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Relatórios


A 2a Vara da Infância e Juventude – 2a VIJ - é a instância do Poder Judiciário do Rio de Janeiro encarregada de tratar os atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes até 18 anos. Entre 1996 e 2000, foram atendidos na 2a VIJ 25.488 crianças e adolescentes, sendo 11% do gênero  feminino e 89% do gênero masculino. O envolvimento com entorpecentes atinge 36% dos atos criminosos registrados. Desse total, 23% estão inscritos no código 12 – Tráfico – e 13 foram transgressões ao artigo 16 – uso.

 

CRIANÇAS NO TRÁFICO

Considerações sobre "incluídos" e "excluídos" sociais: crianças e adolescentes no Tráfico de Drogas[1]

Jailson de Souza e Silva[2]

1. Sobre as redes sociais populares

 Dois pressupostos centrais dominam este artigo: em primeiro lugar, a crítica às representações usuais sobre os espaços populares urbanos e seus moradores; e, em segundo lugar, o reconhecimento do tráfico de drogas, em particular nas favelas cariocas, como uma rede social. No caso das representações, destaca-se aquela que denominamos "sociocêntrica". Essa lógica se caracteriza pelo uso de referências de outros setores sociais, em particular os setores médios, para se definir e estabelecer-se relações com os setores populares.

 Com isso, vai se constituindo em relação a esses o que chamamos de "discurso da ausência", caracterizado por um processo de apreensão da favela a partir do que ela não teria:

" -favela é aquele lugar que não tem acesso a serviços básicos, asfalto, escolas, postos de saúde, creches, educação, no limite não tem regras, não têm leis, é o caos, é expressão da anomia, é a ausência de direitos, de cidadania", diz o senso comum.

 A afirmação desse 'discurso da ausência" em relação aos espaços populares revela uma representação, muito comum, de que a favela não é cidade. Existe o bairro, local típico para as vivências legais e formais e existe a favela como a não-cidade, como espaço efetivo de exercício da cidadania. A partir desses pressupostos, são elaborados uma nova série de discursos. O principal deles é 'criminalizante', segundo o qual o morador da favela, em particular o jovem, é um criminoso em potencial. O CEASM, ONG criada por moradores e ex-moradores da Favela da Maré tem um corpo de dança belíssimo, o Corpo de Dança da Maré; aprovou também mais de duzentos jovens no vestibular nos últimos quatro anos. Entretanto, tornou-se comum ouvir, principalmente por parte da mídia, que se aquele/a jovem não fosse para a universidade, se não estivesse no corpo de dança ou iniciativas do gênero poderia estar no tráfico de drogas. As crianças e adolescentes das favelas, evidentemente, têm um contato maior com determinadas atividades criminosas, mas a sua como potencialmente criminosos revela, masi do que um atributo específico desse grupo social, uma lógica dominante marcada pelo economicismo, reducionismo e preconceito.

 O segundo discurso decorrente do " discurso da ausência" é o paternalista, existente, inclusive, em vários setores da esquerda. A LIGHT, companhia de energia do Rio de Janeiro, foi procurar uma determinada ONG para fazer um trabalho de prevenção dos "gatos", ligações irregulares de energia. Alguém da instituição afirmou que aqueles artifícios eram uma estratégia legítima de sobrevivência. O mesmo costuma ser dito em relação ao não pagamento da água, do IPTU, da compra de pequenos objetos roubados,  no limite, de pequenos roubos, do roubo de um carro no sinal. No discurso paternalista considera-se quer o morador dos espaços populares, em geral, é uma vítima passiva de um sistema injusto e por isso determinadas estratégias individuais seriam em tese corretas.

 Há, portanto, duas formas tradicionais de definir-se o morador dos espaços populares: ou ele é potencialmente criminoso ou é a vítima passiva de um sistema perverso. Esses raciocínios sustentam a produção de formulações e intervenções públicas limitadas e sem consistência. Um exemplo é o lugar-comum chamado "resgate da cidadania" . Ora, quando a gente fala em resgate da cidadania, significa que essa pessoa já foi cidadã e não é mais ou ela não é cidadã. Na verdade, o raciocínio deve ser outro: exatamente pelo fato dessas pessoas serem cidadãs é que elas têm que ter os seus direitos preservados e as suas obrigações coletivas exigidas. A partir do momento que ela ingressa no sistema social, é uma cidadã e por isso tem direito à saúde, educação, trabalho, dignidade.

 O problema também ocorre quando se fala da exclusão dos direitos sociais. Existe a exclusão adjetivada: do mercado de trabalho formal, da universidade, do acesso a determinados equipamentos culturais etc. O sentido usual expresso, todavia, na expressão "Exclusão Social" generaliza o que é particular, como se houvesse um mundo ideal dos incluídos, no qual todos os sujeitos sociais deveriam estar incluídos. O problema é saber qual o mundo ideal do qual está se falando. É o mundo do consumo, por exemplo? O conjunto de pessoas das redes sociais populares deveria estar incluído da mesma forma nessa rede determinada? Qual o tipo de crítica que faz-se a esse 'mundo da inclusão' quando fala-se dos "excluídos"? Fala-se de que sociedade? Há consciência de que determinadas identidades sociais são (re)produzidas nesse processo? Que a caracterização do "Nós" e dos "Outros" influencia nas práticas políticas, culturais e na dinâmica de ordenação do espaço urbano?

 Na verdade, os setores sociais populares produzem redes sociais específicas, também constitutivas da pólis, da cidade, no seu sentido político maior. O discurso da exclusão, em sua forma substantiva, deixa de reconhecer as práticas cotidianas que eles desenvolvem, as formas afirmativas presentes em sua cotidianeidade e as estratégias construídas para enfrentar os seus desafios, seus medos, as dificuldades de uma sociedade que se sustenta na exploração e na opressão da maioria da população. Abandona-se, assim, a perspectiva de reconhecimento daqueles seres sociais como sujeitos que têm proposições, estratégias, desejos, escolhas e paixões. Esse reconhecimento é um desafio fundamental.

 Essa introdução é necessária para se trabalhar a rede social do tráfico de drogas. Ela é, com efeito, uma das redes presentes nos espaços populares. E as formas de inserção nelas são plurais, reunindo variáveis econômicas, culturais, familiares, psicológicas, espaciais etc. O ingresso no tráfico, assim como o não ingresso, só podem ser interpretados levando-se em conta esse conjunto de relações sócio-espaciais complexas. Isso porque as trajetórias dos sujeitos sociais são definidas a partir das influências recíprocas de suas características subjetivas e das redes sócio-espaciais nas quais se inscrevem. Nesse sentido, a inserção em determinadas redes  – seja ela a família, a vizinhança, Igreja, escola, o bairro, a favela etc, a forma singular como se relacionam com os diversos grupos e com as próprias experiências, além dos valores fundamentais que norteiam a vida é que podem permitir uma melhor compreensão dos fatores que levam crianças e adolescentes a ingressar no tráfico de drogas.

 O tráfico constitui uma rede que oferece algumas possibilidades bastante sofisticadas de pertenciamento e não é uma forma comum de exploração do trabalho infantil; ele tem glamour. O adolescentes entra no tráfico, em geral, porque busca prestígio, virilidade, o poder de consumir, a visibilidade social. Ele não entra no tráfico para acumular, mas para ter direito ao consumo - nesse sentido, paradoxalmente, os jovens empregados nessa atividade são os mais sensíveis ao sonho de inclusão social, vista, no caso, como inclusão no mercado.

 Ali, esse adolescente tem a possibilidade de ser tratado em condições iguais aos adultos e o 'patrão' é mais justo, no plano da remuneração, do que a imensa maioria dos seus pares do mercado formal. O tráfico, portanto, é uma rede sofisticada, que envolve um conjunto de rituais, de regras, de relações profundamente abrangentes que impregnam os seus participantes. Não é casual, então, o sentimento de fraternidade, de identidade, das mais variadas formas. A devida compreensão de sua realidade e sua dinâmica é um passo necessário para a criação de práticas que permitam a ruptura de sua lógica de reprodução.

2. A rede social do tráfico de drogas:

 A 2a Vara da Infância e Juventude – 2a VIJ - é a instância do Poder Judiciário do Rio de Janeiro encarregada de tratar os atos infracionais cometidos por crianças e adolescentes até 18 anos. Entre 1996 e 2000, foram atendidos na 2a VIJ 25.488 crianças e adolescentes, sendo 11% do gênero  feminino e 89% do gênero masculino[3].

 O envolvimento com entorpecentes atinge 36% dos atos criminosos registrados. Desse total, 23% estão inscritos no código 12 – Tráfico – e 13 foram transgressões ao artigo 16 – uso. Assim, o enquadramento por uso ou tráfico de drogas já é o delito com maior percentual de registros na 2a Vara, fato que se reproduz nos atos criminosos cometidos por maiores de 18 anos, conforme informações do Ministério da Justiça. O dado que mais chama atenção, contudo, é o grau de instrução dos atendidos: cerca de 30% não informaram sua escolaridade. Dentre os 70% que a informaram, 37% tem entre 0 e 4 anos de escolaridade, metade do tempo de permanência média da população do Rio de Janeiro, em torno de 8 anos.

 O tráfico exige ação, movimento, disponibilidade, ficar "ligado" o tempo inteiro, enquanto a escola exige outro tipo de concentração, o cumprimento de tarefas ordenadas e sistemáticas, que exigem o uso de habilidades cognitivas pouco exercitadas, tradicionalmente. Assim, embora a escola seja reconhecida como positiva pelo fato de nela se aprender coisas novas, as disposições exigidas pelo tráfico dificultam a permanência, de forma regular e continuada.

 Os  dados da 2a VIJ revelam, também, uma forte concentração de adolescentes na faixa entre 15 e 17 anos envolvidos em atos criminosos. Há, assim, um aumento progressivo do número de empregados no tráfico a partir dos treze, chegando ao máximo aos 17 anos. Cabe ressaltar, todavia, que o ingresso de menores de 18 anos no tráfico de drogas foi uma das principais mudanças ocorridas, a partir dos anos 90, na dinâmica de atuação do comércio ilícito.

 Até a primeira metade daquela década, o ingresso de adolescentes não era uma estratégia comum. Dentre as principais razões para a mudança de postura destaca-se o custo menor da criança, em caso de prisão ou de extorsão da polícia. Nesse aspecto, a maioridade penal aos 18 anos termina gerando o que pode se denominado de efeito perverso: a ação efetivada para resolver um problema termina por gerar outro, de igual complexidade.

 O segundo elemento que estimula a contratação de mão-de-obra infanto-juvenil é a maior disponibilidade desta para o grupo. O adolescentes, em seu ingresso, termina embriagada pela adrenalina presente no cotidiano. Assim, ele, em geral, saboreia de forma bem mais intensa do que seus pares mais velhos a troca de tiros com a policia ou com membros de outra facção e/ou a demonstração de força com outros moradores, por exemplo.

 Não é casual, assim, que muitos deles percam a vida no primeiro ano de sua entrada no tráfico. O juízo afirmado por muitos dos empregados do tráfico de que - “quem sobrevive dois anos no tráfico, não morre mais”, embora não reflita uma verdade cabal, demonstra a necessidade de um tempo para incorporação de regras básicas de sobrevivência que os adolescentes recém-ingressos, muitas vezes, não têm tempo de adquirir.  

 No caso da cor da pele, chama atenção o forte percentual de negros e pardos no tráfico de drogas carioca; o índice, em torno de 90%, é quase o dobro de participação de ambos os grupos no total da população brasileira, aproximadamente de 45%. A maior utilização da mão-de-obra de negros e pardos no comércio varejista das drogas se combina com sua concentração nos espaços sociais populares, habitado majoritariamente por estes grupos étnicos, e com a marginalização da atividade, com uma forte presença dos integrantes dos grupos sociais com menores oportunidades de ascensão no mercado de trabalho formal.

 O sentimento de pertencimento ao grupo e a defesa do território é um aspecto característico do empregado do tráfico no Rio de Janeiro. Esse sentimento é mais forte quanto menor a idade. O desejo de fortalecer sua facção, de que esta amplie seus domínios na cidade e a afirmação de que daria a vida por ela são afirmativas típicas dos mais novos. Aqueles que estão há mais tempo na atividade tendem a relativizar mais os vínculos com o grupo. De qualquer forma, este é muito valorizado, sendo as relações ali estabelecidas são profundas e fechadas: o cotidiano é vivido com aqueles colegas, de modo integral.

 As regras cotidianas do tráfico, cabe salientar, são duras e tensas. A fluidez das posições e das situações, com efeito, faz com que aquela rede social se sustente em normas rigorosas, defendidas, no plano do discurso, por todos os empregados. Muitos entrevistados, todavia - em particular os mais velhos, afirmaram, de modo angustiado, que para sobreviver naquela rede social é fundamental "saber ouvir, saber falar, e saber enxergar".

 A capacidade de cumprir com maior competência as normas vigentes no grupo condiciona o processo de ascensão. Ser “inimigo do dinheiro”, por exemplo, é uma frase que revela a importância de não se deixar levar pela ambição e ser um bom depositário ou administrador dos valores ou produtos que estão sob a responsabilidade pessoal. A coragem e a ousadia no enfrentamento da polícia ou de outra facção é outro fator relevante para a conquista de melhores posições no grupo, além do equilíbrio e segurança no tratamento de eventuais conflitos internos - "desenrolos". 

 A forma de assalariamento e a carga-horária são diferenciadas do padrão tradicional vigente no mercado de trabalho. Nesse sentido, tem pouco significado tentar enquadrá-las nas regras que norteiam as práticas profissionais em ofícios formais ou informais. O assalariamento pode ocorrer através de um pagamento semanal fixo, de diárias, de recepção de um percentual sobre as vendas – uma forma de consignação - ou da combinação entre um pagamento fixo e a participação nas vendas. O seu valor depende do faturamento da “Boca”, que, cabe frisar, é muito diferenciado de comunidade para comunidade. As comunidades com maior faturamento são, em geral, as mais estruturadas, com maior força bélica e melhores remunerações.

 A carga-horária varia de acordo com a demanda e com a quantidade de trabalhadores empregados. A característica marcante, no entanto, é a absoluta disponibilidade para as atividades cotidianas de todos os integrantes do grupo, elemento assumido com mais radicalidade pelos mais novos. Assim, o trabalhador do tráfico não tem seu comportamento orientado pelas mesmas variáveis dos empregados em atividades formais. O que mais se aproxima destes é o vapor - venderor - e o olheiro - vigia. O primeiro só pode sair de seu posto quando vender toda a carga – lote do produto, embalado em pequenas quantidades - que está sob sua responsabilidade. Sua remuneração maior, em geral, do que a do soldado é fruto, justamente, dessa responsabilidade, além de sua exposição maior. O olheiro, da mesma forma, fica vinculado ao turno do vapor. O soldado - segurança, por sua vez, pode se divertir no baile, por exemplo, circular na comunidade, sem obrigatoriedade de estar em um posto determinado. Caso seja o segurança principal do gerente ou do dono -o Fiel, fica à sua disposição de forma integral.

 O principal fator responsável pela disponibilidade cotidiana dos trabalhadores do tráfico é sua pequena possibilidade de circulação. O ato de sair da comunidade é sempre um risco, seja em função da polícia ou do enfrentamento com grupos rivais. Assim, as saídas são preparadas com antecedência e grandes cuidados. A circulação, basicamente, é restrita às localidades nas quais o tráfico local é aliado. Ela depende, também, do grau de exposição do integrante do grupo – o quanto ele está visado pela polícia e/ou pelos outros grupos. Quanto mais tempo no tráfico, mais difícil fica a circulação nos espaços da cidade. Com isso, reforçam-se seus vínculos locais e a sua rotina. Há, portanto, uma forte tendência de afirmação de territorialidades particulares que limitam  a experiência de tempo-espaço dos jovens envolvidos diretamente no tráfico de drogas.

 


[1] Artigo elaborado a partir do Relatório de pesquisa "Crianças empregadas no tráfico de drogas: um diagnóstico ligeiro - Organização Internacional do Trabalho, Brasília, 2002.

[2] Geógrafo, professor da Universidade Federal Fluminense e Coordenador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

[3] Os dados foram arrendondados.