| A
                  tortura é um crime imprescritível. Os torturadores,
                  mandantes e responsáveis pelas torturas e assassinatos não
                  foram condenados, nem sequer julgados ou citados em processos
                  criminais, a maior parte mantendo-se no anonimato até hoje.
                  Por que teriam, então, sido anistiados?
  
                  
                   25
                  ANOS DA ANISTIA
                  
                   "QUEM
                  CALA SOBRE TEU CORPOCONSENTE NA TUA MORTE"
 *Suzana
                  Keniger Lisbôa 
                  
                   
                  
                    "(...)
                  Inventando evasivas, alegando compromissos urgentes e inadiáveis,
                  muitos ainda se recusam a sentar nesta mesa política onde
                  serve-se o prato triturado e amargo do balanço histórico e
                  cobram-se as necessárias atitudes de justiça. Precisamos
                  voltar os olhos para o futuro, chegam a dizer certos senhores
                  com o cinismo habitual. A pergunta, então, poderia ser: em
                  que museu de nosso país estão expostos o pau-de-arara, o
                  choque elétrico, o magneto de telefone, a prancha, a
                  cadeira-do-dragão, o pênis de boi, a luz intensa, o amoníaco,
                  a injeção de éter, o torniquete, os socos, os pontapés, os
                  alicates, as roldanas? Quantos destes instrumentos
                  encontram-se, ainda, em nossas delegacias e presídios?
                  Estamos mesmo a falar do passado ou, sinceramente, de futuros
                  diferentes e possíveis? Lembrar os 30 anos do golpe militar
                  seria mesmo chover no molhado; seria chover no molhado se o
                  molhado não fosse sangue.(...)." 
                  
                    Passaram-se
                  10 anos desde que o deputado gaúcho Marcos Rolim, em discurso
                  na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul assim se
                  pronunciou.
                  
                    Hoje,
                  passados 25 anos da anistia parcial que conquistamos, as seqüelas
                  da ditadura são muito mais profundas e difíceis do que
                  imaginávamos. Deixaram-nos, como herança, cidadanias
                  incompletas, estados refratários à participação cidadã,
                  impunidade de criminosos. A violência que se abate sobre nós,
                  seja na forma política ou do chamado crime organizado tem
                  suas raízes, ademais da exclusão histórica, no arbítrio,
                  nos crimes e na impunidade que alimenta e inspira a tortura e
                  os crimes ainda hoje praticados contra os miseráveis e excluídos
                  em nosso País. 
                  
                    Lutamos
                  por uma anistia ampla
                  - para todos os atos de manifestação contrários à
                  ditadura; geral -
                  para todas as vítimas dos atos de exceção e irrestrita - sem discriminações e exceções. Não foi o que
                  conquistamos. Aos familiares de mortos e desaparecidos políticos
                  e às poucas entidades que se constituíram em torno desse
                  tema coube a tarefa de prosseguir na busca da verdade e da
                  justiça, e tem sido uma luta muito difícil. Não temos mais
                  o apoio de muitos que nos apoiavam em 1979 e nem tampouco os
                  partidos assumem esta bandeira. Nos tornamos incômodos aos
                  que querem esquecer, inconvenientes aos que nos querem calar.
                  Somos uma chaga permanente, uma ferida aberta... 
                  
                    O
                  mundo se horroriza com as recentes torturas cometidas no
                  Iraque, mas em nosso país, há poucos anos atrás, cidadãos
                  brasileiros e latino-americanos foram torturados e
                  assassinados com requintes de crueldade por agentes do estado
                  brasileiro, treinados pelo governo norte-americano na arte
                  de torturar, matar e fazer desaparecer. 
                  
                    Os
                  nazistas decidiram cremar os corpos dos judeus para que não
                  pudessem ser pranteados ou homenageados - para que nada
                  restasse deles. Assim agiu a ditadura brasileira: aniquilou,
                  buscando não deixar vestígios da vida e da morte dos que
                  lutavam por liberdade e justiça social. Não
                  foram crimes cometidos nos porões, por um punhado de agentes
                  tresloucados - foi uma política adotada pelo estado
                  brasileiro que, apesar de ter instituído legalmente a pena de
                  morte, optou por agir fora da lei e matar sem sentença
                  judicial.
                  
                    A
                  Campanha pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita foi o primeiro
                  movimento nacional e unificado contra a ditadura militar,
                  representou a maior frente política progressista da nossa
                  história e abriu o caminho para a redemocratização. 
                  
                    Mas
                  a anistia conquistada não foi aquela que pretendíamos - foi
                  parcial e restrita. E assim foi para dividir os brasileiros,
                  colocando-os em dois campos: os que mereciam perdão e os que
                  deveriam ser eternamente condenados. Foi rigoroso o controle
                  sobre os efeitos da lei de modo a não perder o pleno domínio
                  sobre aqueles que não deveriam ser anistiados. 
                  Não havia como se fazer uma autodeclaração de
                  anistia, era necessário que a Justiça Militar se
                  pronunciasse, e esta o fazia individual e nominalmente. Assim
                  é que foi concedida anistia àquelas pessoas processadas
                  formalmente pela Justiça Militar, enquadradas na Lei de
                  Segurança Nacional (LSN). 
                  
                    Aos
                  que dizem que a anistia
                  foi para os dois lados, há que lembrar que muitos presos
                  políticos não foram beneficiados, permanecendo nos cárceres
                  até que a reformulação da LSN atenuou suas penas, sendo
                  soltos em liberdade condicional e vivendo nessa condição
                  durante muitos anos. 
                  
                    No
                  entanto, uma interpretação da lei passou a ser quase um
                  dogma: a de que os torturadores teriam sido anistiados, o que
                  não corresponde literalmente ao texto da lei. É verdade sim
                  que os militares que permitiram a aprovação da lei tiveram a
                  intenção de auto anistiar-se, mas isso não foi colocado no
                  papel. Não obstante a lei ter sido editada sob a vigência da
                  ditadura militar, os crimes praticados pelos agentes estatais
                  foram tão bárbaros que não havia condições políticas
                  para anistiá-los. 
                  
                    A
                  interpretação política da lei foi então manipulada, de
                  modo que, ao anistiar aquelas pessoas que cometeram crimes
                  conexos, estendeu-se de maneira arbitrária a idéia de que a
                  anistia abrangia os crimes dos torturadores, o que não é
                  verdade. Plantou-se a idéia de anistia recíproca, que surgiu
                  nos porões da ditadura, fez parte do discurso oficial dos
                  ditadores  e
                  repercute até os dias de hoje. A leitura distorcida da lei
                  passou a fazer parte do cotidiano político
                  brasileiro tomando conta da opinião pública. Juristas
                  renomados, políticos da oposição, e até mesmo 
                  beneficiados pelo instituto da anistia passaram a
                  acreditar no absurdo e difundi-lo. E se deixaram imobilizar
                  diante do medo e da intimidação de que estariam apostando no
                  retrocesso político se denunciassem a presença de
                  torturadores nos postos de mando, se exigissem a punição dos
                  torturadores ou a simples denúncia da existência de
                  torturadores. Não se podia - e ainda hoje não se pode -
                  denunciar a presença de torturadores em cargos públicos ou
                  exigir a apuração dos crimes de lesa-humanidade cometidos
                  que logo vozes poderosas invocam a anistia para não tratar do
                  assunto.
                  
                    A
                  tortura é um crime imprescritível. Os torturadores,
                  mandantes e responsáveis pelas torturas e assassinatos não
                  foram condenados, nem sequer julgados ou citados em processos
                  criminais, a maior parte mantendo-se no anonimato até hoje.
                  Por que teriam, então, sido anistiados? Não pelo império da
                  lei, mas por uma espécie de convenção
                  de que a abertura política poderia retroceder se houvesse por
                  parte da oposição uma postura de investigação, que passou
                  a ser chamada de revanchista. 
                  
                    Como a anistia foi incompleta e inacabada, há no seu rastro muitas
                  outras pendências além dessa questão e dos mortos e
                  desaparecidos políticos, que são as aposentadorias não
                  obtidas e indenizações não efetivadas. Houve necessidade de
                  outras legislações que vêm atendendo, a conta-gotas, as
                  reivindicações, seja com as simbólicas indenizações dadas
                  em alguns estados, seja a nível federal com a constituição
                  da Comissão da Anistia, através da lei 10.559, de 2002. 
                  
                    A idéia de reparação, a partir da anistia, vem sendo construída num
                  caminho tortuoso, onde a verdade e a justiça têm sido
                  relegadas a um plano secundário, ou mesmo ignoradas. Nenhum
                  pedido oficial de perdão à Nação ou de reconhecimento
                  pleno e total sobre a responsabilidade do Estado nas torturas,
                  mortes e desaparecimentos ocorreu até hoje, ao contrário dos
                  nossos vizinhos no Cone Sul. 
                  
                    No Chile, o presidente Patrício Alwin ocupou o Estádio Nacional - símbolo
                  da repressão política de Pinochet - para, em nome do Estado,
                  desculpar-se perante a nação pelos horrores cometidos por
                  Pinochet. Na Argentina, o comandante do Exército demonstrou
                  arrependimento pelos desatinos praticados, alguns dos
                  principais torturadores foram presos e sofrem processos, a
                  justiça aos criminosos é buscada paulatinamente e o governo
                  se envolve efetivamente na busca dos corpos.
                  
                  
                    No Brasil, a prática da tortura tem sido admitida por oficiais das
                  diferentes armas, mas somente como ação isolada de uns
                  poucos desequilibrados e não como política de Estado.
                  
                    A construção da democracia ainda não possibilitou que as Forças
                  Armadas brasileiras assumissem sua responsabilidade nos
                  excessos promovidos a partir de 1964. Pelo contrário, os
                  militares ou não falam sobre o assunto ou, quando falam,
                  negam os fatos, referem-se a excessos de ambos os lados e
                  tampouco expressam arrependimento. 
                  
                    Para
                  os familiares de mortos e desaparecidos, a promulgação da
                  lei da anistia marcou a perda definitiva de seus parentes. A
                  anistia conquistada trouxe ao país os presos políticos,
                  exilados e clandestinos, mas os mortos e desaparecidos não
                  voltaram sequer na forma de um atestado de óbito. 
                  
                    Aos
                  desaparecidos políticos, a anistia da ditadura acenava com o
                  fornecimento de um atestado de morte
                  presumida. No dia da votação da lei no Congresso
                  Nacional, apresentávamos à Nação a descoberta do corpo do
                  primeiro desaparecido político: Luiz Eurico Tejera Lisbôa,
                  guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), que fora
                  enterrado como indigente e com nome falso no Cemitério Don
                  Bosco, em Perus. Após a denúncia, surgiu a versão oficial
                  de suicídio e 25 anos depois as circunstâncias de sua morte
                  ainda são desconhecidas. 
                  
                    Nesses
                  25 anos, apenas outros dois corpos de desaparecidos políticos
                  foram resgatados e entregues aos familiares para sepultamento:
                  Denis Casemiro, resgatado da vala clandestina do Cemitério de
                  Perus e Maria Lucia Petit da Silva, desaparecida na Guerrilha
                  do Araguaia e resgatada do cemitério de Xambioá.
                  Conseguiu-se informações 
                  acerca do local de sepultamento de alguns outros
                  desaparecidos, sem poder resgatar seus corpos, ou porque os
                  agentes da ditadura desapareceram com eles novamente, ou
                  porque as sepulturas não foram exatamente apontadas por
                  desconhecimento ou modificações nos terrenos, ou ainda por não
                  termos podido identificar os corpos que foram para as valas
                  clandestinas do cemitérios de Perus, em São Paulo; do cemitério
                  Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro; ou no cemitério de
                  Santo Amaro, em Recife. Há ainda os desaparecidos na
                  Guerrilha do Araguaia, que somam cerca da metade da cifra
                  total. Diversas expedições de busca dos corpos foram feitas
                  na área, sem êxito. Exumamos e identificamos alguns mortos
                  oficiais cujos corpos não tinham sido entregues aos
                  familiares, restando outros a serem localizados e
                  identificados. 
                  
                    Se o objetivo do governo era aprovar a anistia para sedimentar o
                  esquecimento, ocorreu justamente o contrário - para os
                  familiares e amigos dos mortos e desaparecidos políticos o
                  ato de lembrar ficou mais forte - todos voltaram, os mortos e
                  desaparecidos não. 
                  
                    Vinte
                  e cinco anos depois da anistia, 40 anos depois do golpe
                  militar e o número total de vítimas ainda é desconhecido,
                  com novos casos ainda sob exame. Computa-se, por enquanto, um
                  macabro rastro de cerca de 220 mortos e 160 desaparecidos políticos,
                  que ironicamente, muitos afirmam ser pouco. 
                  
                  
                    A
                  luta dos familiares iniciou-se ainda na primeira metade dos
                  anos 70 e tornou-se mais intensa quando cresceu o número de
                  desaparecidos, a partir do final do ano de 1973 e durante o
                  ano de 1974, ano em que não houve vítimas oficiais 
                  - todos foram  desaparecidos.
                  
                    Desgastada
                  politicamente e alarmada com a caótica situação de sua política
                  econômica, a ditadura se lançara em uma chamada abertura
                  democrática sob os auspícios do então presidente,
                  general Ernesto Geisel. Dizia Geisel que não havia mais
                  repressão política, porque dizimada estava a chamada subversão.
                  Em compensação, todos os presos, torturados e assassinados
                  durante o ano de 1974 até outubro de 1975 foram
                  desaparecidos.
                  
                    “(...) esse troço de matar é uma barbaridade, mas acho que tem que
                  ser (...)”,
                  afirmou Geisel ao general Dale Coutinho, que viria a ser
                  seu ministro do Exército, pouco antes de assumir a presidência.
                  
                  
                    A
                  ditadura montou extensa malha para ocultação dos corpos,
                  envolvendo os órgãos repressivos, seus agentes mais confiáveis,
                  os institutos médico-legais e os cemitérios. Matavam
                  oficialmente e divulgavam em notas oficiais suas versões, e
                  enterravam com nome falso para que os familiares não tivessem
                  acesso ao corpo e pudessem constatar as torturas. Isso quando
                  a ordem não era para desaparecer com os corpos - não deixar
                  vestígios...
                  
                    Em
                  1995  conquistamos
                  a  Lei 9140, quando o governo reconheceu a morte de 136
                  desaparecidos e criou uma Comissão Especial para  exame de outros casos. Apesar de não atender às reivindicações
                  dos familiares, foi o primeiro passo no resgate da História e
                  da memória daqueles que tiveram a ousadia de lutar e que
                  deram suas vidas pela liberdade.
                  
                    Após
                  exaustivas reuniões com o governo na tentativa de ampliar o
                  projeto e seu alcance, estendendo-o a todos os mortos e
                  desaparecidos de 1964 a 1985, os familiares e entidades afins
                  aceitaram participar da comissão a ser constituída, mas
                  deixando claro que a luta não se encerrava com a Lei 9.140. 
                  
                    Avançamos
                  na questão da exclusão com a lei 10.785 de 2004, que amplia
                  os critérios de abrangência, mas avançamos pouco na busca
                  da verdade e nossas principais críticas à lei 9.140
                  permanecem. 
                  
                    As
                  principais reivindicações dos familiares de mortos e
                  desaparecidos políticos continuam sendo as mesmas da época
                  da aprovação da anistia: o esclarecimento circunstancial das
                  mortes e desaparecimentos; localização, identificação e
                  entrega dos restos mortais e a punição dos responsáveis.
                  
                    O
                  Estado reconheceu que matou, mas não se propõe a dizer como,
                  nem indica onde estão corpos, cabendo o ônus da prova aos
                  familiares, que devem também apresentar indícios de onde estão
                  enterrados os desaparecidos. É quase incrível: o Estado
                  matou e desapareceu com os corpos e os familiares têm que
                  fornecer pistas de onde foram enterrados! Os atestados de óbito
                  dos desaparecidos são um escárnio: não contém data, local
                  de sepultamento ou causa
                  mortis, afirmando apenas o ano em que o desaparecido
                  morreu. O Estado parece imaginar que assim se exime da obrigação
                  de identificar e responsabilizar os agentes que estiveram
                  envolvidos com a prática da tortura, mortes e
                  desaparecimentos. 
                  
                    As
                  leis e os governos têm tratado a questão dos mortos e
                  desaparecidos como se fosse, unicamente, um problema dos
                  familiares, e essa não é uma questão humanitária que
                  envolva familiares e governo, mas sim um dever do Estado e um
                  direito de toda a sociedade. O reparo moral exige a revisão
                  das versões oficiais e esta deveria ser a tônica das decisões
                  governamentais. Deveria ser, mas infelizmente ainda não é.
                  
                    Aos
                  familiares coube a árdua, extenuante e desesperadora tarefa
                  de buscar, nos poucos arquivos que nos foram franqueados, as
                  provas para contestar as versões de suicídios, atropelamentos
                  e tiroteios.
                  Percorremos um longo e doloroso caminho para nos aproximar da
                  verdade histórica e rebater as versões oficiais.
                  Solitariamente, temos analisado documentos, laudos periciais e
                  necroscópicos, tentando extrair, com lentes e lupas, as
                  marcas de tortura nos rostos crispados pela morte, assumindo,
                  enfim, o estranho e fundamental papel de reescrever a 
                  História de nossos familiares e de nosso País.
                  Dolorosamente, reunimos provas, indícios e evidências que
                  desmontaram as versões oficiais e conseguimos provar por 130
                  vezes que a ditadura mentiu em suas versões de suicídios,
                  atropelamentos e tiroteios. 
                  
                    Em
                  1982, familiares de desaparecidos políticos da Guerrilha do
                  Araguaia ajuizaram ação contra a União para que fossem
                  indicadas as sepulturas de seus familiares, lavrados os
                  atestados de óbito e para que fosse apresentado relatório
                  oficial do Ministério da Guerra acerca das atividades
                  militares na região.
                  
                    A
                  ditadura militar contestou a ação, alegando não haver
                  provas dos confrontos, e sequer da presença dos
                  guerrilheiros, muito menos de suas mortes. Após 21 anos de
                  recursos consecutivos da União, a juíza Solange Salgado
                  proferiu memorável sentença em 2003, reconhecendo o direito
                  dos familiares, determinando a quebra de sigilo das informações
                  militares relativas a todas as operações realizadas no
                  combate à Guerrilha do Araguaia, com prazo para que fosse
                  informado o local de sepultamento dos desaparecidos.
                  Determinou, ainda, que fossem intimados a prestar depoimento
                  todos os agentes militares que tivessem participado de
                  quaisquer das operações, independente dos cargos ocupados à
                  época.
                  
                    Comemoramos
                  imensamente essa conquista e essa vitória.
                  A decisão da juíza Solange Salgado nos encheu de esperança. Iniciamos uma mobilização junto ao governo na certeza de
                  estarmos apenas contribuindo, já que integrantes do governo
                  e, em especial, os ministros afetos ao tema, se pronunciaram
                  contra o recurso. Mas essa não foi a decisão tomada pelo
                  presidente da República e o governo recorreu da sentença. E,
                  estranhamente, a advocacia geral da União repetiu, em seu
                  recurso, os argumentos da ditadura militar.
                  
                    O
                  governo reconheceu o direito dos parentes de localizar os
                  corpos dos guerrilheiros, mas afirmou que a juíza teria
                  ordenado algo além do que fora pedido.
                  
                    Extraio
                  alguns trechos do recurso da União que machucam, que ofendem
                  aos que lutaram e lutam:
                  
                    "(...) Também há notícia de que guerrilheiros foram enterrados
                  pelos próprios companheiros. (...) Foi noticiado, além
                  disso, que vários guerrilheiros teriam morrido de doenças e
                  até de fome. (...) Já sem poder estabelecer contatos com os
                  sítios de posseiros dentro da mata, os guerrilheiros passaram
                  a ficar sem alimentos e remédios e com isso se tornaram mais
                  expostos às adversidades do meio. Embora a maioria deles
                  tenha sido morta em combate, vários morreram de doenças –
                  sobretudo malária e leishmaniose – ou de fome (...)." 
                  
                    Quem
                  morreu de malária ou de fome? Quem foi enterrado pelos
                  companheiros? Quais dos cerca de 70 guerrilheiros
                  desaparecidos não foi preso e torturado até a morte? Tem o
                  advogado geral da União conhecimento de algum caso concreto?
                  Como ousa fazer suposições de tal natureza sem qualquer
                  base? Ou estaria o advogado geral da União sonegando informações
                  aos familiares? Buscamos a verdade, não evasivas ou
                  conjeturas. 
                  
                    Em
                  carta aberta ao Presidente da República, manifestamos nossa
                  indignação e revolta. A seguir, o governo criou uma comissão
                  interministerial para obter informações que pudessem levar
                  à localização dos restos mortais dos guerrilheiros do
                  Araguaia. Os familiares e entidades subscreveram nova nota pública
                  em protesto. Até o momento nenhum dado foi divulgado. 
                  
                    A
                  ampliação da lei 9140 nos permitiu corrigir injustiças e
                  aprovar casos anteriormente rejeitados, mas não nos trouxe a
                  verdade e a justiça que buscamos.
                  
                    Todas
                  essas questões, que durante anos ficaram submersas, sufocadas
                  sob a pecha da morbidez e o pretexto de evitar discursos
                  revanchistas são, na realidade, fatores determinantes para
                  que a impunidade e a violência sejam, hoje, marca registrada
                  de um país que convive com o extermínio oficial e anônimo
                  de marginalizados e um cotidiano com tortura, muitas vezes
                  praticada pelos mesmos elementos que a utilizaram na época da
                  ditadura.
                  
                    Dalmo Dallari, em artigo publicado no livro Mortos
                  e Desaparecidos Políticos: Reparação ou Impunidade, organizado por Janaína Teles, afirmou:
                  
                    “(...)
                  Agora vivemos numa situação nova. Estão recuperadas no
                  Brasil a liberdade de expressão e a possibilidade de
                  responsabilizar juridicamente todos os criminosos. E começa a
                  ser revelada a identidade dos torturadores. É tempo de
                  considerar a validade e o alcance da anistia concedida em
                  1979, que vem sendo invocada como obstáculo para sua punição.
                  
                    Um
                  ponto, desde logo, pode ser deixado absolutamente claro: os
                  torturadores homicidas, aqueles que mataram suas vítimas,
                  nunca foram anistiados, não podendo se esconder atrás da Lei
                  da Anistia para fugir à punição. A própria Constituição
                  impedia que eles fossem anistiados.
                  
                    Com
                  efeito, a Lei da Anistia, lei 6.683, de 28 de agosto de 1979,
                  foi editada quando vigorava, no Brasil, formalmente, a
                  Constituição de 1967, com a nova redação que lhe deu a
                  Emenda Constitucional n.º 1, de 1969. Essa Constituição
                  estabelecia expressamente, no artigo 153, que os crimes
                  dolosos, intencionais, contra a vida seriam julgados pelo
                  Tribunal do Júri.
                  
                    É
                  ponto pacífico, entre os doutrinadores e na jurisprudência
                  dos tribunais, que não tem validade jurídica uma disposição
                  de lei que contrarie a Constituição. A anistia de 1979 foi
                  concedida por meio de lei ordinária, segundo a qual não
                  seriam punidos os que tivessem cometido crimes políticos ou
                  conexos com este.
                  
                    Sem
                  necessidade de maiores considerações ou de análise
                  aprofundada, pode-se afirmar, desde logo, que os dispositivos
                  da Lei da Anistia não podem prevalecer contra a Constituição.
                  Como existia norma constitucional determinando que os crimes
                  dolosos contra a vida fossem submetidos ao Tribunal do Júri,
                  uma lei ordinária não poderia tirar desse Tribunal a competência
                  para o julgamento desses crimes.
                  
                    Os
                  torturadores que mataram suas vítimas cometeram homicídio,
                  que é crime doloso contra a vida. Eles não foram obrigados a
                  torturar e, muitas vezes, por vontade própria, impuseram às
                  vítimas um sofrimento que, por natureza e intensidade,
                  levaria à morte qualquer pessoa normal. Além disso, os
                  torturadores eram servidores públicos civis ou militares que
                  agiam profissionalmente, mediante remuneração, não podendo
                  alegar objetivos políticos. O crime por eles praticado é autônomo
                  em relação ao crime político praticado pelos dirigentes. Se
                  algum deles quiser sustentar que agiu sob coação deverá
                  esclarecer quem deu a ordem para que torturassem, e o Tribunal
                  do Júri decidirá se a prova dessa alegação é convincente.
                  
                    Os
                  torturadores homicidas, e possivelmente outros, nunca foram
                  anistiados. Agora existem condições para que eles sejam
                  submetidos a julgamento público e imparcial, com a garantia
                  de que não serão torturados para confessar e de que terão
                  plenamente assegurado o direito de defesa. É hora de fazer
                  justiça (...)." 
                  
                    O
                  jornalista Mário Magalhães, em artigo publicado na Folha de
                  S. Paulo, em 12 de julho do corrente, sob o título "Anistia
                  e tortura: uma ferida purulenta", diz:
                  
                    "(...) Um bom começo é a releitura da lei 6.683, de agosto de
                  1979. Convencionou-se em círculos amplos interpreta que teria
                  ocorrido um perdão de mão dupla: anistiavam-se os punidos
                  por crimes políticos de 1961 a 1979, bem como os agentes do
                  Estado que houvessem cometido violência de toda espécie
                  contra aqueles.Estes estariam abrigados no chapéu dos ”crimes
                  conexos", assim definidos: "crimes de qualquer
                  natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
                  motivação política". Nenhum dos 15 artigos, contudo,
                  fala em tortura.
  Seria difícil: a anistia beneficiou quem foi condenado ou punido de
                  algum modo. Ignora-se a existência de torturadores
                  processados e castigados na Justiça devido aos flagelos físicos
                  a que submeteram prisioneiros.A anistia foi concedida individualmente. Não se tem notícia
                  de quem tenha pronunciado seu próprio nome, assumido que
                  amarrou seres humanos no pau-de-arara, seviciou-os com choques
                  elétricos, matou-os a pauladas, sumiu com seus cadáveres, e
                  tenha requerido perdão legal. Não há acusação e punição,
                  inexiste anistia (...)."
  Esta
                  ainda é a nossa luta. 25 anos depois, reafirmamos o teor do
                  Manifesto do II Congresso Nacional de Anistia, realizado em
                  Salvador, em novembro de 1979:
                  
                    "(...) Todos esses crimes hão de ser julgados. Julgados pela opinião
                  pública nacional e internacional, julgados pela consciência
                  democrática do País, julgados pelo povo brasileiro. As prisões,
                  as torturas, os desaparecimentos e os assassinatos não ficarão
                  impunes. A conquista da Anistia Ampla, Geral e Irrestrita não
                  permitirá que uma única gota de sangue tenha sido derramada
                  em vão (...)."
                  
                    E
                  acrescentamos: a verdadeira democracia não será construída
                  sobre os cadáveres insepultos dos combatentes assassinados e
                  sob a mão impune dos seus assassinos.  Sobrevivemos para lutar, para impedir o esquecimento e a
                  impunidade, para resgatar suas vidas e suas histórias, para
                  dizer nunca mais!
                  Nossos mortos clamam e exigem Justiça - para que não se
                  esqueça, para que nunca mais aconteça! 
                  
                    
                  
                   *Suzana
                  Keniger Lisboa é membro da Comissão de Familiares de Mortos
                  e Desaparecidos Políticos. 
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