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Relatórios
 

As práticas de queimar e derrubar casas das quebradeiras são recorrentes como forma de pressão dos proprietários para garantir a exclusividade da compra do coco. Há ainda casos de violência física contra as quebradeiras, nos quais gerentes da fazenda, vaqueiros ou encarregados submetem as mulheres ‘a surras e violência sexual. Há ainda casos em que a mulher precisa roçar a quinta, ou seja, limpar a área de pasto, para ter acesso à área de quebra e coleta do coco.

  

As quebradeiras de coco babaçu e a luta pelo fim da sujeição no campo

Helciane de Fátima Abreu Araújo[1]

Cynthia Martins Carvalho[2]

Ana Carolina Mendes Magalhães[3]

 

 O presente artigo visa apresentar e refletir sobre as relações de sujeição a que estão submetidas centenas de mulheres que sustentam suas famílias com a atividade da coleta e quebra do coco babaçu[4], na chamada região dos babaçuais que engloba os estados do Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins.

 A intenção do artigo não se restringe à denúncia de situações, mas abrir um debate sobre as micro-relações que fundamentam as práticas sociais e que ficam no subterrâneo das discussões sobre as questões agrárias e agrícolas no país. Determinadas micro-relações que afetam diretamente as mulheres e crianças nas regiões dos babaçuais não aparecem nos debates por falta de reconhecimento dessa atividade como uma atividade econômica. Práticas aqui reveladas não aparecem nos censos oficiais, porque passam despercebidas pelos aparatos de poder e movimentos sociais que discutem de forma generalizante as questões da reforma agrária e agrícola, não atingindo o cerne da questão.

 Nessa região, a estrutura fundiária vigente, além de favorecer a concentração de renda, gera e reproduz diferentes relações de sujeição, envolvendo vários agentes, tais como mulheres quebradeiras de coco babaçu, trabalhadores (as) rurais, grandes proprietários de terra, empresários, fornecedores de amêndoa do coco para donos de empresa (chamados atravessadores), donos de barracões e funcionários de empresas que beneficiam coco babaçu. 

 As práticas de sujeição aqui descritas representam somente aquelas possíveis de serem identificadas no âmbito do trabalho do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), a partir de 1990, quando esse movimento articula as autodenominadas quebradeiras de coco babaçu nos estados do Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins, em torno de reivindicações comuns, relacionadas à preservação das palmeiras, à reforma agrária, à aprovação da lei de livre acesso aos babaçuais, à regularização das reservas extrativistas, à tecnologia socialmente apropriada e mudança nas relações de gênero.

 Mesmo sendo possível demarcar uma área geográfica de atuação do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), seu raio de ação não se restringe a ela e extrapola as fronteiras locais e à divisão político-administrativa inserindo-se em redes transnacionais. As situações descritas a seguir aparecem como resultado de formas diferenciadas de observação das pesquisadoras e das quebradeiras de coco. Essas observações se deram no trabalho de assessoria ao MIQCB e à Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão (ASSEMA), em pesquisas sistematicamente realizadas e relatos das quebradeiras de coco. Passaremos a seguir as descrições de algumas dessas práticas de sujeição:

Relação com as empresas.

 A inserção de grupos empresariais do setor siderúrgico, a partir dos anos 80, na região dos babaçuais influenciou na determinação de outras relações conflituosas, envolvendo os diferentes segmentos sociais, na rede de comercialização do coco babaçu. Na região do Médio Mearim/Maranhão, as mulheres quebradeiras de coco babaçu enfrentam dificuldades com as empresas siderúrgicas que compram coco babaçu para a produção de carvão vegetal para as indústrias de ferro gusa. Quando as empresas compram o coco inteiro, as mulheres não têm o controle do uso do produto (amêndoa) e perdem a oportunidade de aumentar sua renda extraindo outros subprodutos do coco (azeite, óleo, mesocarpo). Quando a compra é da casca, o prejuízo se dá também pela falta de controle dos preços do produto. Na rede de comercialização quem ganha mais é o atravessador. Em 2003, em reuniões do Grupo de Estudos das Quebradeiras de Coco, as mulheres de Lago do Junco e de Lago da Pedra/ Maranhão denunciaram algumas dessas situações de sujeição. Segundo elas, o atravessador comprava 1 metro de casca de coco pelo preço de R$ 6,00 e revendia para a empresa COSIMA – Companhia Siderúrgica do Maranhão, pelo preço de R$ 20,00. Na cidade de Tocantinópolis, no estado do Tocantins, as quebradeiras vivem uma situação semelhante às do Médio Mearim. A empresa TOBASA compra o coco inteiro das quebradeiras a R$ 10,00 - 1m³.

 Em São José dos Basílios/Maranhão, uma proprietária de fazenda paga os trabalhadores para coletar os cocos e estabelece com as quebradeiras uma relação designada localmente como pagamento de meia. Nesse sistema as mulheres repassam metade da produção ao fazendeiro. A proprietária da fazenda paga por litro R$ 0,60 e revende para os chamados atravessadores que, por sua vez, repassam às empresas produtoras de ferro gusa ou de óleo industrial. 

Contrato

 No povoado de Petrolina, município de Imperatriz, as mulheres quebradeiras de coco estão submetidas a um contrato, resultado de uma estratégia empresarial adotada  inicialmente pela empresa Celmar. O contrato particular de comodato, celebrado entre a Associação das Quebradeiras de Coco do Povoado de Petrolina e a empresa delimita a área de 307 hectares, incluída na área de Reserva Florestal Legal para a prática do extrativismo do babaçu. Além de estabelecer limites para o trabalho de coleta, o contrato transfere a responsabilidade pela preservação da reserva à Associação, estabelecendo multas diárias caso o contrato não seja renovado a cada ano. A empresa Celmar não chegou a cumprir a sua missão de criar uma indústria de celulose na região, mas foi vendida para o grupo da Ferro Gusa Carajás que além de manter o sistema de contrato tenta sistematicamente negociar a compra da casca do coco babaçu para a produção de carvão vegetal.

Carteirinhas

 No município de Capinzal do Norte/Maranhão, o gerente da fazenda Santa Rita tentou institucionalizar o bloqueio das mulheres às áreas de coletas do babaçu, criando um sistema de identificação. Ele elaborou e distribuiu 50 “carteirinhas” entre as quebradeiras, proibindo a entrada daquelas que não apresentassem o “documento” nas porteiras das fazendas. Sua intenção, conforme relatou à reportagem do Globo Rural, era “organizar” o negócio, já que a fazenda deveria funcionar como uma empresa.  O problema, na versão das mulheres, é que o número de quebradeiras no município é superior a 50, o que intensificava o conflito. O controle do sistema, feito por um encarregado de forma rigorosa, impedia – inclusive com ameaças de morte com armas de fogo na cabeça - muitas mulheres de entrar nas áreas de coleta.  

Queima de casas

 Mais recentemente, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB – denunciou a situação da quebradeira de coco Maria da Luz de Oliveira, no povoado Lagoa do Tufi, município de Timbiras/ Maranhão. Ela teve sua casa queimada na noite de 15 de julho de 2004 por volta das 22:00 horas, enquanto dormia com seus três filhos, uma menina e dois meninos de 11 a 15 anos de idade. O principal suspeito é o proprietário de terra Francisco Rodrigues Sampaio, conhecido por Chico Adonias.  Quando percebeu que a casa estava sendo queimada, Maria da Luz conseguiu fugir com seus filhos a tempo, porém perdeu todos os seus pertences.  A casa da vizinha também foi queimada, mas o prejuízo foi menor.

 Este episódio revela uma situação de conflito que há meses vem tramitando na Justiça da Comarca de Timbiras/Maranhão. Depois do ocorrido, o processo foi transferido pela juíza Samira Heluy para a Comarca de Codó. Até o presente foram realizadas duas audiências sem que o caso tenha sido solucionado. Sem alternativa, Maria da Luz voltou para o local e está morando em um pedaço de casa, sofrendo constantes ameaças de morte por parte do proprietário da fazenda e dos seus filhos.

 Maria da Luz Oliveira explica que há 18 anos mora, com mais 20 famílias, na propriedade do Sr. Adonias, para quem vende o coco todos esses anos. Em abril quebrou 22kg de coco em outra propriedade e foi vender ao fazendeiro Adonias, como ele não estava e ela precisava do dinheiro para comprar comida para os filhos, vendeu para outro comerciante. Quando o fazendeiro Adonias soube começou ameaçá-la, chegando a solicitar da juíza do Fórum da Comarca de Timbiras, Samira Heluy, uma ação de despejo a Maria da Luz. A juíza chamou Maria da Luz para um acordo: os proprietários ofereceram  R$ 400,00 para que ela deixasse a propriedade. Maria da Luz não aceitou e permaneceu na área, quebrando coco e vendendo para o proprietário, apesar das ameaças e de ser proibida de pegar água no poço da comunidade. Em maio Maria da Luz deu entrada no Fórum de Timbiras com uma ação de manutenção de posse, mas até agora nada foi feito.

 As práticas de queimar e derrubar casas são recorrentes no povoado como forma de pressão dos proprietários para garantir a exclusividade da compra do coco. “Quando a gente quebra o coco e não vende para ele, ele fica correndo com as pessoas. Agora mesmo derrubou a casa de um(...) todo mundo é corrido de lá, todo mundo é corrido”, explica  Maria da Luz.

Sistema de barracão

 No município de Olho D’água das Cunhãs, no Médio Mearim Maranhense, foi identificada a situação de mulheres e crianças se dedicando a quebra de coco babaçu que seria repassado posteriormente ao dono de um barracão. Este arrenda as áreas dos fazendeiros das redondezas, contrata as quebradeiras para catar e quebrar o coco e em seguida repassa as amêndoas para fábricas de óleo da região. As mulheres recebem como pagamento somente a metade da produção das amêndoas quebradas, a outra metade fica com o dono do barracão, assim como as cascas. Os barracões são abertos e com cobertura de palha. Trabalham em média 15 pessoas, entre mulheres e crianças em cada barracão. A  parte da produção que pertence às mulheres e crianças é vendida ao proprietário do barracão, por R$ 0,25 o quilo. As mulheres que trabalham nesse sistema são quebradeiras de coco que não possuem terra e nem área para trabalhar. Algumas moram em áreas de periferia da cidade. Segundo uma quebradeira, o apurado em uma semana de trabalho intenso não ultrapassa R$ 9,00.  

 Às práticas descritas acima podemos acrescentar outras como a quebra de meia,  quebra de terça, quando a quebradeira de coco precisa repassar um terço da produção para os fazendeiros. Há ainda casos de uso de violência contra as quebradeiras, incluindo o corte da alça do jacá, instrumento de trabalho em formato de cesto, produzido com a palha da palmeira de babaçu onde as mulheres depositam o coco; utilização de violência física em que os gerentes da fazenda, vaqueiros ou encarregados submetem as mulheres a surras e a violência sexual. Há ainda casos em que a mulher precisa roçar a quinta, ou seja, limpar a área de pasto, para ter acesso à área de quebra e coleta do coco.

Políticas governamentais e sujeição das quebradeiras de coco.

 As ações governamentais direcionadas para as questões agrária e agrícola não investem em mudanças na estrutura fundiária, notadamente nas áreas de babaçuais. Segundo dados do censo agropecuário de 1995/96, o índice de concentração de terras no Brasil continua sendo um dos maiores do mundo. Os chamados proprietários de terra concentram 93% das áreas, embora em número representem somente 32% do total geral (MESQUITA, 1996). O investimento governamental concentra-se no apoio aos empresários por incentivos creditícios e fiscais. Inexiste uma linha de crédito direcionada para as mulheres extrativistas e o seu trabalho é invisível, apesar da importância da atividade extrativa para a reprodução das famílias.

 A alternativa para as extrativistas está na mobilização, na organização em movimentos sociais[5] e organizações não governamentais que trabalham com essa temática, com vistas à reivindicação dos seus direitos de cidadania.  Sem nenhum incentivo governamental, esses movimentos nos últimos 15 anos têm se constituído nos únicos canais de denúncia de práticas de sujeição no campo que se consolidam nas micro-relações de poder, nem sempre percebidas e consideradas nos debates sobre as questões agrárias.  São também esses movimentos que hoje discutem e propõem políticas públicas que contemplem essas particularidades, libertando as mulheres e crianças da violência e da fome e, ao mesmo tempo, contribuindo para o resgate do meio ambiente.

 A Lei Babaçu Livre, proposta pelas quebradeiras de coco babaçu, tem sido uma alternativa a essas diversas situações de exploração a que são submetidas as  mulheres na região dos babaçuais. A proposta da referida lei é garantir o livre acesso as áreas de babaçuais em terras públicas e privadas, assim como proibir as derrubadas, queimadas e o  uso de agrotóxicos.

 O primeiro projeto de Lei Babaçu Livre foi criado em 1997, no município de Lago do Junco, num esforço coletivo da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues - AMTR, ASSEMA e MIQCB. A partir de então a luta se expandiu a outros municípios. Hoje a Lei está aprovada nos municípios de Lago dos Rodrigues, São Luiz Gonzaga do Maranhão, Esperantinópolis, Capinzal do Norte, Imperatriz e Lago do Junco, no Maranhão, e Axixá em Tocantins. Atualmente tramita um Projeto de Lei na Câmara Federal, apresentado pela deputada Terezinha Fernandes (PT), propondo a criação da Lei Babaçu Livre a nível nacional.

 Essas Leis constituem-se em um instrumento legal, respaldando juridicamente a luta das mulheres. Cada uma delas foi elaborada de acordo com a situação de cada município, todas baseadas nas suas leis orgânicas municipais.

 As aprovações dessas Leis municipais só foram possíveis e hoje são válidas pela luta e coragem que as mulheres quebradeiras de coco babaçu têm ao enfrentar as mais diversas situações para garantir o livre acesso aos babaçuais. Elas fiscalizam as derrubadas e queimadas e denunciam essas práticas às autoridades competentes. Onde a lei já foi aprovada as áreas estão mais preservadas. A Lei Babaçu Livre pode significar    a construção de uma nova concepção de propriedade e de novas relações no campo que não sejam essas relações de sujeição.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

ALMEIDA, Alfredo W. Quebradeiras de Coco Babaçu: identidade e mobilização. São Luís. MIQCB,1995.

ALMEIDA, Alfredo W; SHIRAISHI, Joaquim; ARAUJO, Helciane; MESQUITA, Benjamin; MARTINS, Cynthia; SILVA, Miguel Henrique. Economia do Babaçu: Levantamento Preliminar de Dados. Ed. – São Luís, MIQCB/Balaio Typographia, 2001.

FOUCAULT, M. Microfisica do Poder (tradução Roberto Machado). Rio de Janeiro. Ed. Graal. 1979.

FIGUEIREDO, Luciene Dias. Primeiro Relatório da Pesquisa Gênero, Terra e Globalização (GTG). Mimeo, 2004.

MESQUITA, Benjamin Alvino de. Crise da economia do babaçu (1920-1980). Revista de Políticas Públicas, v 2, n° 2, São Luís.

 

[1] Socióloga, jornalista e Mestre em Políticas Públicas, professora universitária e assessora de comunicação da Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão - ASSEMA

[2] Socióloga, Mestre em Políticas Públicas e doutoranda em Antropologia da Universidade Federal Fluminense

[3] Socióloga e assessora do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB.

[4] Fruto da palmeira de babaçu, floresta secundária que recobre no Brasil 18,5 milhões de hectares, atingindo os estados do Maranhão, Piauí, Pará, Goiás, Tocantins e Minas Gerais. O Maranhão é o maior produtor, com uma área de 10,3 milhões  de hectares. A economia do babaçu, assumida predominantemente por mulheres chamadas quebradeiras de coco babaçu, envolve aproximadamente 300 mil pessoas na chamada região dos babaçuais. Da palmeira tudo se aproveita. Estudos científicos apontam que dela pelo menos 68 subprodutos possam ser extraídos.

[5] ASSEMA, MIQCB, Associação das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues (AMTR), associações de quebradeiras, Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (ASMUBIP), Associação Intermunicipal de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Agroextrativistas do Município de Imperatriz (ASSINTI)