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Relatórios


Em 2003, após um ano de atuação da Missão Especial de Combate ao Crime Organizado, o número de homicídios subiu para 1.782, ou seja, 54,8 de cada grupo de 100.000 habitantes, e o número de mortes violentas foi 2.228, o que representa 106,7 de cada 100.000 habitantes. Vitória é a capital brasileira com maior índice de mortes de pessoas com idade entre 15 e 24 anos: 197,1 assassinatos por grupo de 100.000 habitantes. Vale lembrar que a UNESCO considera situação de guerra civil quando o índice é acima de 50 por cada grupo de 100.000 habitantes.

  

O COMBATE À IMPUNIDADE NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

*Tânia Maria Silveira

 Os defensores dos direitos humanos lutam, há quase três décadas, contra o crime organizado no estado do Espírito Santo. Proteger a vida é a finalidade deste trabalho. Por isso, muitos morreram, outros tiveram que se mudar, ou se esconder, ou ser protegidos em programas especiais, ou viverem sob a escolta da polícia. Inúmeras organizações nacionais e internacionais têm participado de atividades para coibir as ações dos malfeitores. Apesar dos esforços, os índices de violência continuam altos e crescentes. Em 2003, após um ano de atuação da Missão Especial de Combate ao Crime Organizado, o número de homicídios subiu para 1.782, ou seja, 54,8 de cada grupo de 100.000 habitantes, e o número de mortes violentas foi 2.228, o que representa 106,7 de cada 100.000 habitantes[1]. A violência atinge, em especial, os mais jovens. Vitória é a capital brasileira com maior índice de mortes de pessoas com idade entre 15 e 24 anos: 197,1 assassinatos por grupo de 100.000 habitantes[2]. Vale lembrar que a UNESCO considera situação de guerra civil quando o índice é acima de 50 por cada grupo de 100.000 habitantes. Além disso, após cada ação de enfrentamento aos criminosos, aparecem novos desafios sobrepondo questões à agenda política e institucional de todas as organizações que aqui atuam. 

Breve retrospectiva das ações contra o crime organizado

 Em 1976, o falecido advogado Ewerton Montenegro Guimarães escreveu o livro A Chancela do Crime, no qual ele explicitou o modo de funcionamento e os personagens do Esquadrão da Morte, uma organização formada por policiais para extermínio de “bandidos”, ou seja, detentos, egressos e pobres.

 Na década de 80, o Espírito Santo foi palco do combate entre os camponeses e a União Democrática Ruralista – UDR, o que resultou em vários mortos cujos crimes até hoje estão impunes. Caso ilustrativo é o do líder sindical Valdício Barbosa dos Santos, o Léo, morto em setembro/89, cujo assassino, o ex-policial Romualdo, conhecido como “japonês”, foi condenado a 16,5 anos de prisão, no julgamento ocorrido em dezembro/2003, no entanto, continua em liberdade.

 Entre 1991 e 1993, o Estado do Espírito Santo destacou-se no cenário nacional e internacional devido ao extermínio de crianças e adolescentes. Este fato motivou o decreto governamental que criou a Comissão de Processos Administrativos Especiais-CPAE, em 05 de setembro de 1991. Esta comissão apurou que os executores eram policiais civis e militares associados a uma organização intitulada Scuderie Detetive Le Cocq (SDLC). Após muita perseguição, em 20/11/1995, Francisco Vicente Badenes Júnior, o delegado de polícia responsável pela investigação, apresentou ao Ministério Público Federal a Representação para Fim de Dissolução da Entidade Denominada Scuderie Detetive Le Cocq no Estado do Espírito Santo. Esta ação judicial tramita até hoje, sem qualquer decisão, e o delegado responsável encontra-se protegido pelo programa do governo federal para proteção de vítimas e testemunhas, o PROVITA.

 Em 1993, o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) lançou, neste estado, a Campanha contra a Impunidade. As denúncias desta campanha motivaram o Conselho de Defesa da Pessoa Humana-CDDPH/MJ a constituir uma comissão especial que constatou a veracidade dos fatos e apresentou várias recomendações às autoridades capixabas. O não cumprimento destas recomendações justificou, posteriormente, o pedido de intervenção federal neste estado.

 Em 30 de novembro de 1995, o Diário Oficial da União publicou a Resolução Intergovernamental que criou o Conselho de Segurança Pública da Região Sudeste, com o objetivo de coordenar, em parceria com o Ministério da Justiça, as ações de combate ao tráfico de drogas, ao contrabando de armas, cargas e carros. Este conselho não teve atuação de destaque. Além disso, neste mesmo período, o crime organizado agiu explicitamente no Espírito Santo, sem que o referido conselho conseguisse reprimir suas ações.

 Em 1999 e 2000 Vitória tornou-se a capital mais violenta do país, o que provocou a atuação da comissão de investigação da Câmara Federal, a CPI do Narcotráfico, cujo relatório final desvendou as máfias capixabas e seus vínculos com as autoridades locais. Este fato fez do estado do Espírito Santo um caso exemplar de organização do crime por dentro das instituições públicas, comprometendo a credibilidade do Estado Democrático de Direito. Neste contexto, era previsível o não cumprimento das recomendações feitas pela referida comissão parlamentar às autoridades locais.

 Em 2002, foi apresentado o pedido de intervenção federal neste estado, pela Ordem dos Advogados, com o apoio do Fórum Permanente contra o Crime Organizado e a Violência - Reage Espírito Santo, que é formado por várias organizações da sociedade civil capixaba. Este pedido foi aprovado e instruído pelo CDDPH/MJ e, posteriormente, arquivado pelo então Procurador da República gerando uma crise política que culminou na renúncia do então Ministro da Justiça. Para contornar a crise, o novo Ministro da Justiça criou, em julho de 2002, a Missão Especial de Combate ao Crime Organizado. O trabalho da Missão resultou na prisão de autoridades e pessoas influentes, tais como, o coronel da PM Walter Gomes Ferreira, o ex-presidente da Assembléia Legislativa José Carlos Gratz, o empresário Carlos Guilherme Lima, dentre outros. O deputado Gratz teve seu mandato cassado. Também foram indiciados o ex-governador José Ignácio Ferreira, sua esposa e alguns  de seus colaboradores. A Missão Especial conseguiu mapear a atuação do crime organizado no Espírito Santo, sua rede de articulação política, jurídica e armada. Durante a atuação das forças federais, foram assassinadas várias testemunhas de crimes emblemáticos, como também, o jovem juiz Alexandre Martins de Castro Filho, que era um aguerrido colaborador da Missão. A Missão Especial foi desfeita após um ano de intensa movimentação, com imponentes operações das quais participaram cerca de 200 agentes federais. Sua última atividade foi denunciar o Presidente do Tribunal de Contas e alguns de seus conselheiros pedindo que eles fossem afastados dos cargos, mas o pedido de afastamento foi indeferido pela justiça. Atualmente, exceto o Cel. Ferreira, todos os acusados ao longo do trabalho da Missão respondem em liberdade pelos seus crimes.

 Em 08/08/2003, foi criado o Gabinete de Gestão Integrada de Segurança Pública para articular as ações das forças estaduais e federais. Esta medida visa também assegurar a continuidade das ações de combate ao crime organizado, através de medidas especiais. Com base neste mesmo objetivo, o Espírito Santo foi o primeiro Estado a aderir ao Sistema Único de Segurança Pública – SUSP.

O combate à criminalidade e as violações aos direitos humanos

 Lamentavelmente, após todas as medidas acima citadas, não está sendo possível conter o aumento da violência e da criminalidade no Espírito Santo. Continuam insolúveis os casos exemplares de “crimes de mando”, por exemplo, no início de outubro ocorreu a execução sumária de mais uma testemunha do assassinato do advogado Marcelo Denadai. Este advogado morreu em 15/03/2002 e sua morte tornou-se um dos fatos que justificou a criação da Missão Especial. Contrariamente aos compromissos assumidos por vários responsáveis daquela Missão, o crime não foi elucidado e todas as testemunhas estão sendo eliminadas: em março/2003 foi Eduardo Victor Ferreira, a primeira testemunha; em dezembro/2003, foi o ex-policial PJ, um dos assassinos de Denadai que se tornou réu colaborador; em junho/2003 foi Gilson Pontes Alves; em junho/2004 foi Leonardo Maciel Amorim; e agora o ex-PM Bandeira, quinta testemunha, eliminada  no dia 08/10/2004[3]

 Se, de um lado, os esforços para proteger a vida ainda não produziram resultado efetivo, de outro lado, a repressão ao crime resultou num aumento significativo de detentos, sem que o Estado tenha número de vagas disponível no sistema prisional e carcerário. Em 2002, havia 3.774 [4] detentos. Atualmente, segundo a Pastoral Carcerária, o número ultrapassa  5,5 mil. Há um déficit de 1,4 mil vagas, segundo o atual secretário de Estado da Justiça, Fernando Zardini Antônio. A superlotação das delegacias de polícia e as más condições das cadeias motivaram o promotor de justiça, Gustavo Senna Miranda, a impetrar uma ação judicial condenando esta situação. Ele afirma que no Departamento de Policia Judiciária-DPJ daquele município estavam detidos 50 num local em que cabiam apenas 16 pessoas. Na referida ação, ele ainda denunciou:

 “(...) fomos ao DPJ de Campo Grande, onde, num local completamente desumano, estão jogados 60 homens num pequeno pátio mofado com vazamentos, em que todos compartilham um buraco no cimento como vaso sanitário, uma pequena mangueira para banho, ambos sem divisão”.

O teto, uma grade de ferro, onde eles podem ter constante contato com a natureza: chuva, sol, frio, vento, num ambiente propício à transmissão de vários tipos de doenças.

 Tais circunstâncias levam a um clima de revolta, contribuindo para rebeliões, mortes e tantos outros momentos de graves tensões com que temos convivido”.[5] 

 O juiz Erivaldo Franklin de Medeiros, da Vara da Fazenda Pública do Município, sentenciou o Estado a reformar o DPJ no prazo de 60 dias, sob pena de multa diária de cinco mil reais, bem como, determinou que o DPJ não pode mais abrigar presos além da sua  capacidade. 

 Freqüentemente o Conselho Estadual de Direitos Humanos recebe denúncias da dramática situação em que vivem os presos. As reivindicações feitas por eles consistem tão somente em pedidos para assegurar a sobrevivência, tais como, que a irrisória comida seja servida a todos, ou que seja dada permissão às famílias para levarem comida aos famintos; que eles tenham local para fazer suas necessidades fisiológicas; que tenha tratamento médico para os tuberculosos, aidéticos e feridos à bala; que os apenados sem condenação tenham acesso à justiça. Por tudo isto, não é exagero afirmar que os encarcerados estão submetidos às condições impostas pelos campos de concentração.

 As rebeliões nos presídios tornaram-se freqüentes. No início de outubro, houve tumulto em várias unidades: na Casa de Custódia de Viana, no Manicômio Judiciário e na Penitenciária Feminina, em Tucum, Cariacica, dentre outras. Os detentos quebraram a Casa de Custódia e, para reformá-la, os presos dali foram transferidos para os outros presídios, dentre eles, o Presídio de Segurança Máxima – PSMA que recebeu cerca de 200 homens. A Secretaria de Estado da Justiça – SEJUS tomou algumas medidas de segurança, como o corte da visita de familiares. Os detentos do PSMA ameaçaram uma mega-rebelião e a SEJUS enviou a Tropa de Choque. Preocupados, os familiares procuram as entidades de direitos humanos. No dia 13/10, durante o II Fórum Social do Espírito Santo, familiares dos detentos  encontram-se com o Juiz da Vara de Execuções Penais e com o Secretário de Justiça e pediram-lhes que os representantes das entidades de direitos humanos visitassem o referido presídio para verificar a situação dos detentos, o que foi acordado e realizado no dia seguinte.

 Durante a visita estiveram presentes o Secretário de Justiça do Estado, o Sub-Secretário para Assuntos Penais e demais servidores daquela Secretaria, o Juiz da Vara de Execuções Penais, o Promotor de Justiça do município de Viana, representantes da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Vitória, representantes do Movimento Nacional de Direitos Humanos, representante da deputada Iriny Lopes que é membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal.

 Nesta visita fomos informados pelos detentos e pudemos testemunhar as agressões por eles sofridas. Quase todas as pessoas abaixo relacionadas, tinham lesões físicas visíveis sendo, em muitos, localizadas exclusivamente nas nádegas. Todos afirmaram que as lesões foram decorrentes de espancamentos feitos pelos policiais militares responsáveis pela carceragem.  Todos se queixavam de dores e, alguns, mal conseguiam andar. O Secretário de Justiça encaminhou os apenados para ser procedido Exame de Corpo Delito e solicitou cópia dos laudos para apurações de responsabilidades.[6]

Os detentos que foram encaminhados são:

 1-     Tobias Claudino Nascimento , nascido aos 10/06/1979 em Linhares

2-     Roberto César Sanches de Oliveira, nascido aos 16/07/1978 em Vitória

3-     Agnaldo da Silva, nascido aos 04/01/1981

4-     Eduardo Alves Rocha Ou Luis Carlos Nascimento, nascido aos 04/06/1979 em Rio Bananal

5-     Emerson Batista Antunes, nascido aos 05/11/1978 em Vila Velha

6-     Derli de Almeida Amorim, nascido aos 09/11/1978 em São Gabriel da Palha

7-     César Dias Pereira, nascido aos 28/10/1978, em Vila Velha

8-     José Roberto Ferrari, nascido aos 29/08/1973

9-     Marcio Martins Oliveira, nascido aos 08/03/1972, Rio de Janeiro

10- Douglas Campos Silva, nascido aos 09/10/1974, em Vitória

11- Josevaldo Natividade ou Joanilson Carlos de Araújo, nascido aos 05/03/1975, Ilhéus-BA

12- Gaspar Garcia de Aguiar, nascido aos 09/10/1979, em Vitória

13- Davi Marcolino Vicente, nascido aos 03//02/1982, em Vitória

14- Marcos Silva Teodoro, nascido aos 23/03/1972, Vitória

15- Marcelo Diniz Alves, nascido aos 20/12/1976, em Vitória

16- Francisco Gadelha Costa Neto, nascido aos 08/07/1969, Rio Grande do Norte

È preciso construir novos mecanismos de proteção à pessoa humana!

 O destaque dado ao Espírito Santo no combate contra o crime organizado não se deve à qualidade da ação dos criminosos, tampouco ao perfil de suas organizações.  As máfias capixabas não são tão sofisticadas! Recentes operações da Polícia Federal, a “Vampiro”, a “Anaconda” e as investigações da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, CPMI-Banestado, demonstram a atuação do crime com base no mesmo modo operacional verificado aqui.

 Analisando a relação entre crime e política no estado do Espírito Santo, a professora Célia Maria Vilela Tavares afirma uma explicação para este fenômeno local cujo teor pode ser estendido a outras regiões brasileiras:

 “(...) as práticas coronelistas e populistas foram a herança deixada às novas gerações de políticos que ascenderam ao poder a partir da década de 1980. A associação das práticas autoritárias com a política do favor fez aumentar a corrupção na administração pública, que contribuiu para a instalação do crime organizado nas instâncias de poder do Estado. Passamos a conviver, então, com a ausência da lei, que, por sua vez, abriu caminho para a força do arbítrio em detrimento da prática do respeito à lei e à noção de limite. A corrupção, a criminalidade, a desordem, a transgressão reforçaram-se mutuamente num círculo vicioso, criando um padrão de estabilidade identificado e alimentado pela rede de cumplicidade que se criou entre o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e parte da sociedade civil.”[7]

 Assim sendo, constatamos que a gravidade do problema é a fragilidade do Estado.

 Ao combater a impunidade buscando os meios institucionais, os capixabas estão percebendo os limites dos órgãos de segurança. Por outro lado, verificamos a teimosia dos militantes deste estado, em especial, das organizações sociais que, apesar de seus mortos, não desistem desta luta. Assim, o problema foi revelado e, com ele, o embrião da resposta aparece: não brotará uma solução mágica do seio do Estado. Cabe à sociedade estabelecer os parâmetros da estrutura responsável pela gestão pública, ou seja, a “queda-de-braço” entre o lícito e o ilícito ocorre no interior da sociedade e, também, dentro das instituições públicas.

 A IX Conferência Nacional de Direitos Humanos privilegiou o debate organizacional para a garantia dos direitos humanos em nosso país. O aprofundamento sobre os mecanismos de proteção remete para as questões relativas à funcionalidade dos instrumentos já existentes, bem como, para as estratégias de intervenção.

 A perseverança dos capixabas na luta de enfretamento ao crime organizado durante estas longas três décadas se deve às alianças das entidades com os setores do Estado, em especial, com o ministério público; com os meios de comunicação; e com as organizações nacionais e internacionais. A articulação política e social é um mecanismo fundamental!

Os recentes resultados obtidos são promissores, por exemplo, as eleições municipais, ainda que inconclusas, apontam para a renovação de mais de 50% das prefeituras, o que significa a derrota de importantes núcleos das máfias municipais.

 Por outro lado, no curto prazo, há um grandioso trabalho a ser feito junto aos órgãos públicos locais. Os defensores de direitos humanos estão reforçando sua atuação na busca de mudanças de conduta, em especial, dos agentes de justiça e segurança que precisam  resgatar os valores humanos e sociais.

*Tânia Maria Silveira é membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos e integrante do mandato da Deputada Federal Iriny Lopes.

 


[1] Instituto de apoio a pesquisa e ao desenvolvimento Jones Santos Neves, http://www.ipes.es.gov.br, outubro/2004.

[2] UNESCO, Mapa da Violência, in A Gazeta, Caderno Cidades, pág.04, 11/10/2004.

[3] A TRIBUNA, pág.16, Vitória/ES, 10/10/2004.

[4] ALMANAQUE ABRIL, pág.94, edição 2003.

[5] A TRIBUNA , pág.19, Vitória-ES, 10/10/2204.

[6] OF/Nº 24/2004 – SEJUS/PSMA/ADM, 14 de outubro de 2004, Viana/ES

[7] TAVARES, Célia Maria Vilela; Crime e Política no Espírito Santo; Universidade Federal Fluminense; Niterói; 2004.