A
tortura é um crime imprescritível. Os torturadores,
mandantes e responsáveis pelas torturas e assassinatos não
foram condenados, nem sequer julgados ou citados em processos
criminais, a maior parte mantendo-se no anonimato até hoje.
Por que teriam, então, sido anistiados?
25
ANOS DA ANISTIA
"QUEM
CALA SOBRE TEU CORPO
CONSENTE NA TUA MORTE"
*Suzana
Keniger Lisbôa
"(...)
Inventando evasivas, alegando compromissos urgentes e inadiáveis,
muitos ainda se recusam a sentar nesta mesa política onde
serve-se o prato triturado e amargo do balanço histórico e
cobram-se as necessárias atitudes de justiça. Precisamos
voltar os olhos para o futuro, chegam a dizer certos senhores
com o cinismo habitual. A pergunta, então, poderia ser: em
que museu de nosso país estão expostos o pau-de-arara, o
choque elétrico, o magneto de telefone, a prancha, a
cadeira-do-dragão, o pênis de boi, a luz intensa, o amoníaco,
a injeção de éter, o torniquete, os socos, os pontapés, os
alicates, as roldanas? Quantos destes instrumentos
encontram-se, ainda, em nossas delegacias e presídios?
Estamos mesmo a falar do passado ou, sinceramente, de futuros
diferentes e possíveis? Lembrar os 30 anos do golpe militar
seria mesmo chover no molhado; seria chover no molhado se o
molhado não fosse sangue.(...)."
Passaram-se
10 anos desde que o deputado gaúcho Marcos Rolim, em discurso
na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul assim se
pronunciou.
Hoje,
passados 25 anos da anistia parcial que conquistamos, as seqüelas
da ditadura são muito mais profundas e difíceis do que
imaginávamos. Deixaram-nos, como herança, cidadanias
incompletas, estados refratários à participação cidadã,
impunidade de criminosos. A violência que se abate sobre nós,
seja na forma política ou do chamado crime organizado tem
suas raízes, ademais da exclusão histórica, no arbítrio,
nos crimes e na impunidade que alimenta e inspira a tortura e
os crimes ainda hoje praticados contra os miseráveis e excluídos
em nosso País.
Lutamos
por uma anistia ampla
- para todos os atos de manifestação contrários à
ditadura; geral -
para todas as vítimas dos atos de exceção e irrestrita - sem discriminações e exceções. Não foi o que
conquistamos. Aos familiares de mortos e desaparecidos políticos
e às poucas entidades que se constituíram em torno desse
tema coube a tarefa de prosseguir na busca da verdade e da
justiça, e tem sido uma luta muito difícil. Não temos mais
o apoio de muitos que nos apoiavam em 1979 e nem tampouco os
partidos assumem esta bandeira. Nos tornamos incômodos aos
que querem esquecer, inconvenientes aos que nos querem calar.
Somos uma chaga permanente, uma ferida aberta...
O
mundo se horroriza com as recentes torturas cometidas no
Iraque, mas em nosso país, há poucos anos atrás, cidadãos
brasileiros e latino-americanos foram torturados e
assassinados com requintes de crueldade por agentes do estado
brasileiro, treinados pelo governo norte-americano na arte
de torturar, matar e fazer desaparecer.
Os
nazistas decidiram cremar os corpos dos judeus para que não
pudessem ser pranteados ou homenageados - para que nada
restasse deles. Assim agiu a ditadura brasileira: aniquilou,
buscando não deixar vestígios da vida e da morte dos que
lutavam por liberdade e justiça social. Não
foram crimes cometidos nos porões, por um punhado de agentes
tresloucados - foi uma política adotada pelo estado
brasileiro que, apesar de ter instituído legalmente a pena de
morte, optou por agir fora da lei e matar sem sentença
judicial.
A
Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita foi o primeiro
movimento nacional e unificado contra a ditadura militar,
representou a maior frente política progressista da nossa
história e abriu o caminho para a redemocratização.
Mas
a anistia conquistada não foi aquela que pretendíamos - foi
parcial e restrita. E assim foi para dividir os brasileiros,
colocando-os em dois campos: os que mereciam perdão e os que
deveriam ser eternamente condenados. Foi rigoroso o controle
sobre os efeitos da lei de modo a não perder o pleno domínio
sobre aqueles que não deveriam ser anistiados.
Não havia como se fazer uma autodeclaração de
anistia, era necessário que a Justiça Militar se
pronunciasse, e esta o fazia individual e nominalmente. Assim
é que foi concedida anistia àquelas pessoas processadas
formalmente pela Justiça Militar, enquadradas na Lei de
Segurança Nacional (LSN).
Aos
que dizem que a anistia
foi para os dois lados, há que lembrar que muitos presos
políticos não foram beneficiados, permanecendo nos cárceres
até que a reformulação da LSN atenuou suas penas, sendo
soltos em liberdade condicional e vivendo nessa condição
durante muitos anos.
No
entanto, uma interpretação da lei passou a ser quase um
dogma: a de que os torturadores teriam sido anistiados, o que
não corresponde literalmente ao texto da lei. É verdade sim
que os militares que permitiram a aprovação da lei tiveram a
intenção de auto anistiar-se, mas isso não foi colocado no
papel. Não obstante a lei ter sido editada sob a vigência da
ditadura militar, os crimes praticados pelos agentes estatais
foram tão bárbaros que não havia condições políticas
para anistiá-los.
A
interpretação política da lei foi então manipulada, de
modo que, ao anistiar aquelas pessoas que cometeram crimes
conexos, estendeu-se de maneira arbitrária a idéia de que a
anistia abrangia os crimes dos torturadores, o que não é
verdade. Plantou-se a idéia de anistia recíproca, que surgiu
nos porões da ditadura, fez parte do discurso oficial dos
ditadores e
repercute até os dias de hoje. A leitura distorcida da lei
passou a fazer parte do cotidiano político
brasileiro tomando conta da opinião pública. Juristas
renomados, políticos da oposição, e até mesmo
beneficiados pelo instituto da anistia passaram a
acreditar no absurdo e difundi-lo. E se deixaram imobilizar
diante do medo e da intimidação de que estariam apostando no
retrocesso político se denunciassem a presença de
torturadores nos postos de mando, se exigissem a punição dos
torturadores ou a simples denúncia da existência de
torturadores. Não se podia - e ainda hoje não se pode -
denunciar a presença de torturadores em cargos públicos ou
exigir a apuração dos crimes de lesa-humanidade cometidos
que logo vozes poderosas invocam a anistia para não tratar do
assunto.
A
tortura é um crime imprescritível. Os torturadores,
mandantes e responsáveis pelas torturas e assassinatos não
foram condenados, nem sequer julgados ou citados em processos
criminais, a maior parte mantendo-se no anonimato até hoje.
Por que teriam, então, sido anistiados? Não pelo império da
lei, mas por uma espécie de convenção
de que a abertura política poderia retroceder se houvesse por
parte da oposição uma postura de investigação, que passou
a ser chamada de revanchista.
Como a anistia foi incompleta e inacabada, há no seu rastro muitas
outras pendências além dessa questão e dos mortos e
desaparecidos políticos, que são as aposentadorias não
obtidas e indenizações não efetivadas. Houve necessidade de
outras legislações que vêm atendendo, a conta-gotas, as
reivindicações, seja com as simbólicas indenizações dadas
em alguns estados, seja a nível federal com a constituição
da Comissão da Anistia, através da lei 10.559, de 2002.
A idéia de reparação, a partir da anistia, vem sendo construída num
caminho tortuoso, onde a verdade e a justiça têm sido
relegadas a um plano secundário, ou mesmo ignoradas. Nenhum
pedido oficial de perdão à Nação ou de reconhecimento
pleno e total sobre a responsabilidade do Estado nas torturas,
mortes e desaparecimentos ocorreu até hoje, ao contrário dos
nossos vizinhos no Cone Sul.
No Chile, o presidente Patrício Alwin ocupou o Estádio Nacional - símbolo
da repressão política de Pinochet - para, em nome do Estado,
desculpar-se perante a nação pelos horrores cometidos por
Pinochet. Na Argentina, o comandante do Exército demonstrou
arrependimento pelos desatinos praticados, alguns dos
principais torturadores foram presos e sofrem processos, a
justiça aos criminosos é buscada paulatinamente e o governo
se envolve efetivamente na busca dos corpos.
No Brasil, a prática da tortura tem sido admitida por oficiais das
diferentes armas, mas somente como ação isolada de uns
poucos desequilibrados e não como política de Estado.
A construção da democracia ainda não possibilitou que as Forças
Armadas brasileiras assumissem sua responsabilidade nos
excessos promovidos a partir de 1964. Pelo contrário, os
militares ou não falam sobre o assunto ou, quando falam,
negam os fatos, referem-se a excessos de ambos os lados e
tampouco expressam arrependimento.
Para
os familiares de mortos e desaparecidos, a promulgação da
lei da anistia marcou a perda definitiva de seus parentes. A
anistia conquistada trouxe ao país os presos políticos,
exilados e clandestinos, mas os mortos e desaparecidos não
voltaram sequer na forma de um atestado de óbito.
Aos
desaparecidos políticos, a anistia da ditadura acenava com o
fornecimento de um atestado de morte
presumida. No dia da votação da lei no Congresso
Nacional, apresentávamos à Nação a descoberta do corpo do
primeiro desaparecido político: Luiz Eurico Tejera Lisbôa,
guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), que fora
enterrado como indigente e com nome falso no Cemitério Don
Bosco, em Perus. Após a denúncia, surgiu a versão oficial
de suicídio e 25 anos depois as circunstâncias de sua morte
ainda são desconhecidas.
Nesses
25 anos, apenas outros dois corpos de desaparecidos políticos
foram resgatados e entregues aos familiares para sepultamento:
Denis Casemiro, resgatado da vala clandestina do Cemitério de
Perus e Maria Lucia Petit da Silva, desaparecida na Guerrilha
do Araguaia e resgatada do cemitério de Xambioá.
Conseguiu-se informações
acerca do local de sepultamento de alguns outros
desaparecidos, sem poder resgatar seus corpos, ou porque os
agentes da ditadura desapareceram com eles novamente, ou
porque as sepulturas não foram exatamente apontadas por
desconhecimento ou modificações nos terrenos, ou ainda por não
termos podido identificar os corpos que foram para as valas
clandestinas do cemitérios de Perus, em São Paulo; do cemitério
Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro; ou no cemitério de
Santo Amaro, em Recife. Há ainda os desaparecidos na
Guerrilha do Araguaia, que somam cerca da metade da cifra
total. Diversas expedições de busca dos corpos foram feitas
na área, sem êxito. Exumamos e identificamos alguns mortos
oficiais cujos corpos não tinham sido entregues aos
familiares, restando outros a serem localizados e
identificados.
Se o objetivo do governo era aprovar a anistia para sedimentar o
esquecimento, ocorreu justamente o contrário - para os
familiares e amigos dos mortos e desaparecidos políticos o
ato de lembrar ficou mais forte - todos voltaram, os mortos e
desaparecidos não.
Vinte
e cinco anos depois da anistia, 40 anos depois do golpe
militar e o número total de vítimas ainda é desconhecido,
com novos casos ainda sob exame. Computa-se, por enquanto, um
macabro rastro de cerca de 220 mortos e 160 desaparecidos políticos,
que ironicamente, muitos afirmam ser pouco.
A
luta dos familiares iniciou-se ainda na primeira metade dos
anos 70 e tornou-se mais intensa quando cresceu o número de
desaparecidos, a partir do final do ano de 1973 e durante o
ano de 1974, ano em que não houve vítimas oficiais
- todos foram desaparecidos.
Desgastada
politicamente e alarmada com a caótica situação de sua política
econômica, a ditadura se lançara em uma chamada abertura
democrática sob os auspícios do então presidente,
general Ernesto Geisel. Dizia Geisel que não havia mais
repressão política, porque dizimada estava a chamada subversão.
Em compensação, todos os presos, torturados e assassinados
durante o ano de 1974 até outubro de 1975 foram
desaparecidos.
“(...) esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que
ser (...)”,
afirmou Geisel ao general Dale Coutinho, que viria a ser
seu ministro do Exército, pouco antes de assumir a presidência.
A
ditadura montou extensa malha para ocultação dos corpos,
envolvendo os órgãos repressivos, seus agentes mais confiáveis,
os institutos médico-legais e os cemitérios. Matavam
oficialmente e divulgavam em notas oficiais suas versões, e
enterravam com nome falso para que os familiares não tivessem
acesso ao corpo e pudessem constatar as torturas. Isso quando
a ordem não era para desaparecer com os corpos - não deixar
vestígios...
Em
1995 conquistamos
a Lei 9140, quando o governo reconheceu a morte de 136
desaparecidos e criou uma Comissão Especial para exame de outros casos. Apesar de não atender às reivindicações
dos familiares, foi o primeiro passo no resgate da História e
da memória daqueles que tiveram a ousadia de lutar e que
deram suas vidas pela liberdade.
Após
exaustivas reuniões com o governo na tentativa de ampliar o
projeto e seu alcance, estendendo-o a todos os mortos e
desaparecidos de 1964 a 1985, os familiares e entidades afins
aceitaram participar da comissão a ser constituída, mas
deixando claro que a luta não se encerrava com a Lei 9.140.
Avançamos
na questão da exclusão com a lei 10.785 de 2004, que amplia
os critérios de abrangência, mas avançamos pouco na busca
da verdade e nossas principais críticas à lei 9.140
permanecem.
As
principais reivindicações dos familiares de mortos e
desaparecidos políticos continuam sendo as mesmas da época
da aprovação da anistia: o esclarecimento circunstancial das
mortes e desaparecimentos; localização, identificação e
entrega dos restos mortais e a punição dos responsáveis.
O
Estado reconheceu que matou, mas não se propõe a dizer como,
nem indica onde estão corpos, cabendo o ônus da prova aos
familiares, que devem também apresentar indícios de onde estão
enterrados os desaparecidos. É quase incrível: o Estado
matou e desapareceu com os corpos e os familiares têm que
fornecer pistas de onde foram enterrados! Os atestados de óbito
dos desaparecidos são um escárnio: não contém data, local
de sepultamento ou causa
mortis, afirmando apenas o ano em que o desaparecido
morreu. O Estado parece imaginar que assim se exime da obrigação
de identificar e responsabilizar os agentes que estiveram
envolvidos com a prática da tortura, mortes e
desaparecimentos.
As
leis e os governos têm tratado a questão dos mortos e
desaparecidos como se fosse, unicamente, um problema dos
familiares, e essa não é uma questão humanitária que
envolva familiares e governo, mas sim um dever do Estado e um
direito de toda a sociedade. O reparo moral exige a revisão
das versões oficiais e esta deveria ser a tônica das decisões
governamentais. Deveria ser, mas infelizmente ainda não é.
Aos
familiares coube a árdua, extenuante e desesperadora tarefa
de buscar, nos poucos arquivos que nos foram franqueados, as
provas para contestar as versões de suicídios, atropelamentos
e tiroteios.
Percorremos um longo e doloroso caminho para nos aproximar da
verdade histórica e rebater as versões oficiais.
Solitariamente, temos analisado documentos, laudos periciais e
necroscópicos, tentando extrair, com lentes e lupas, as
marcas de tortura nos rostos crispados pela morte, assumindo,
enfim, o estranho e fundamental papel de reescrever a
História de nossos familiares e de nosso País.
Dolorosamente, reunimos provas, indícios e evidências que
desmontaram as versões oficiais e conseguimos provar por 130
vezes que a ditadura mentiu em suas versões de suicídios,
atropelamentos e tiroteios.
Em
1982, familiares de desaparecidos políticos da Guerrilha do
Araguaia ajuizaram ação contra a União para que fossem
indicadas as sepulturas de seus familiares, lavrados os
atestados de óbito e para que fosse apresentado relatório
oficial do Ministério da Guerra acerca das atividades
militares na região.
A
ditadura militar contestou a ação, alegando não haver
provas dos confrontos, e sequer da presença dos
guerrilheiros, muito menos de suas mortes. Após 21 anos de
recursos consecutivos da União, a juíza Solange Salgado
proferiu memorável sentença em 2003, reconhecendo o direito
dos familiares, determinando a quebra de sigilo das informações
militares relativas a todas as operações realizadas no
combate à Guerrilha do Araguaia, com prazo para que fosse
informado o local de sepultamento dos desaparecidos.
Determinou, ainda, que fossem intimados a prestar depoimento
todos os agentes militares que tivessem participado de
quaisquer das operações, independente dos cargos ocupados à
época.
Comemoramos
imensamente essa conquista e essa vitória.
A decisão da juíza Solange Salgado nos encheu de esperança. Iniciamos uma mobilização junto ao governo na certeza de
estarmos apenas contribuindo, já que integrantes do governo
e, em especial, os ministros afetos ao tema, se pronunciaram
contra o recurso. Mas essa não foi a decisão tomada pelo
presidente da República e o governo recorreu da sentença. E,
estranhamente, a advocacia geral da União repetiu, em seu
recurso, os argumentos da ditadura militar.
O
governo reconheceu o direito dos parentes de localizar os
corpos dos guerrilheiros, mas afirmou que a juíza teria
ordenado algo além do que fora pedido.
Extraio
alguns trechos do recurso da União que machucam, que ofendem
aos que lutaram e lutam:
"(...) Também há notícia de que guerrilheiros foram enterrados
pelos próprios companheiros. (...) Foi noticiado, além
disso, que vários guerrilheiros teriam morrido de doenças e
até de fome. (...) Já sem poder estabelecer contatos com os
sítios de posseiros dentro da mata, os guerrilheiros passaram
a ficar sem alimentos e remédios e com isso se tornaram mais
expostos às adversidades do meio. Embora a maioria deles
tenha sido morta em combate, vários morreram de doenças –
sobretudo malária e leishmaniose – ou de fome (...)."
Quem
morreu de malária ou de fome? Quem foi enterrado pelos
companheiros? Quais dos cerca de 70 guerrilheiros
desaparecidos não foi preso e torturado até a morte? Tem o
advogado geral da União conhecimento de algum caso concreto?
Como ousa fazer suposições de tal natureza sem qualquer
base? Ou estaria o advogado geral da União sonegando informações
aos familiares? Buscamos a verdade, não evasivas ou
conjeturas.
Em
carta aberta ao Presidente da República, manifestamos nossa
indignação e revolta. A seguir, o governo criou uma comissão
interministerial para obter informações que pudessem levar
à localização dos restos mortais dos guerrilheiros do
Araguaia. Os familiares e entidades subscreveram nova nota pública
em protesto. Até o momento nenhum dado foi divulgado.
A
ampliação da lei 9140 nos permitiu corrigir injustiças e
aprovar casos anteriormente rejeitados, mas não nos trouxe a
verdade e a justiça que buscamos.
Todas
essas questões, que durante anos ficaram submersas, sufocadas
sob a pecha da morbidez e o pretexto de evitar discursos
revanchistas são, na realidade, fatores determinantes para
que a impunidade e a violência sejam, hoje, marca registrada
de um país que convive com o extermínio oficial e anônimo
de marginalizados e um cotidiano com tortura, muitas vezes
praticada pelos mesmos elementos que a utilizaram na época da
ditadura.
Dalmo Dallari, em artigo publicado no livro Mortos
e Desaparecidos Políticos: Reparação ou Impunidade, organizado por Janaína Teles, afirmou:
“(...)
Agora vivemos numa situação nova. Estão recuperadas no
Brasil a liberdade de expressão e a possibilidade de
responsabilizar juridicamente todos os criminosos. E começa a
ser revelada a identidade dos torturadores. É tempo de
considerar a validade e o alcance da anistia concedida em
1979, que vem sendo invocada como obstáculo para sua punição.
Um
ponto, desde logo, pode ser deixado absolutamente claro: os
torturadores homicidas, aqueles que mataram suas vítimas,
nunca foram anistiados, não podendo se esconder atrás da Lei
da Anistia para fugir à punição. A própria Constituição
impedia que eles fossem anistiados.
Com
efeito, a Lei da Anistia, lei 6.683, de 28 de agosto de 1979,
foi editada quando vigorava, no Brasil, formalmente, a
Constituição de 1967, com a nova redação que lhe deu a
Emenda Constitucional n.º 1, de 1969. Essa Constituição
estabelecia expressamente, no artigo 153, que os crimes
dolosos, intencionais, contra a vida seriam julgados pelo
Tribunal do Júri.
É
ponto pacífico, entre os doutrinadores e na jurisprudência
dos tribunais, que não tem validade jurídica uma disposição
de lei que contrarie a Constituição. A anistia de 1979 foi
concedida por meio de lei ordinária, segundo a qual não
seriam punidos os que tivessem cometido crimes políticos ou
conexos com este.
Sem
necessidade de maiores considerações ou de análise
aprofundada, pode-se afirmar, desde logo, que os dispositivos
da Lei da Anistia não podem prevalecer contra a Constituição.
Como existia norma constitucional determinando que os crimes
dolosos contra a vida fossem submetidos ao Tribunal do Júri,
uma lei ordinária não poderia tirar desse Tribunal a competência
para o julgamento desses crimes.
Os
torturadores que mataram suas vítimas cometeram homicídio,
que é crime doloso contra a vida. Eles não foram obrigados a
torturar e, muitas vezes, por vontade própria, impuseram às
vítimas um sofrimento que, por natureza e intensidade,
levaria à morte qualquer pessoa normal. Além disso, os
torturadores eram servidores públicos civis ou militares que
agiam profissionalmente, mediante remuneração, não podendo
alegar objetivos políticos. O crime por eles praticado é autônomo
em relação ao crime político praticado pelos dirigentes. Se
algum deles quiser sustentar que agiu sob coação deverá
esclarecer quem deu a ordem para que torturassem, e o Tribunal
do Júri decidirá se a prova dessa alegação é convincente.
Os
torturadores homicidas, e possivelmente outros, nunca foram
anistiados. Agora existem condições para que eles sejam
submetidos a julgamento público e imparcial, com a garantia
de que não serão torturados para confessar e de que terão
plenamente assegurado o direito de defesa. É hora de fazer
justiça (...)."
O
jornalista Mário Magalhães, em artigo publicado na Folha de
S. Paulo, em 12 de julho do corrente, sob o título "Anistia
e tortura: uma ferida purulenta", diz:
"(...) Um bom começo é a releitura da lei 6.683, de agosto de
1979. Convencionou-se em círculos amplos interpreta que teria
ocorrido um perdão de mão dupla: anistiavam-se os punidos
por crimes políticos de 1961 a 1979, bem como os agentes do
Estado que houvessem cometido violência de toda espécie
contra aqueles.
Estes estariam abrigados no chapéu dos ”crimes
conexos", assim definidos: "crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política". Nenhum dos 15 artigos, contudo,
fala em tortura.
Seria difícil: a anistia beneficiou quem foi condenado ou punido de
algum modo. Ignora-se a existência de torturadores
processados e castigados na Justiça devido aos flagelos físicos
a que submeteram prisioneiros.
A anistia foi concedida individualmente. Não se tem notícia
de quem tenha pronunciado seu próprio nome, assumido que
amarrou seres humanos no pau-de-arara, seviciou-os com choques
elétricos, matou-os a pauladas, sumiu com seus cadáveres, e
tenha requerido perdão legal. Não há acusação e punição,
inexiste anistia (...)."
Esta
ainda é a nossa luta. 25 anos depois, reafirmamos o teor do
Manifesto do II Congresso Nacional de Anistia, realizado em
Salvador, em novembro de 1979:
"(...) Todos esses crimes hão de ser julgados. Julgados pela opinião
pública nacional e internacional, julgados pela consciência
democrática do País, julgados pelo povo brasileiro. As prisões,
as torturas, os desaparecimentos e os assassinatos não ficarão
impunes. A conquista da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita não
permitirá que uma única gota de sangue tenha sido derramada
em vão (...)."
E
acrescentamos: a verdadeira democracia não será construída
sobre os cadáveres insepultos dos combatentes assassinados e
sob a mão impune dos seus assassinos. Sobrevivemos para lutar, para impedir o esquecimento e a
impunidade, para resgatar suas vidas e suas histórias, para
dizer nunca mais!
Nossos mortos clamam e exigem Justiça - para que não se
esqueça, para que nunca mais aconteça!
*Suzana
Keniger Lisboa é membro da Comissão de Familiares de Mortos
e Desaparecidos Políticos.
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