior projeto de abastecimento de água para a população do semi-árido que já existiu até hoje. É o direito das populações pobres do semi-árido beberem sua água potável com qualidade sendo viabilizado pela sociedade civil.

2 - Saneamento Ambiental.

 O saneamento ambiental no Brasil apresenta dados estarrecedores. Se 20% de nossa população não têm acesso á água potável, 50% não têm coleta de esgotos e 80% do esgoto coletado são jogados diretamente nos corpos d’água. A falta de saneamento é um fator decisivo na contaminação de 70% dos rios brasileiros.

 Quando o governo Lula assumiu e criou o Ministério das Cidades uma inovação começou acontecer no trato brasileiro com o saneamento. Está sendo construído um marco regulatório do saneamento ambiental brasileiro que, se for aprovado e executado, inaugurará um nova história do saneamento brasileiro. O anteprojeto de lei entende “o saneamento ambiental como o conjunto de ações com o objetivo de alcançar níveis crescentes de salubridade ambiental, compreendendo o abastecimento de água; a coleta, o tratamento e a disposição dos esgotos e dos resíduos sólidos e gasosos e os demais serviços de limpeza urbana; o manejo das águas pluviais urbanas; o controle ambiental de vetores e reservatórios de doenças e a disciplina da ocupação e uso do solo, nas condições que maximizem a promoção e a melhoria das condições de vida nos meios urbano e rural[3].

 O anteprojeto orienta-se ainda pelos princípios de universalidade, integralidade, equidade, regularidade, eficiência, modicidade dos preços, etc. Enfim, eticamente correto. O anteprojeto entende ainda o saneamento como obrigação do Estado. Prevê que para resolver os problemas brasileiros será preciso investir cerca de U$ 170 bilhões em vinte anos. Entretanto, se nunca a questão foi tão grave, nunca foi encarada como deve. A implementação de uma política de saneamento ambiental no Brasil poderá demarcar uma nova época na realidade do saneamento brasileiro.

3 – Relatoria do Direito a Terra e Água Rura.

 No contexto da relatoria dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCAS), particularmente o Direito Humano à Alimentação, foi criada no Brasil a Relatoria para o Direito Humano a Terra e Água Rural. O atual relator é Flávio Valente.

 Calcado na dinâmica das missões (ida ao campo) seguido de relatório, essa relatoria tem formulado a situação real das comunidades do campo – quilombolas, indígenas, assentados, etc – no tocante ao acesso à água. São denúncias concretas de situações concretas. Uma vez elaborado, esse relatório da sociedade civil cumpre o papel de contraponto do relatório oficial que o governo brasileiro deve apresentar à ONU, em Genebra. Pelo menos no ano de 2003, o contra relatório da sociedade civil estava muito mais completo e fundamento que o relatório do governo brasileiro.

 A importância desse relatório ainda é criar a cultura do direito à água na sociedade brasileira, que à semelhança do resto do mundo, sofre resistência das empresas, corporações técnicas e governos locais. Porém, essa nova visão da água tem sido recebida pelo conjunto da sociedade de forma calorosa, até porque o povo brasileiro, sendo a principal vítima do processo de degradação das águas, não tinha instrumentos concretos para reagir. Agora começa desenhar seus próprios mecanismos de defesa.

 Nesse sentido é esperançoso o futuro das águas no Brasil e do acesso das populações à água que precisa – tanto em quantidade, como qualidade, como regularidade – para seu cotidiano. É um momento de encruzilhada, mas está demarcado o momento de reação da sociedade brasileira.

Bibliografia de Referência.

CNBB: “Água, Fonte de Vida”. Texto Base da Campanha da Fraternidade de 2004. Ed. Salesiana. S. Paulo. 2004.

Ministério das Cidades: “Diretrizes para os Serviços Púbicos de Saneamento Básico e a Política Nacional de Saneamento Ambiental – PNSA. (Anteprojeto de Lei). 2004. Site do Ministério das Cidades.

Flávio Valente: “Relatório do Direito à Terra e Água Rural”. Conseguido diretamente com o relator.

Roberto Malvezzi: “La industria de la seca e sus antídotos”. In “Derecho a la alimentación em el Brasil de Lula” (Cadernos do Ceam). Universidade de Brasília. 2004.

Idem: “Direito à Água como Alimento”. Procurar na Internet por autor.

*Roberto Malvezzi (Gogó) é membro da Coordenação Nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra).



[1] Texto Base da Campanha da Fraternidade: Água, Fonte de Vida, nº 6. Ed. Salesianas, 2004.

[2] Texto Base da Campanha da Fraternidade, citando dados da Organização Panamericana de Saúde (Opas).

[3] Cap 2, Art. 2,I: PNASA (Ante Projeto de Lei da Política Nacional de Saneamento Ambiental). Ministério das Cidades.