As
práticas de queimar e derrubar casas das quebradeiras são
recorrentes como forma de pressão dos proprietários para
garantir a exclusividade da compra do coco. Há ainda casos de
violência física contra as quebradeiras, nos quais gerentes
da fazenda, vaqueiros ou encarregados submetem as mulheres
‘a surras e violência sexual. Há ainda casos em que a
mulher precisa roçar a quinta, ou seja, limpar a área de
pasto, para ter acesso à área de quebra e coleta do coco.
As
quebradeiras de coco babaçu e a luta pelo fim da sujeição
no campo
Helciane
de Fátima Abreu Araújo
Cynthia
Martins Carvalho
Ana
Carolina Mendes Magalhães
O
presente artigo visa apresentar e refletir sobre as relações
de sujeição a que estão submetidas centenas de mulheres que
sustentam suas famílias com a atividade da coleta e quebra do
coco babaçu,
na chamada região dos babaçuais que engloba os estados do
Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins.
A
intenção do artigo não se restringe à denúncia de situações,
mas abrir um debate sobre as micro-relações que fundamentam
as práticas sociais e que ficam no subterrâneo das discussões
sobre as questões agrárias e agrícolas no país.
Determinadas micro-relações que afetam diretamente as
mulheres e crianças nas regiões dos babaçuais não aparecem
nos debates por falta de reconhecimento dessa atividade como
uma atividade econômica. Práticas aqui reveladas não
aparecem nos censos oficiais, porque passam despercebidas
pelos aparatos de poder e movimentos sociais que discutem de
forma generalizante as questões da reforma agrária e agrícola,
não atingindo o cerne da questão.
Nessa
região, a estrutura fundiária vigente, além de favorecer a
concentração de renda, gera e reproduz diferentes relações
de sujeição, envolvendo vários agentes, tais como mulheres
quebradeiras de coco babaçu, trabalhadores (as) rurais,
grandes proprietários de terra, empresários, fornecedores de
amêndoa do coco para donos de empresa (chamados
atravessadores), donos de barracões e funcionários de
empresas que beneficiam coco babaçu.
As
práticas de sujeição aqui descritas representam somente
aquelas possíveis de serem identificadas no âmbito do
trabalho do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco
Babaçu (MIQCB), a partir de
1990, quando esse movimento articula as autodenominadas
quebradeiras de coco babaçu nos estados do Maranhão, Pará,
Piauí e Tocantins, em torno de reivindicações comuns,
relacionadas à preservação das palmeiras, à reforma agrária,
à aprovação da lei de livre acesso aos babaçuais, à
regularização das reservas extrativistas, à tecnologia
socialmente apropriada e mudança nas relações de gênero.
Mesmo sendo possível demarcar uma área geográfica de atuação
do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
(MIQCB), seu raio de ação não se restringe a ela e
extrapola as fronteiras locais e à divisão político-administrativa
inserindo-se em redes transnacionais. As situações descritas
a seguir aparecem como resultado de formas
diferenciadas de observação das pesquisadoras e das
quebradeiras de coco. Essas observações se deram no trabalho
de assessoria ao MIQCB e à Associação em Áreas de
Assentamento no Estado do Maranhão (ASSEMA), em pesquisas
sistematicamente realizadas e relatos das quebradeiras de
coco. Passaremos a seguir as descrições de algumas dessas práticas
de sujeição:
Relação
com as empresas.
A
inserção de grupos empresariais do setor siderúrgico, a
partir dos anos 80, na região dos babaçuais influenciou na
determinação de outras relações conflituosas, envolvendo
os diferentes segmentos sociais, na rede de comercialização
do coco babaçu. Na região do Médio Mearim/Maranhão, as
mulheres quebradeiras de coco babaçu enfrentam dificuldades
com as empresas siderúrgicas que compram coco babaçu para a
produção de carvão vegetal para as indústrias de ferro
gusa. Quando as empresas compram o coco inteiro, as mulheres não
têm o controle do uso do produto (amêndoa) e perdem a
oportunidade de aumentar sua renda extraindo outros
subprodutos do coco (azeite, óleo, mesocarpo). Quando a
compra é da casca, o prejuízo se dá também pela falta de
controle dos preços do produto. Na rede de comercialização
quem ganha mais é o atravessador. Em 2003, em reuniões do
Grupo de Estudos das Quebradeiras de Coco, as mulheres de Lago
do Junco e de Lago da Pedra/ Maranhão denunciaram algumas
dessas situações de sujeição. Segundo elas, o atravessador
comprava 1 metro de casca de coco pelo preço de R$ 6,00 e
revendia para a empresa COSIMA – Companhia Siderúrgica do
Maranhão, pelo preço de R$ 20,00. Na cidade de Tocantinópolis,
no estado do Tocantins, as quebradeiras vivem uma situação
semelhante às do Médio Mearim. A empresa TOBASA compra o
coco inteiro das quebradeiras a R$ 10,00 - 1m³.
Em
São José dos Basílios/Maranhão, uma proprietária de
fazenda paga os trabalhadores para coletar os cocos e
estabelece com as quebradeiras uma relação designada
localmente como pagamento de meia. Nesse sistema as
mulheres repassam metade da produção ao fazendeiro. A
proprietária da fazenda paga por litro R$ 0,60 e revende para
os chamados atravessadores que, por sua vez, repassam às
empresas produtoras de ferro gusa ou de óleo industrial.
Contrato
No
povoado de Petrolina, município de Imperatriz, as mulheres
quebradeiras de coco estão submetidas a um contrato,
resultado de uma estratégia empresarial adotada inicialmente pela empresa Celmar. O contrato particular de
comodato, celebrado entre a Associação das Quebradeiras de
Coco do Povoado de Petrolina e a empresa delimita a área de
307 hectares, incluída na área de Reserva Florestal Legal
para a prática do extrativismo do babaçu. Além de
estabelecer limites para o trabalho de coleta, o contrato
transfere a responsabilidade pela preservação da reserva à
Associação, estabelecendo multas diárias caso o contrato não
seja renovado a cada ano. A empresa Celmar não chegou a
cumprir a sua missão de criar uma indústria de celulose na
região, mas foi vendida para o grupo da Ferro Gusa Carajás
que além de manter o sistema de contrato tenta
sistematicamente negociar a compra da casca do coco babaçu
para a produção de carvão vegetal.
Carteirinhas
No
município de Capinzal do Norte/Maranhão, o gerente da
fazenda Santa Rita tentou institucionalizar o bloqueio das
mulheres às áreas de coletas do babaçu, criando um sistema
de identificação. Ele elaborou e distribuiu 50
“carteirinhas” entre as quebradeiras, proibindo a entrada
daquelas que não apresentassem o “documento” nas
porteiras das fazendas. Sua intenção, conforme relatou à
reportagem do Globo Rural, era “organizar” o negócio, já
que a fazenda deveria funcionar como uma empresa.
O problema, na versão das mulheres, é que o número
de quebradeiras no município é superior a 50, o que
intensificava o conflito. O controle do sistema, feito por um
encarregado de forma rigorosa, impedia – inclusive com ameaças
de morte com armas de fogo na cabeça - muitas mulheres de
entrar nas áreas de coleta.
Queima
de casas
Mais
recentemente, o Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Coco Babaçu – MIQCB – denunciou a situação da
quebradeira de coco Maria da Luz de Oliveira, no povoado Lagoa
do Tufi, município de Timbiras/ Maranhão. Ela teve sua casa
queimada na noite de 15 de julho de 2004 por volta das 22:00
horas, enquanto dormia com seus três filhos, uma menina e
dois meninos de 11 a 15 anos de idade. O principal suspeito é
o proprietário de terra Francisco Rodrigues Sampaio,
conhecido por Chico Adonias.
Quando percebeu que a casa estava sendo queimada, Maria
da Luz conseguiu fugir com seus filhos a tempo, porém perdeu
todos os seus pertences.
A casa da vizinha também foi queimada, mas o prejuízo
foi menor.
Este
episódio revela uma situação de conflito que há meses vem
tramitando na Justiça da Comarca de Timbiras/Maranhão.
Depois do ocorrido, o processo foi transferido pela juíza
Samira Heluy para a Comarca de Codó. Até o presente foram
realizadas duas audiências sem que o caso tenha sido
solucionado. Sem alternativa, Maria da Luz voltou para o local
e está morando em um pedaço de casa, sofrendo constantes
ameaças de morte por parte do proprietário da fazenda e dos
seus filhos.
Maria
da Luz Oliveira explica que há 18 anos mora, com mais 20 famílias,
na propriedade do Sr. Adonias, para quem vende o coco todos
esses anos. Em abril quebrou 22kg de coco em outra propriedade
e foi vender ao fazendeiro Adonias, como ele não estava e ela
precisava do dinheiro para comprar comida para os filhos,
vendeu para outro comerciante. Quando o fazendeiro Adonias
soube começou ameaçá-la, chegando a solicitar da juíza do
Fórum da Comarca de Timbiras, Samira Heluy, uma ação de
despejo a Maria da Luz. A juíza chamou Maria da Luz para um
acordo: os proprietários ofereceram
R$ 400,00 para que ela deixasse a propriedade. Maria da
Luz não aceitou e permaneceu na área, quebrando coco e
vendendo para o proprietário, apesar das ameaças e de ser
proibida de pegar água no poço da comunidade. Em maio Maria
da Luz deu entrada no Fórum de Timbiras com uma ação de
manutenção de posse, mas até agora nada foi feito.
As
práticas de queimar e derrubar casas são recorrentes no
povoado como forma de pressão dos proprietários para
garantir a exclusividade da compra do coco. “Quando a
gente quebra o coco e não vende para ele, ele fica correndo
com as pessoas. Agora mesmo derrubou a casa de um(...) todo
mundo é corrido de lá, todo mundo é corrido”, explica
Maria da Luz.
Sistema
de barracão
No
município de Olho D’água das Cunhãs, no Médio Mearim
Maranhense, foi identificada a situação de mulheres e crianças
se dedicando a quebra de coco babaçu que seria repassado
posteriormente ao dono de um barracão. Este arrenda as áreas
dos fazendeiros das redondezas, contrata as quebradeiras para
catar e quebrar o coco e em seguida repassa as amêndoas para
fábricas de óleo da região. As mulheres recebem como
pagamento somente a metade da produção das amêndoas
quebradas, a outra metade fica com o dono do barracão, assim
como as cascas. Os barracões são abertos e com cobertura de
palha. Trabalham em média 15 pessoas, entre mulheres e crianças
em cada barracão. A parte
da produção que pertence às mulheres e crianças é vendida
ao proprietário do barracão, por R$ 0,25 o quilo. As
mulheres que trabalham nesse sistema são quebradeiras de coco
que não possuem terra e nem área para trabalhar. Algumas
moram em áreas de periferia da cidade. Segundo uma
quebradeira, o apurado em uma semana de trabalho intenso não
ultrapassa R$ 9,00.
Às
práticas descritas acima podemos acrescentar outras como a quebra
de meia, quebra
de terça, quando a quebradeira de coco precisa repassar
um terço da produção para os fazendeiros. Há ainda casos
de uso de violência contra as quebradeiras, incluindo o corte
da alça do jacá, instrumento de trabalho em formato
de cesto, produzido com a palha da palmeira de babaçu onde as
mulheres depositam o coco; utilização de violência física
em que os gerentes da fazenda, vaqueiros ou encarregados
submetem as mulheres a surras e a violência sexual. Há ainda
casos em que a mulher precisa roçar a quinta,
ou seja, limpar a área de pasto, para ter acesso à área de
quebra e coleta do coco.
Políticas
governamentais e sujeição das quebradeiras de coco.
As
ações governamentais direcionadas para as questões agrária
e agrícola não investem em mudanças na estrutura fundiária,
notadamente nas áreas de babaçuais. Segundo dados do censo
agropecuário de 1995/96, o índice de concentração de
terras no Brasil continua sendo um dos maiores do mundo. Os
chamados proprietários de terra concentram 93% das áreas,
embora em número representem somente 32% do total geral
(MESQUITA, 1996). O investimento governamental concentra-se no
apoio aos empresários por incentivos creditícios e fiscais.
Inexiste uma linha de crédito direcionada para as mulheres
extrativistas e o seu trabalho é invisível, apesar da importância
da atividade extrativa para a reprodução das famílias.
A
alternativa para as extrativistas está na mobilização, na
organização em movimentos sociais e organizações não
governamentais que trabalham com essa temática, com vistas à
reivindicação dos seus direitos de cidadania.
Sem nenhum incentivo governamental, esses movimentos
nos últimos 15 anos têm se constituído nos únicos canais
de denúncia de práticas de sujeição no campo que se
consolidam nas micro-relações de poder, nem sempre
percebidas e consideradas nos debates sobre as questões agrárias. São também esses movimentos que hoje discutem e propõem
políticas públicas que contemplem essas particularidades,
libertando as mulheres e crianças da violência e da fome e,
ao mesmo tempo, contribuindo para o resgate do meio ambiente.
A
Lei Babaçu Livre, proposta pelas quebradeiras de coco babaçu,
tem sido uma alternativa a essas diversas situações de
exploração a que são submetidas as
mulheres na região dos babaçuais. A proposta da
referida lei é garantir o livre acesso as áreas de babaçuais
em terras públicas e privadas, assim como proibir as
derrubadas, queimadas e o
uso de agrotóxicos.
O
primeiro projeto de Lei Babaçu Livre foi criado em 1997, no
município de Lago do Junco, num esforço coletivo da Associação
de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lago do Junco e Lago dos
Rodrigues - AMTR, ASSEMA e MIQCB. A partir de então a luta se
expandiu a outros municípios. Hoje a Lei está aprovada nos
municípios de Lago dos Rodrigues, São Luiz Gonzaga do Maranhão,
Esperantinópolis, Capinzal do Norte, Imperatriz e Lago do
Junco, no Maranhão, e Axixá em Tocantins. Atualmente tramita
um Projeto de Lei na Câmara Federal, apresentado pela
deputada Terezinha Fernandes (PT), propondo a criação da Lei
Babaçu Livre a nível nacional.
Essas
Leis constituem-se em um instrumento legal, respaldando
juridicamente a luta das mulheres. Cada uma delas foi
elaborada de acordo com a situação de cada município, todas
baseadas nas suas leis orgânicas municipais.
As
aprovações dessas Leis municipais só foram possíveis e
hoje são válidas pela luta e coragem que as mulheres
quebradeiras de coco babaçu têm ao enfrentar as mais
diversas situações para garantir o livre acesso aos babaçuais.
Elas fiscalizam as derrubadas e queimadas e denunciam essas práticas
às autoridades competentes. Onde a lei já foi aprovada as áreas
estão mais preservadas. A Lei Babaçu Livre pode significar
a construção de uma nova concepção de propriedade e
de novas relações no campo que não sejam essas relações
de sujeição.
BIBLIOGRAFIA
CONSULTADA
ALMEIDA,
Alfredo W. Quebradeiras de Coco Babaçu: identidade e
mobilização. São Luís. MIQCB,1995.
ALMEIDA,
Alfredo W; SHIRAISHI, Joaquim; ARAUJO, Helciane; MESQUITA,
Benjamin; MARTINS, Cynthia; SILVA, Miguel Henrique. Economia
do Babaçu: Levantamento Preliminar de Dados. Ed. – São
Luís, MIQCB/Balaio Typographia, 2001.
FOUCAULT,
M. Microfisica do Poder (tradução Roberto Machado).
Rio de Janeiro. Ed.
Graal. 1979.
FIGUEIREDO,
Luciene Dias. Primeiro Relatório da Pesquisa Gênero,
Terra e Globalização (GTG). Mimeo, 2004.
MESQUITA,
Benjamin Alvino de. Crise da economia do babaçu
(1920-1980). Revista de Políticas Públicas, v 2, n° 2,
São Luís.
Socióloga, jornalista e Mestre em Políticas Públicas,
professora universitária e assessora de comunicação da
Associação em Áreas de Assentamento no Estado do Maranhão
- ASSEMA
Socióloga, Mestre em Políticas Públicas e doutoranda em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense
Socióloga e assessora do Movimento Interestadual das
Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB.
Fruto da palmeira
de babaçu, floresta secundária que recobre no Brasil
18,5 milhões de hectares, atingindo os estados do Maranhão,
Piauí, Pará, Goiás, Tocantins e Minas Gerais. O Maranhão
é o maior produtor, com uma área de 10,3 milhões
de hectares. A economia do babaçu, assumida
predominantemente por mulheres chamadas quebradeiras de
coco babaçu, envolve aproximadamente 300 mil pessoas na
chamada região dos babaçuais. Da palmeira tudo se
aproveita. Estudos científicos apontam que dela pelo
menos 68 subprodutos possam ser extraídos.
ASSEMA, MIQCB, Associação das Mulheres Trabalhadoras
Rurais de Lago do Junco e Lago dos Rodrigues (AMTR),
associações de quebradeiras, Associação Regional das
Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio
(ASMUBIP), Associação Intermunicipal de Mulheres
Trabalhadoras Rurais e Agroextrativistas do Município de
Imperatriz (ASSINTI)
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