Trabalhar
nas oficinas de costura em São Paulo tornou-se idéia comum
na Bolívia. Anúncios nas estações de rádio oferecem
trabalho com salários até dez vezes maior que o mínimo
boliviano, além de casa e comida. Tudo parece fácil. Como não
é exigida experiência, muitos são os interessados. Mesmo
para aqueles que não podem custear sua viagem, há opção:
os “gatos”
lhe pagam a viagem para depois descontar os custos de seus salários.
Mas as despesas de viagem são infladas e o valor do salário,
corroído. Cria-se o vínculo por dívida.
Migrantes: Discriminados e
Necessários?
* Luiz Bassegio
O
fenômeno das migrações está cada vez mais presente no
mundo globalizado. São milhões de pessoas que normalmente
emigram dos países pobres para os ricos. Filipinos buscam
trabalho no Oriente Médio e na Europa; equatorianos saem de
seu país para a Espanha; milhões de mexicanos,
centro-americanos e caribenhos esperam encontrar nos Estados
Unidos um local para melhorar sua vida e a de seus familiares.
O mesmo acontece com os norte-africanos que buscam a Europa.
O
caso do Brasil não é diferente. Além dos milhões de
migrantes internos há mais de dois milhões de brasileiros no
exterior. Várias centenas de milhares estão no Paraguai; só
nos Estados Unidos há quase um milhão de brasileiros, além
de 200 mil no Japão, 60 mil na Alemanha, e 50 mil em
Portugal. Calcula-se que hoje emigram para o exterior cerca de
100 mil brasileiros por ano.
A
migração, atualmente, é uma realidade planetária. Foi e
continua sendo um fato marcante na história enriquecendo os
países e a humanidade como um todo com sua pluralidade
cultural, apesar das dificuldades. O fenômeno migratório
apresenta-se como contraditório e complexo. Ao mesmo tempo em
que os imigrantes são indesejados porque muita gente acha que
eles “roubam” os empregos dos nacionais, têm outros
costumes, enfim, são vistos como “estranhos” que passam a
conviver no novo ambiente. Todavia, são necessários para
realizar determinados trabalhos que a maioria da população
de outros países não quer fazer, os chamados trabalhos
sujos. No entanto, apesar de todas as contradições, a
contribuição dos emigrantes para seus países de origem tem
sido bastante expressiva. Os mais de 20 milhões de emigrantes
latino-americanos e caribenhos que se encontram fora de seus
países remetem anualmente em torno de 30 bilhões de dólares
para os países de origem. Os brasileiros que residem no
exterior enviaram para o Brasil, no ano de 2003, mais de 5,2
bilhões de dólares, quantia superior ao investimento direto,
produtivo, realizado pelas empresas estadunidenses, no mesmo
ano, no Brasil. Daí que, apesar da tendência discriminadora
mundial com os imigrantes, o fenômeno migratório, mesmo do
ponto de vista econômico, não pode mais ser ignorado, quanto
menos discriminar e criminalizar os imigrantes pelas mazelas
que ocorrem nos países ricos, como normalmente se faz.
Quais
seriam as causas de tantas migrações?
Segundo
relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a
principal causa é o fato de que a globalização não gerou
postos de trabalho nos países periféricos. Este processo
criou um traço estrutural na economia mundial: a
desigualdade. Além de concentrar ainda mais a riqueza, essa
política conduz à deterioração das condições de vida e
ao deslocamento humano. Basta considerarmos as exigências que
o Banco Mundial e o FMI fazem de ajustes estruturais, com a
redução dos gastos públicos e a conseqüente diminuição
dos empregos públicos; o excedente de mão-de-obra; a violação
dos direitos humanos e a desestabilização social, para
termos idéia das reais causas da migração no mundo atual.
Em
sua maioria, os movimentos migratórios respondem às
necessidades de demanda dos países industrializados por mão-de-obra
barata e sem qualificação para setores como agricultura,
alimentação, construção, indústria têxtil, serviços domésticos
e cuidados com os doentes, idosos e crianças. Nos Estados
Unidos, o destino dos imigrantes em geral é o trabalho sujo,
perigoso e difícil. No Japão, o destino é mais cruel.
Cabe-lhes os trabalhos ainda mais pesados, perigosos, exigentes e indesejáveis.
Porém,
sabendo que as grandes transformações mundiais sempre foram
precedidas de grandes fluxos migratórios, podemos antever uma
contribuição positiva das migrações para o futuro da
humanidade. O fenômeno migratório aponta para a necessidade
de repensar o mundo não mais baseado na competitividade, mas
na solidariedade; não na concentração, mas na repartição;
não no fechamento das fronteiras, mas na cidadania universal,
enfim, num mundo baseado não no consumo desenfreado, mas numa
sociedade sustentável, onde haja lugar e vida digna para
todos.
Imigrantes
Trabalhando como Escravos
A
OIT estima em 200 milhões as pessoas escravizadas no mundo.
Em geral, são migrantes que vivem longe de sua terra,
fragilizados. Sem relações sociais que os protejam, têm
dificuldades de se livrar das amarras da coerção imposta.
Muitas vezes, a pessoa aceita esta condição, levada pela
necessidade econômica ou pela crença de que é obrigada a
quitar sua dívida, geralmente resultante de custos de viagem.
Recentemente
a imprensa noticiou a grande quantia de dinheiro que os
imigrantes latino-americanos e caribenhos remetem dos Estados
Unidos para seus países de origem. O trabalho dos 20 milhões de imigrantes gera nos Estados Unidos uma
renda de aproximadamente 450 bilhões de dólares.
O
caso dos imigrantes bolivianos em São Paulo tem muito a ver
com os dados acima, mas com algumas características próprias.
Vivem em São Paulo em torno de 200 mil bolivianos. Como um
grito de sobrevivência, este êxodo reflete a triste
realidade da Bolívia, que possui um dos piores indicadores
sociais de toda a América do Sul – ocupando a posição número
114, num total de 177 países, de acordo com o relatório
sobre o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado
anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD). Para efeitos de comparação, o Brasil
se situa na 72ª colocação. É por causa dessa conjuntura
miserável que muitos bolivianos se sujeitam a condições
subumanas de trabalho na cidade de São Paulo.
Mas,
como vivem estes imigrantes? Há um grande debate em torno
desta situação. E é por isto que o tema merece ser
aprofundado. Segundo testemunhas, as pessoas são recrutadas
na Bolívia com anúncios de rádio e jornais antes de
chegarem ao Brasil, para trabalhar cerca de seis meses para
pagar o custo da viagem ao intermediário que os trouxe
(chamado de gato ou coyote). Muitas vezes os passaporte são
retidos e há ameaça de denúncia à polícia caso o
imigrante não cumpra as exigências do intermediário.
Trabalhar
nas oficinas de costura em São Paulo tornou-se idéia comum
na Bolívia. Anúncios nas estações de rádio oferecem
trabalho com salários até dez vezes maior que o mínimo
boliviano, além de casa e comida. Tudo parece fácil. Como não
é exigida experiência, muitos são os interessados. Mesmo
para aqueles que não podem custear sua viagem, há opção:
os “gatos”
lhe pagam a viagem para depois descontar os custos de seus salários.
Mas as despesas de viagem são infladas e o valor do salário,
corroído. Cria-se o vínculo por dívida.
A
pobreza os empurra para esta aventura. Aproveitando-se a
extensa fronteira brasileira, os indocumentados cruzam
escondidos em veículos que carregam homens e mercadorias.
Aqueles que têm passaporte ingressam como turista por Corumbá,
no entanto, sua aparência os denuncia, por seus traços indígenas
e pelo carimbo da pobreza estampada em seu rosto. Eles
geralmente recebem apenas visto de um mês, enquanto que
qualquer outro turista de aparência européia obtém visto de
três meses. Esta é a chamada legalidade provisória: 30 dias
são o que os separa da dura realidade de viver
clandestinamente.
Condições
de vida e de trabalho
A grande maioria dos
migrantes bolivianos em São Paulo trabalha e mora no mesmo
local insalubre onde estão instaladas as oficinas de costura
– setor no qual muitos trabalham –, o que traz sérios
problemas para a saúde. Um dos mais graves é a tuberculose.
Uma jornada normal no ramo da costura é de 12 a 14 horas diárias,
mas muitos trabalham das 7h às 24h.
Impedidos,
pela Lei dos Estrangeiros, de exercerem o trabalho dito formal
– aquele em que são assegurados os direitos e as garantias
contidos na Constituição e na CLT (Consolidação das Leis
do Trabalho), os migrantes ilegais não vêem alternativa senão
se submeter às explorações, às enormes jornadas de
trabalho a preço vil. O medo da deportação força-os a um
pacto de silêncio. As vítimas quase nunca denunciam seus
algozes.
Um imigrante que não
quis se identificar declarou: “Eu não podia reclamar, não podia fazer valer os meus direitos
porque pensava que não tinha nenhum. Eu não tinha documentação
aqui”.
No
dia 20 de agosto de 2004, uma blitz do Ministério Público do
Trabalho (MPT) flagrou um casal de coreanos, donos de uma
confecção, empregando ilegalmente 11 estrangeiros – entre
bolivianos, paraguaios e peruanos. Na oficina de costura,
localizada no Bom Retiro, bairro da região central de São
Paulo, constatou-se absoluto desrespeito à Constituição
Federal e à CLT. Submetidos a longas e exaustivas jornadas,
em regime análogo ao de escravo, estes imigrantes eram
obrigados a trabalhar no subsolo do prédio da confecção que
era monitorado por circuito interno de TV e apresentava graves
irregularidades.
Apesar
de ter instalações elétricas precárias e não possuir
condições mínimas de saúde e higiene, o local servia também
como moradia. Em área contígua à oficina, oito dos
trabalhadores e uma criança de seis anos repartiam seis
pequenos cômodos improvisados de 2 m2,
divididos por paredes de compensado. Os outros, quando a
jornada se estendia, acabavam, também, por dormir no local.
Ali, funcionava, ainda, uma cozinha, onde eram feitas as refeições,
oferecida pelos patrões.
Segundo a Coordenação
de Saúde da Sub-prefeitura/Mooca, os principais problemas que
a grande maioria destes imigrantes enfrenta são:
-
profissionais da saúde têm dificuldade de acesso aos domicílios;
imigrantes têm dificuldade de acesso aos serviços públicos,
inclusive da saúde;
-
existência das seguintes doenças: tuberculose, dengue,
dermatites, além de histórico de pré-natal tardio, falta de
saúde bucal e higiene pessoal e das residências;
-
condições de trabalho insalubres e alto rodízio do local de
moradia/trabalho;
-
crianças fora da escola;
-
intolerância da população residente na região aos povos
imigrantes;
-
barreiras: desconhecimento cultural, hábitos, costumes e
idiomas diferentes (espanhol, quéchua, aymará e guarani)
tanto por parte dos trabalhadores da
saúde que os atendem como da população da região.
Segundo
o Jornal Presença Latina:
“...Homens
e mulheres, muitas vezes com estudos completos, desembarcam
sonhando com um trabalho estável e um bom salário: 100 dólares
por mês. Cerca de 300 reais pode parecer pouco, mas é o que
representa um salário de classe média na Bolívia. Os sonhos
se esvaem em realidade. Estas pessoas chegam enganadas por
aliciadores que prometem casa, comida e trabalho. Se os
interessados não têm dinheiro para custear a vinda, eles
tomam emprestados dos “coiotes” que também cobram de 500
a 600 dólares para a
tramitação dos documentos. Pagar as dívidas contraídas
custa cerca de 6 meses de trabalho... estamos vendo o
envolvimento de brasileiros, coreanos e dos próprios
bolivianos que vão buscar essas pessoas para trabalhar aqui.
Em São Paulo, os documentos destes trabalhadores são retidos
para evitar a comunicação e eles nem sabem em que lugar estão
morando. Residem no local de trabalho e têm
jornadas de 12 a 14 horas, recebendo por peça
fabricada, em lugares de péssimas condições. Muitos estão
contraindo tuberculose nestes ambientes.
Entre
estes indocumentados, há um medo de denunciar, medo da polícia
e das represálias. Após o cumprimento dos meses para o
pagamento dos custos da viagem, eles fogem e deparam-se com a
legislação que os criminaliza, mas não reconhece o tráfico
de seres humanos.”(Presença Latina – Jornal das
Comunidades Latino-Americanas em SP n.2 nov/dez 2003)
Mas
o que é que caracteriza o trabalho escravo? Olhando de perto
a situação do povo boliviano, podemos destacar os seguintes
pontos:
-
A forma como são recrutados na Bolívia, com promessas
enganosas de salários de até 500 dólares mensais, quando na
verdade não passam de 100 dólares;
-
O confinamento a que são submetidos em São Paulo: trabalhar
diversos meses para pagar a viagem e a impossibilidade de
comunicação;
-
Retenção dos documentos e chantagem com ameaças de denúncias
para a polícia;
-
A longa e extenuante jornada de trabalho a que são submetidos
e que muitas vezes chega a mais de 16 horas diárias;
-
A contínua rotatividade de local de trabalho, evitando assim
qualquer tipo de organização e despistando as autoridades
locais;
-
As condições insalubres de trabalho: morar e trabalhar no
mesmo local, respirando a poeira do trabalho nas confecções;
-
Cerceamento da liberdade devido ao horário de trabalho e a
constante coação;
Como uma das sugestões
para lidar com o problema, alertamos para o princípio da
reciprocidade: assim como queremos que sejam tratados os
emigrantes brasileiros no exterior, da mesma forma devemos
tratar os imigrantes que aqui se encontram. Afinal defendemos
uma cidadania universal e lutamos por outro mundo possível,
necessário e urgente.
Praça da Kantuta
Mas
nem tudo é tristeza e exploração. Aos domingos, milhares de
bolivianos se encontram na Praça Kantuta, bairro do Pari,
zona leste da cidade de São Paulo. Domingo é dia de ver o sol, muito embora, eles cheguem à
praça da Kantuta já ao anoitecer. A maioria é muito jovem e
anda de cabeça baixa. Não firmam o olhar, não levantam os
olhos para quem lhes pareça estranho. Têm medo. A música e
o cheiro dos cereais arredondam a aspereza desta dura vida.
Passam por várias barracas, porém a mais freqüentada é
aquela onde se encontram anúncios de oferta de trabalho.
Comendo saltena e
bebendo uma gaseosa,
nas conversas com conhecidos ficam sabendo dos melhores
lugares para trabalhar: quem está há mais tempo no Brasil
indica os locais.
Aos
poucos, silenciam as tristes músicas bolivianas, e os
imigrantes das barracas vão apagando as luzes. Eles voltam
para as paredes que os oprimem, trazendo guardados nos bolsos
novos endereços, telefones e a esperança de encontrarem
aquele trabalho que um dia lhes permitirá comprar a sua própria
máquina de costura e o seu passaporte para a liberdade
*Luiz
Bassegio é secretário nacional do Serviço Pastoral dos
Migrantes e membro do Conselho Consultivo da Rede Social de
Justiça e Direitos Humanos
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